Reportagens Especiais

As origens dos conflitos entre Israel e Palestina

Tatiane de Sousa
24 de outubro de 2023
Cena em Khan Yunis, na área de Gaza, no sul da Palestina, mostrando uma família refugiada em sua casa improvisada, entre 1948 e 1949. Foto: UN Photo

Os violentos ataques do Hamas – cujo nome é um acrônimo de Movimento de Resistência Islâmica em árabe – a civis israelenses no início do mês surpreendeu as forças de inteligência de Israel, mas não pode ser considerado súbito se olharmos para a história das disputas territoriais e políticas na região. 

Imagens e relatos chocantes do que se sucedeu desde o primeiro ataque em 07 de outubro gearam revolta em todo o mundo diante da crueldade das ações consideradas terroristas. Há quem argumente, no entanto, que, historicamente, ações semelhantes já aconteceram em outros períodos também contra a comunidade palestina da qual o grupo extremista faz parte, apesar de não representar a maioria dos palestinos.

Para compreender melhor a dimensão do conflito , é preciso voltar no tempo e retomar a origem e histórico desta disputa. 

Um dos marcos mais importantes dessa disputa é o início do movimento sionista, entre o final do século XIX e início do século XX, que defendia a autodeterminação do povo judeu e um Estado nacional judaico no território onde existiu o antigo Reino de Israel. No local, porém, já estavam os palestinos, à época em poder turco-otomano. Sionistas começaram, então, a comprar algumas terras e assentar colonos judeus na região. “Essas primeiras levas de migração não foram um problema porque eram apenas cerca de 20 mil pessoas, mas o cenário ficou mais complicado a partir da Primeira Guerra Mundial, porque os britânicos estavam de um lado da guerra e o Império Otomano do outro. E para conseguir apoio na guerra, os britânicos fizeram acordos tanto com judeus quanto com árabes, acordo esses que não conseguiram cumprir porque eram incompatíveis: não era possível garantir um grande estado árabe e assentar os judeus lá na Palestina”, explica Denise De Rocchi, doutora em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Relações Internacionais do Mundo Árabe (Nuprima/UFRGS).

Ou seja, a noção de um estado nacional não existia na região até a Primeira Guerra, que ocorreu de 1914 a 1918, quando os otomanos foram, então, derrotados por França e Reino Unido. Com a queda do Império, a região do Levante foi dividida entre os vencedores,  exceto pela Turquia, e os britânicos ficaram com a Palestina, um território multirreligioso que, naquele momento, era de maioria muçulmana, mas que também abrigava cristãos e judeus. 

Mas ao contrário do que os franceses fizeram na Síria e Líbano, o Reino Unido manteve o território com status indefinido. 

Enquanto isso, a perseguição aos judeus na Europa aumentou imensamente durante a Segunda Guerra e, consequentemente, na tentativa de fugir do que viria a ser o Holocausto, aumentou também a migração para a região da Palestina. Neste contexto, os britânicos tentaram limitar a entrada e manter o controle do território, estabelecendo um número de cotas de migração, o que provocou mais divergências e inflou movimentos mais radicais que queriam a saída do Reino Unido do comando. 

Mesmo com a limitação, porém, duas identidades passam a colidir na região a partir do aumento da migração: a dos árabes, formada por muçulmanos, principalmente, cristãos e, posteriormente, pela emergente identidade palestina; e a dos judeus. E a disputa se intensificaria a partir da criação do Estado de Israel após o fim da Segunda Guerra. 

A criação do Estado de Israel

Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU), presidida pelo Embaixador brasileiro Oswaldo Aranha, aprovou o Plano de Partilha da Palestina, que consistia em dividir o território em dois Estados: um judeus e outro árabe. Sendo que as áreas de Jerusalém e Belém permaneceriam sob controle internacional. A proposta era destinar 53% do território aos 700 mil judeus que viviam na região e 47% para 1,4 milhão de árabes. Foram 33 votos a favor do Plano, 13 votos contrários, 10 abstenções e uma ausência. A Agência Judaica aceitou a resolução e os países da Liga Árabe se opuseram.

