No episódio de hoje, o assunto é Parasita. Sim, o filme vencedor do Oscar é pauta do nosso podcast de política, mas somente porque o ministro Paulo Guedes resolveu introduzir o termo na política nacional. Durante palestra na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, ele defendeu a necessidade de uma reforma administrativa para resolver a situação de estados que gastam mais do que arrecadam.
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Mas, ao criticar os reajustes automáticos de salários de funcionários públicos, ele errou a mão e comparou esses servidores a parasitas
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Depois de gerar uma repercussão negativa, o ministro da economia do governo de Jair Bolsonaro lamentou ter tido a fala tirada do contexto. Segundo nota divulgada na sexta-feira, dia 7, ele se referiu a situações específicas de estados e municípios que tem despesas comprometidas.
Mas mesmo que Guedes queira esquecer do episódio, isso não vai acontecer tão cedo. Porque na noite de ontem, o grande vencedor do Oscar de 2020 foi o filme… Parasita. A obra do sul-coreano Bong Joon-Ho propõe uma trama entre duas classes antagônicas e irreconciliáveis, como diz o nosso colunista de cinema, Pedro Henrique Gomes.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
(Brasília - DF, 09/12/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro, se despede ao término do almoço.rFoto: Marcos Corrêa/PR
O patriota brasileiro pode ser definido a partir de uma característica muito curiosa: ele adora odiar seu próprio povo. Para grande parcela dos valorosos brasileiros de bandeira adesivada no carro e camiseta verde e amarela, o povo brasileiro é formado por vagabundos, preguiçosos, incompetentes e bandidos em potencial.
Os valores desejáveis para uma nação forte e poderosa não estão entre nós, mas em outros lugares, e tudo seria muito melhor se nosso povo letárgico, burro e animalizado seguisse esses lindos exemplos – ou mesmo se sumisse de vez, dando espaço para braços realmente dispostos a trabalhar por um grande país.
Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro concorda, ao menos parcialmente, com esse enunciado. Afinal, retuitou para seus milhões de seguidores um vídeo de Alexandre Garcia, no qual o jornalista (um dos mais empolgados puxa-sacos do atual governo) teoriza, de forma irônica, sobre como seria lindo o Brasil se nosso povo de molengas submissos fosse trabalhador, sério e concentrado como os japoneses.
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Sim, no fim das contas é isso aí mesmo: o Presidente da República concordando publicamente com quem diz que o povo brasileiro não presta para nada. Curioso caso de um nacionalista que ama o povo dos outros e despreza o próprio
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(Sim, todos sabemos que provavelmente foi o tresloucado Carlos Bolsonaro, filho do presidente e dono das senhas das redes sociais do pai, quem postou a estupidez. Mas a verdade é que isso muda pouco o argumento: continua sendo um endosso a um discurso rasteiro sobre a população brasileira, vindo de gente muito próxima ao topo do poder.)
Esse patriotismo à brasileira que acha que xingar brasileiros de vagabundos é ser patriota é ridículo, é claro. Mas não é exatamente difícil de entender. Afinal, o amor à pátria aqui se confunde com coisas bem mais profundas: o racismo e o ódio a gente pobre.
No Brasil, o que define a cidadania é o que se tem, desde tempos imemoriais. Ser bom é ser dono, é ter algum tipo de propriedade sobre o Brasil – ou, pelo menos, ser (ou achar que é) amigo de quem a tenha. Aos que não têm quase nada, cabe a sina de sempre ficar com um pouco menos – e quando já se tirou tudo que se pode levar embora com as mãos, resta esvaziá-los também da capacidade de gerar coisas novas, de serem um povo pelos próprios termos, de existir sem pedir licença.
A cultura do povo não é a cultura brasileira: é a cultura do povão. Os desmatamentos não são consequência de um modelo predatório e assassino de capitalismo: são o gesto ignorante de quem não tem o que comer. A crise econômica não é falta de emprego: é falta de imaginação de quem não consegue ser empreendedor e fica esperando que os patrões deem tudo de mão beijada. Se os pobres brasileiros nada têm, é porque nada produzem; se vivem com fome, é porque são preguiçosos esperando que o sustento caia do céu, prontos a vender o voto pelas esmolas de um programa assistencial qualquer.