Vista parcial da última reunião do Comitê Ad Hoc de 57 membros sobre a Questão Palestina que aprovou a resolução sobre a divisão da Palestina em Estados Árabes e Judeus, em 25 de novembro de 1947, Nova York. Foto: UN Photo

Em 14 de maio de 1948, foi declarada a Independência do Estado de Israel, já em meio a uma guerra civil entre árabes e judeus. Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita atacaram o novo país em rejeição ao Plano de Partilha da ONU. Para os israelenses, é a Guerra da Independência, para os palestinos, é a Nakba, ou A Catástrofe.

Esse confronto terminou com um acordo de armistício depois de forças judaicas desbaratarem exércitos árabes e ampliarem o domínio sobre o território. O restante do mapa foi ocupado pela Jordânia, que anexou a Cisjordânia, e pelo Egito, que anexou a Faixa de Gaza. Milhares de judeus foram expulsos de países árabes e a ONU estima que mais de 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas e tornaram-se refugiados. 

Cena em Khan Yunis, na área de Gaza, no sul da Palestina, mostrando uma família refugiada em sua casa improvisada, entre 1948 e 1949. Foto: UN Photo

A Nakba é lembrada pelos palestinos todos os anos no dia 15 de maio, quando eles saem às ruas com chaves que representam as chaves das casas das quais foram expulsos há 75 anos e para as quais nunca puderam retornar. Mas o final da guerra em 1949 não seria o fim dos conflitos.

Em 1967, usando como justificativa a movimentação militar de forças árabes nas fronteiras,  Israel dá início a uma ofensiva contra Síria, Egito, Jordânia e Iraque e que ficaria conhecida com a Guerra dos Seis Dias. Israel derrotou os países árabes e tornou-se uma potência na região, ampliando ainda mais o território, que agora incluía as Colinas de Golã (controle dividido com os sírios), a Cisjordânia e a península do Sinai (controle dividido com os egípcios). Além do controle de Jerusalém. Há outro resultado, no entanto, produzido por esse conflito: mais 350 mil refugiados palestinos, novamente expulsos e rejeitados por alguns países árabes.

Há décadas, árabes acusam sionistas pela expulsão dos palestinos em 1948 enquanto israelenses dizem que os países árabes pediram a saída dos palestinos. Ainda hoje, mais de 5,9 milhões de refugiados palestinos vivem em acampamentos na Jordânia, Gaza, Cisjordânia, Síria, Líbano e Jerusalém Oriental, segundo informações da ONU.

Alguns dos estimados 60 mil refugiados palestinos que viviam no campo de Baqa, 25 quilômetros a noroeste de Amã, capital da Jordânia, em 1968. UN Photo/FAO/P. Pittet.

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A PAZ É POSSÍVEL?

 

As perguntas principais neste momento em todas as partes do mundo são quando e de que forma pode-se chegar à pacificação dos conflitos naquela região. Denise De Rocchi lembra, porém, que, como aconteceu na luta contra o colonialismo em vários territórios, nem tudo foi feito de forma pacífica. “Em muitos locais perceberam que só através da negociação política não estavam conseguindo seus objetivos. Então, quando parte da população se sente alijada de seus direitos, não consegue ter participação política de outra forma, acaba usando o caminho da força, da violência, para conseguir derrotar o outro grupo e atingir objetivos”, explica a pesquisadora. Ela acrescenta que em muitos países foi necessário firmar um acordo que permitisse baixar as armas e incorporar o grupo beligerante nas conversas. Como na Irlanda com o Exército Republicano Irlandês (IRA), na Espanha com o ETA (Pátria Basca e Liberdade) e na América do Sul com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), que permitiram que anistiados pudessem participar das negociações.

Organizações ligadas a direitos humanos e assistência humanitária temem que o governo de  Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, possa insistir em uma espécie de ataque em massa na Faixa de Gaza em represália ao Hamas e cause ainda mais mortes e a expulsão da população fixa da região. O entendimento desses mecanismos é que o do poderio militar e a tentativa de aniquilar o inimigo só prolongue o ciclo de violência. “Tem também uma falta de mecanismos no cenário internacional para forçar a implementação dos acordos realizados. A gente já está vendo um aumento do preconceito e da violência física ou verbal contra pessoas identificadas como palestinas e israelenses. Isso não acontece só no local dos conflitos, mas também em outros países onde essas pessoas estão vivendo e estão nessa diáspora. Temos todo um estereótipo sobre árabes, sobre a população islâmica, sobre a comunidade judaica, coisas muito anteriores a esses conflitos e que agora tem uma faísca que faz isso emergir nesse momento”, acrescenta a pesquisadora Denise De Rocchi.

Mesmo antes desse conflito, o Índice de Opinião Árabe de 2022, pesquisa realizada no segundo semestre do ano passado com mais de 33 mil pessoas em 14 países árabes pelo Centro Árabe de Pesquisa e Estudos Políticos em Doha, Catar, apontou que 76% das pessoas ouvidas entendem que a questão política-territorial na região é um problema de todos os árabes e não só dos palestinos. Dos que responderam ao questionamento, 84% disseram que se oporiam ao reconhecimento diplomático de Israel por parte de seus países. Mais do que isso, 38% consideram Israel uma ameaça à segurança do mundo árabe e 20% apontaram os Estados Unidos como um perigo. O motivo é a vinculação do desrespeito a acordos territoriais firmados e que não são cumpridos. 

Fonte: Arabdcenter.org/resource/arab-opinion-index-2022-executive-summary/

O estudo mostra que o conflito vai muito além de uma disputa e um risco para palestinos e israelenses. “Quando o conflito é analisado na perspectiva histórica, percebe-se que o colonialismo prejudicou a região. Ao invés de criar um entendimento, fomentou a disputa entre as partes. E nota-se também a fragilidade dos palestinos, que encontraram menos apoio e respaldo na comunidade internacional. O apoio dos EUA à política israelense tem um grande impacto. Hoje se vê que o acordo de territórios não foi respeitado e sem que haja sanções que façam com que o governo israelense cumpra esses acordos e distensione a situação. Há medo da violência, mas isso também acabou sendo capitalizado pelo governo do Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, para ele seguir com essa política que agora está mostrando que tem um esgotamento, que não resolve o problema. Então fica Israel com preocupação constante com segurança pelas relações frágeis com todos da região”, analisa Denise De Rocchi. 

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O PAPEL DO BRASIL NA GUERRA

 

O Brasil é um dos países que mais acolheu populações árabes no mundo e também tem uma comunidade judaica muito numerosa. Além disso, tem capacidade e qualidade diplomática reconhecida, sendo que sempre participou das discussões em órgãos multilaterais e reivindicou participação em negociações. O país costuma ser aceito como mediador por não se envolver no conflito tomando parte por um dos lados, mas negociando a paz.  “Estamos numa segunda onda de guerra que sacode a opinião pública brasileira: teve a questão da Ucrânia e agora de novo. Algumas pessoas acham que a forma de solucionar o problema é tomar um dos lados, mas a diplomacia tenta colocar as duas partes para conversar na mesa de negociação, sem se posicionar. Às vezes, vendo cenas tão chocantes, as pessoas ficam revoltadas e querem uma resposta dura e imediata contra os responsáveis pelo que elas estão vendo,”, explica a professora. Mas não é tão simples. 

 

Imagem de capa: Cena em Khan Yunis, na área de Gaza, no sul da Palestina, mostrando uma família refugiada em sua casa improvisada, entre 1948 e 1949. Foto: UN Photo

Reportagens Especiais

Haveria um outro destino para Ângela Diniz?