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Em última análise, o patriota à brasileira representado na fala nojenta de Alexandre Garcia não ama o Brasil: na verdade, se acha dono dele, enquanto recursos, território e conceito. E faz questão de dizer que os não-donos do Brasil não são nada, não podem ser nada, jamais serão coisa alguma. Mesmo que isso seja uma mentira deslavada
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A patriotada, nesse contexto, nada mais é que um recurso retórico, um argumento sonoro repetido por elitistas preconceituosos enrolados na bandeira nacional. O Brasil dessas pessoas só existe no espelho de casa, nos próprios delírios de ascensão social – ou nas gordas contas bancárias de quem usa o verde e amarelo para seguir sem riscos no topo da pirâmide. Alexandre Garcia, porta-voz fiel desse raciocínio excludente até os ossos, ofereceu a ração confirmatória da vez. E Jair Bolsonaro – um misto de presidente, entreguista patológico e avatar de todos os preconceitos de uma nação que cansou de festa e resolveu odiar – faz o que pode para cometer o desaforo supremo: o de um governante que ri e despreza a desgraça aqueles que foi eleito para governar.
OUÇA Bendita Sois Vós #44 Liberdade de imprensa a perigo – de novo
Geórgia Santos
27 de janeiro de 2020
Neste episódio, os jornalistas do Vós falam sobre liberdade de imprensa no Brasil.Ou melhor, sobre mais uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa no Brasil.
Todos estamos familiarizados com os constantes ataques do presidente da República aos jornalistas e da recusa de Jair Bolsonaro em conceder entrevista ao que ele chama de grande mídia. Agora, no entanto, foi a vez do Ministério Público Federal. O jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, foi denunciado pelo MPF em função da produção das reportagens que ficaram conhecidas como Vazajato, que revelaram a comunicação ilegal entre procuradores do Ministério Público e o então juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato. Glenn e outras seis pessoas foram denunciadas por associação criminosa para invasão de equipamentos de comunicação e interceptação ilegal de comunicações.
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Glenn Greenwald não foi investigado, Não foi indiciado, não cometeu qualquer irregularidade
Ele está sendo punido por fazer jornalismo
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Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol conversam com Marcelo Träsel, presidente da Abraji e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Rogério; Orlando Lelé, Alex, Geraldo e Álvaro; Ivo Wortmann, Bráulio e Edu (o irmão do Zico); Flecha, Luisinho e Gílson Nunes Com essa escalação e comando do técnico Danilo Alvim, o América-RJ, ou melhor, America, sem acento, conquistou o título da Taça Guanabara – o primeiro turno do campeonato do Rio de Janeiro – em 1974. Essa formação entrou para a história mesmo sem ter conquistado o Estadual. E ficou para sempre na minha memória porque foi o meu primeiro time de botão.
America-RJ, em 1974, na conquista da Taça Guanabara.
Mesmo sem ter alcançado nenhum título brasileiro, o América ergue a taça do Torneio dos Campeões, organizado pela CBF, em 1982. Fez uma brilhante campanha no Brasileirão de 1986, terminando em terceiro lugar e sendo eliminado na semifinal pelo São Paulo que acabou tornando-se campeão. O curioso é que, no ano seguinte, veio a Copa União, criada pelo Clube dos Treze, e o America ficou fora da elite. Como protesto, negou-se jogar em qualquer outra divisão. E essa decisão marcou o início do fim. Mesmo com a abnegação de fanáticos dirigentes e torcedores, o time nunca mais foi o mesmo. Nunca retomou o tamanho. Tanto que na recente disputa de duas vagas no Módulo Especial, ficou fora do Carioca, ficando atrás de Portuguesa e Macaé e perdendo uma das duas vagas.
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E sabe do que mais? Eu também não tenho mais o meu time de botão
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Menos glorioso foi o SAAD. O time de São Caetano do Sul disputou o Paulistão de 1974 e depois despencou. Fechou o departamento de futebol profissional, ressurgiu com força no futebol feminino, montou um projeto numa das ligas norte-americanas, mas poucos se lembram de que esteve entre os grandes de São Paulo. Algo parecido aconteceu com o CEUB. O Centro Esportivo Universitário de Brasília tornou-se CEUB Futebol Clube e jogou o Brasileirão de 1973. O time teve uma vida efêmera, mas pelo menos serviu para iniciar a história do futebol no Distrito Federal.