Geórgia Santos
15 de outubro de 2023
alerta de gatilho – violência doméstica

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Imagem: colagem de imagens de Ângela Diniz e Doca Street e produzidas a partir de reprodução da Revista Manchete e de imagens do processo de Rosana*

A socialite Ângela Diniz foi assassinada em 30 de dezembro de 1976, dentro da própria casa, em Búzios, no Rio de Janeiro. Foram três tiros no rosto e um na nuca. Quem puxou o  gatilho foi o namorado, Raul Fernando Street, o Doca, uma figura frágil. No laudo do perito, recuperado pela produção do podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, lemos que quando as balas a encontraram ela usava “biquini azul tendo, na região frontal, o desenho de uma cabeça de pantera de cor preta.” Uma perversidade do destino com quem era chamada de “a Pantera de Minas”, apelido dado pelo colunista e amigo Ibrahim Sued, com quem Ângela tivera um relacionamento. O texto segue: “Junto ao ombro direito da vítima, encontrava-se uma pistola automática, oxidada, da marca Beretta, calibre 7,65 mm, com o carregador vazio.” 

Carlos Heitor Cony, na edição 1291 da Revista Manchete, de janeiro de 1977, escreve abre a reportagem sobre a morte de Ângela  de maneira crua: 

“Tinha gente que ia à missa na Igreja de Lourdes, em Belo Horizonte, só para ver o meu vestido novo. Todos os domingos, minha mãe me dava uma roupa nova. Aos 12 anos eu já era sucesso.” Vinte anos depois, essa menina que deslumbrava Belo Horizonte (e mais tarde escandalizou a cidade) estava deitada numa mesa de mármore, fria e imunda, no pequeno necrotério de Cabo Frio. Quase nua, apenas a tanga e a blusa, o rosto mutilado, os dentes trincados, como se mordessem o último pedaço de vida a que tinha direito. Muita coisa aconteceu na vida de Ângela Diniz: um casamento falido, três filhos, um crime de morte em seu próprio quarto, à beira da sua cama. Problemas de tóxico e de amor, ela queria muito e ao mesmo tempo, até que de repente tudo acabou. Frase de uma senhora mineira, durante o seu sepultamento: “Finalmente, ela descansou.”

Poucas pessoas comparecem ao sepultamento de Ângela Diniz – Reprodução, Revista Manchete.

O assassinato de Ângela Diniz provocou uma comoção no país, mas não pelos motivos que se espera, não pelo feminicídio – palavra que sequer existia no vocabulário dos brasileiros. De início, a surpresa de um crime tão bárbaro acometer a alta sociedade mesclava-se à incredulidade com o fato de tragédias acometerem aos ricos e famosos e belos. Mas em seguida Ângela revelou-se a vítima imperfeita e os motivos da atenção foram não tão lentamente sendo moldados sob a ótica de uma sociedade cruel e moralista. Ela costumava dizer: sou rica, bonita e boa de briga. E era tudo isso. E as pessoas detestavam isso. 

Na página dez da mesma Manchete, há uma frase de Ângela que dá uma ideia da mulher nada recatada: “Só tenho uma vida e quem decide sobre ela sou eu.” Mas a sentença do texto seguia cruel: “Suportar ou não suportar essas consequências [da vida] eis questão.” A frase era boa, explicava tudo. Ela continuou fazendo das suas, suportou as consequências tão bem que acabou varada de balas.” Duas semanas depois, na edição 1293, o mesmo semanário traria uma entrevista com Doca Street, então foragido, conduzida pelo jornalista Salomão Schvartzman. 