Mais antigo e muito mais glorioso, o Grêmio Esportivo Renner desbancou Grêmio e Inter e faturou o Gauchão de 1954, colocando em evidência o goleiro Valdir de Morais e o meia Ênio Andrade. Mas o time das empresas Renner foi extinto em 1957. Também no Rio Grande do Sul vale a pena resgatar o 15 de Campo Bom. O clube existe desde 1911. Por muito tempo dedicou-se ao futebol amador, mas ganhou notoriedade quando se profissionalizou e, por muito pouco, não fez algo parecido com o Renner. Foi vice-campeão gaúcho em três ocasiões: 2002, 2003 e 2005 e em todas as edições perdeu o título para o Inter. O 15 de Campo Bom, como clube social, continua firme. Já o departamento de futebol profissional tenta se reerguer e existe a possibilidade de disputar a Terceira Divisão em 2020.
Grêmio Esportivo Renner, em 1953
Quem também tenta se reerguer é o São Caetano. O Azulão surgiu em 1981 e, praticamente no mesmo período, fez um sucesso ainda maior que o 15 de Campo Bom. Foi vice-campeão brasileiro em 2000 e 2001, ficando atrás de Vasco da Gama e Athletico Paranaense. Perdeu a Libertadores de 2002 para o Olímpia. Mas, ao menos, conseguiu garantir o Paulistão de 2004. O time que já teve Adhemar, Mineiro, Marcos Senna, Serginho e tantos outros, foi rebaixado no Paulistão de 2019 e prepara-se agora para encarar a Série A-2.
A “segundona paulista” é também endereço da Portuguesa de Desportos. Longe dos dias de glória, a Lusa tem uma dívida gigantesca e luta pela sobrevivência. Corre o risco inclusive de perder o estádio do Canindé. E nós sabemos que, caso isso aconteça, a história não terá mais volta. Um time que revelou talentos como Félix, Zé Maria, Marinho Perez, Leivinha, Enéias e Dener, atualmente é um rascunho do que já foi. Campeã paulista de 1973, a Portuguesa fez uma final histórica contra o Santos de Pelé e acabou dividindo o título porque o árbitro Armando Marques enganou-se nas cobranças de pênaltis e deu a vitória ao Peixe antes da hora. Em 1985 chegou à final novamente, mas perdeu para o São Paulo. E a sua última grande façanha aconteceu em 1996 quando decidiu o Brasileiro contra o Grêmio e acabou ficando com o vice-campeonato. O time tinha Clemer, Valmir, Emerson, César e Carlos Roberto, Capitão, Gallo, Caio e Zé Roberto, Alex Alves e Rodrigo Fabri.
O inferno da Lusa começou em 2013 quando a equipe, em uma situação muito mal explicada, utilizou o jogador Heverton de forma irregular, perdeu pontos, acabou rebaixada e livrou o Fluminense da Segundona.
Assim como a Portuguesa e o America, o Bangu é um time querido e histórico, Já não tem mais o apoio da fábrica de tecidos que impulsionou o futebol e abriu caminho para a presença de negros e operários no futebol. Não tem também mais ídolos do peso de Domingos da Guia e Zizinho. Também não tem mais o dinheiro do bicheiro Castor de Andrade, patrono do clube, que financiou a montagem da equipe que em 1985 chegou ao vice-campeoanto brasileiro e ao vice carioca. Mas pelo menos mantém o seu lugar na Primeira Divisão do Rio de Janeiro e sonha com dias melhores.
Dias tão promissores como os que vive o Bragantino, ou agora, Red Bull Bragantino. O campeão paulista de 1990 e vice brasileiro de 1991, cedeu seu nome e sua estrutura para montar uma parceria com a multinacional de energéticos que, agora, coloca em prática, aqui no Brasil, o mesmo modelo que utiliza na Europa com o Leipzig, da Alemanha, e o Salzburg, da Áustria. A fase onde brigava com dificuldades para manter-se na Série B do Brasileiro é passado. O projeto montado em Bragança Paulista torna-se o sonho de consumo de praticamente todos os times do futebol brasileiro, e principalmente daqueles que já foram gigantes e hoje são espantalhos que não assustam mais ninguém.