Doca se apresenta como uma figura atormentada, que sofre de saudade, que sofre pelo “amor alucinado” que dedicou a Ângela. Dizia que queria morrer, mas seguiu vivo até 2020, quando faleceu aos 86 anos. Ali, naquela entrevista, antes mesmo de se entregar à polícia, ele admite que a arma era dele, que estava louco de ciúmes, que a relação era conturbada. Ele admite que atirou, só alega não lembrar quantas vezes. Ainda assim, ele não parecia assumir a responsabilidade pelo crime. A primeira coisa que ele diz é que ela nunca se sustentou, se defendendo da alegação de que ele não ganhava dinheiro algum e, até aquele momento, dependia da fortuna da ex-mulher, Adelita Scarpa. E segue:

“Foi uma paixão violenta, possessiva, uma paixão total somada a um ciúme doentio. Amei como jamais amei outra mulher. Quis dar a Angela uma outra imagem, queria que ela vivesse outra vida, que tornasse a ter os filhos perto dela, como verdadeira mãe. Ela me prometeu que mudaria seu comportamento.” Ou seja, a culpa foi dela. 

A entrevista toda é entrecortada por frases que apontam para uma suposta inevitabilidade da violência. “Consegui modificar Ângela em muitas coisas, mas o que a estragava era a vodka”; “Disseram que eu não deixava Angela sair de casa. É verdade. Mas fazia isso por causa da compulsão que ela tinha em provocar os homens à sua volta”; “Não sei o que acontecia no seu íntimo, que lhe dava um prazer especial em me espicaçar, em me torturar, ferindo a minha sensibilidade”. Como disse antes, um homem frágil. Ele não pôde evitar.

De acordo com o que apurou a produção do podcast Praia dos Ossos, o delegado Newton Watzl, de Cabo Frio, leu a entrevista. E gostou. “É como se o Doca fosse um Dom Quixote moderno dentro do nosso mundo materialista.” Era ele quem cuidava do caso. 

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LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

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A estratégia traçada pelos advogados de Doca Street deu certo e não demoraria para a narrativa do crime passional ser dominante. O homem ponderado, cidadão de bem, apaixonara-se por uma mulher intensa e, em um momento de destempero, perdera a cabeça. Ele não era realmente assim. E conforme o tempo foi passando, boatos e conjecturas se misturaram à realidade e, até o momento do julgamento, em 1979, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ou, parafraseando o delegado, um Dom Quixote moderno. Ele estampava camisetas, nome de pratos em restaurante. Também em um trecho do podcast, sabemos que havia até um coquetel batizado em sua homenagem, que era servido com quatro balinhas no copo. Henfil foi quem melhor traduziu o que se passou naqueles três anos. “Tão quase conseguindo provar! Ângela matou Doca”, escreveu nO Pasquim.  

Assim, ignorando uma relação turbulenta, apenas de curta; ignorando que ele era agressivo com as pessoas à sua volta; ignorando que andava armado; ignorando que ele batia, ameaçava e agredia Ângela, o advogado Evandro Lins e Silva levou ao júri a tese da”legítima defesa da honra”. E voltou. Raul Fernando Street foi condenado a dois anos de prisão e, como réu primário, cumpriu a pena em liberdade. A sentença provocou uma reação sem precedentes e movimentos feministas lutaram para que ele fosse novamente julgado. E conseguiram. Na segunda vez, ele  foi considerado culpado e recebeu pena de 15 anos. Cumpriu um terço. 

A história da Pantera de Minas é contada no filme “Angela”, de Hugo Prata, que estreou nos cinemas em setembro deste ano. Um mês depois de a tese da “legítima defessa da honra” ser derrubada, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), 47 anos depois do assassinato que seria uma divisor de águas na justiça brasileira. 

Pela tese aceita até então, um réu agressor poderia alegar que sua honra havia sido ferida a partir do comportamento da vítima e, por isso, o crime havia sido cometido. De maneira prática, se uma mulher cometesse adultério, por exemplo, era como se o homem tivesse direito de se defender. E isso foi usado ao longo de décadas para, no limite, inclusive inocentar assassinos – como quase aconteceu com Doca. E não que seja um crime incomum por aqui.