O ano de 2020 da América do Sul será uma extensão do turbulento 2019. A observação não é tanto um exercício de futurologia, senão uma análise das pautas que marcaram os últimos 12 meses. Peguemos alguns exemplos…
A Venezuela tem alguma perspectiva de solução do impasse político que iniciou neste ano? Nicolás Maduro não parece disposto a negociar e ainda conta com a sustentação da cúpula militar do país. O líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, desidratou e não parece mais ser o “autoproclamado” presidente que se vendeu no primeiro semestre. A violência segue nas ruas, com ataque a bases militares, e a escassez de alimentos persiste, com mais uma ceia de Natal suprida com aves russas. A Colômbia, ao lado, com todos os seus problemas, vive reflexos da situação venezuelana.
Do norte, vamos para o sul. A Argentina, mesmo com troca de governo, não apresenta sinais de recuperação. É verdade que Alberto Fernández não completou um mês na Casa Rosada, mas as políticas implementadas pelos peronistas repetem as que fracassaram com o neoliberalismo de Mauricio Macri. Aumentos de impostos foram aprovados pelo Congresso e também devem vigorar na populosa província de Buenos Aires, que cerca a capital do país.
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O tranquilo Chile entrou em erupção e até agora o presidente Sebastian Piñera não acertou a medida capaz de satisfazer uma população incomodada com anos de desequilíbrio econômico e social. A crise prossegue, bem como as incertezas sobre o futuro político do país
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A Bolívia, com a renúncia de Evo Morales, vive expectativa de uma nova eleição, com garantias de transparência. As primeiras pesquisas apontam uma divisão entre Carlos Mesa, ex-presidente moderado e opositor de Evo, e um jovem líder cocaleiro do partido do líder de origem indígena. Os artífices da ruptura colocada em prática vão aceitar os resultados das eleições organizadas por eles próprios?
Peru e Equador viveram dias intensos pela corrupção e decisões econômicas controversas, respectivamente, que acabaram desaguando nas ruas, em protestos e reações oficiais violentos. Já Brasil e Paraguai estão em um período de estabilidade, no qual, de forma contraditória, a instabilidade é a regra. A novidade mesmo vai ficar com o Uruguai, com novo governo.
A expressão latina quid pro quo significa a ação de dar uma coisa em troca de outra. No vivíssimo português, o sentido da frase ancestral se transformou graças a um livro farmacêutico levava esse nome. Com orientações para aplicar um princípio medicinal em vez de outro, com os mesmos efeitos, a publicação levou a culpa pelas confusões cometidas por seus leitores. Cada erro de receita sustentava o que virou o tão nosso quiprocó.
Coube ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos trazer o original latino de volta à pauta. O presidente Donald Trump, denunciado na Câmara dos Representantes por abuso de poder e obstrução do Congresso, responderá a um processo de impeachment no Senado.
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O motivo? Quid pro quo!
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Trump teria oferecido, ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, liberar recursos retidos na área militar. Em troca, o hóspede da Casa Branca pediu uma atenção especial à suspeita de envolvimento de Hunter Biden (filho do ex-vice e atual pré-candidato democrata à presidência, Joe Biden) em um esquema de corrupção empresarial no país do leste europeu.
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Na pura essência das letras, _quid pro quo_!
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No início de dezembro, Donald Trump anunciou sanções a Brasil e Argentina pela desvalorização do real e do peso diante do dólar. Segundo o presidente dos Estados Unidos, os dois latino-americanos se aproveitavam deliberadamente do peso e do poder da verdinha. Como punição, taxas sobre o aço e o alumínio produzidos por aqui. O presidente Jair Bolsonaro disse ter uma linha aberta com o colega do norte, mas não houve correspondência. E antes já tínhamos ficado a ver navios no caso da OCDE, quando Trump preferiu apoiar a adesão de Argentina e Romênia no grupo dos ricos.
Na nossa nova diplomacia, com Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e America first, Bolsonaro bem que queria firmar um quid pro quo com Trump. Mas só dando e sem receber nada em troca, apenas nos sobrou o quiprocó.
OUÇA Bendita Sois Vós #41 O que acontece quando não estamos olhando
Geórgia Santos
16 de dezembro de 2019
O Bendita Sois Vós desta semana trata das coisas que acontecem quando não estamos olhando – e quando estamos olhando também. Com este governo, não podemos piscar.
Porque enquanto Jair Bolsonaro chama Greta de Pirralha, indígenas estão sendo assassinados em suas terras. Enquanto a gente presta atenção ao presidente, o Congresso aprova o pacote anticrime, que de anticrime não tem nada. Enquanto se discute a liberdade de expressão no humor, o prefeito do Rio de Janeiro veta jornalistas da Globo de participarem de coletiva. E um homem veste uma suástica enquanto se distrai em um bar com naturalidade
Com Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro
Samir Oliveira
20 de novembro de 2019
Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.
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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?
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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.
O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.
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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.
Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.
A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil.
Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.
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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.
Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.
Faz tempo que tenho o hábito de ter comida no carro para quem pede na rua. Nos últimos meses, aumentou muito o número de pedintes. Tenho explicado para os meus filhos o que acontece no mundo. Explicado sobre a desigualdade. Explicado que não julguem. Explicado o impacto de não nascer “no lugar certo”, “na hora certa”.
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Esses dias, eu estava no carro com meu filho de cinco anos. Ele, com a lancheira na mão, disse:
“Mamãe, se a gente encontrar um morador de rua, vou dar meu lanche.”
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Eu quase tive um troço. Achei lindo. Ao mesmo, fiquei triste. Fiquei triste por perceber que ele, com cinco anos, entende tanto desse assunto. E seguiu.
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“Mamãe, ufa que nós temos casa, né?”
“Ufa, filho!”
“Mamãe, porque os moradores de rua não pedem pros trabalheiras fazerem casa pra eles?”
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O que responder depois disso? A lógica dele é perfeita. As pessoas precisam de casa e comida. Me comoveu a sensibilidade desse menino. Quero poder votar em algum político que tenha essa visão de mundo.
Evo Morales ficou acuado, não só politicamente. Teve de deixar o país se esgueirando entre espaços aéreos fechados até o México
A violência já vista nas ruas ganhou níveis cada vez maiores. Prisões injustificadas, ataques incendiários, agressões em praça pública marcaram o movimento que tinha como pretexto restabelecer a democracia da Bolívia. Um estranho grupo que mistura o extremismo militar com o fundamentalismo religioso (Rá!) tomou conta do poder. Uma senadora, Jeanine Áñez, reclamou para si a vaga da presidência e vestiu a faixa amparada pela Bíblia, pelos homens de farda e pela falta de quórum.
É bem verdade que Evo atropelou a regra do jogo ao forçar suas reeleições com manobras sobre manobras. O correto seria escolher um sucessor e deixar a decisão final nas mãos do povo. Mas não deixa de ser óbvio que não é (ou não deveria ser) a força militar a decidir como ou quem vai liderar a transição, da forma como está acontecendo, e pior: sem a certeza de que vai haver transição.
Tendo claro o que houve na Bolívia, vamos para fora dela
A América do Sul assumiu uma postura interessante nas relações exteriores. O tão temido aparelhamento ideológico de outrora com outrem agora dá as cartas da diplomacia no continente sem constrangimentos. Para substituir a comunista Unasul, tomada pelo Foro de São Paulo, inventou-se o Prosul, de Macri, Piñera, Bolsonaro e companhia. A nova organização, de tendência liberal-conservadora (com toques de olavismo), iria reunir os interesses dos países do continente. Mas até quando? Macri já está fazendo as malas da Casa Rosada e Piñera não sabe se termina sua estadia em La Moneda.
A negociação e a conciliação ficam em segundo plano, enquanto lideranças aproveitam as crises alheias para obter ganho político para a ideologia. Jeanine Áñez, a Guaidó boliviana, já foi reconhecida como presidente pelo Brasil de Bolsonaro. Certamente não será reconhecida pela Argentina de Fernández. Como fica?
As opiniões de governo assumiram o lugar de posições de estado. A Organização dos Estados Americanos, que deveria ser a voz da ponderação, cedeu aos gritos dos mais fortes, dizendo que não houve golpe senão os de Morales. Na reunião do grupo, Estados Unidos e Brasil apoiaram o resultado do golpe. Chile e Peru, comandados por líderes de centro-direita, ficaram constrangidos em endossar a clareza bolso-trumpiana. Já países com presidentes de esquerda ficaram a ver navios na Bolívia que não tem mar. Uruguai e México criticaram a inaceitável pressão militar.
Sem estados e movida pelos interesses de governos de plantão, a OEA poderia trocar de nome para OGA. A Organização dos Governos Americanos vige até segunda ordem (garantida, sempre que necessário, com a força dos quartéis).