No Brasil, o feminicídio foi incorporado ao Código Penal como uma qualificadora do crime de homicídio em 2015. Assim, a definição dada pela Lei Nº 13.104/2015 considera o feminicídio um tipo específico de homicídio doloso, cuja motivação está relacionada ao contexto de violência doméstica ou ao desprezo pelas mulheres, pelo sexo feminino. Um levantamento do Monitor da Violência, parceria do site G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) mostra que houve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com 2021. Segundo o que mostram os dados oficiais dos 26 Estados e do Distrito Federal, mais de 1,4 mil mulheres foram assassinadas pelo fato de serem mulheres. É uma morte a cada seis horas. O número é o maior registrado no país desde que a legislação foi atualizada. Se forem consideradas as mortes de mulheres  também sem a qualificadora, o número cresceu 3% entre 2021 e 2022 e chega a 3.930 assassinatos. Segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019. 

A pesquisa “Visível e Invisível”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, ainda mostra que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022. Estima-se que 33,4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais experimentaram alguma forma de violência por parte do parceiro ou ex. O resultado é superior à média mundial, estimada em 27% segundo o Global Prevalence Estimates of Intimate Partner Violence, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Mas há um detalhe sobre a suposta legítima defesa da honra: ela não aparece no Código Penal. O texto estabelece, sim, que “a legítima defesa pode ser empregada para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ou seja, defesa da própria vida, não da honra. 

A ação contra o argumento foi apresentada ao STF pelo PDT  em janeiro de 2021. No mesmo ano, o relator, ministro Dias Toffoli, suspendeu o uso da tese da legítima defesa da honra em julgamentos por meio de liminar. A decisão foi referendada por todos os ministros até que, em 29 de junho, Toffoli proferiu o voto, dizendo se tratar de um recurso argumentativo cruel. “A legítima defesa da honra é um estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no Brasil”, disse. 

Todos acompanharam o voto do relator. A ministra Cármen Lúcia foi didática: “A vitimização do réu nestes casos se faz indo em busca de informações sobre a mulher, ‘o que ela teria feito para merecer isso’. Portanto, sendo merecedora do assassinato, no caso do feminicídio, o homem não teria feito nada demais. E isto não é algo que esteja afastado da realidade brasileira de 2023. Uma mulher é violentada a cada quatro minutos no Brasil em 2023”. Durante o voto, a ministra relembrou o caso de Ângela Diniz. 

Eu sempre me perguntei e agora, diante disso, volto a me questionar como seria se houvesse um outro destino para Angela Diniz. Será que as mulheres imperfeitas seriam absolvidas? Como seria se ela, sim, tivesse agido em legítima defesa? Como seria se ela tivesse reagido às agressões, tomado a arma das mãos de Doca e atirado contra ele até que ele tombasse? Não precisei ir muito longe para descobrir que esse mesmo benefício raramente é concedido quando a história se inverte e a vítima se levanta. “A mulher, quando senta no banco dos réus, existe uma violência estatal muito forte contra ela”, diz o defensor público Andrey Régis de Melo. 

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ROSANA E ROBERTO

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Na primeira página do processo, leio: homicídio simples. Eu sei que se trata da tipificação, mas não pude deixar de pensar que não é nada simples. Assim como Ângela e Doca, Rosana e Roberto namoravam há poucos meses. E assim como o de Ângela e Doca, era um relacionamento violento. Mas diferente do que houve com Ângela e Doca, Rosana matou Roberto, não o contrário. Na noite de 06 de janeiro de 2005, Rosana deu uma facada no namorado que a segurava pelo pescoço. No auto de necropsia, lemos que Roberto apresentava uma “lesão perfuro-cortante na região peitoral esquerda com 27mm de extensão.” A facada perfurou o coração. Bastou um golpe. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

O nome dela não é Rosana mesmo, ela pediu para não ser identificada quando eu entrei em contato para que contasse sua história. De início, ela topou. Mas dois dias depois, enviou um áudio explicando que não conseguiria. “Eu comecei a me lembrar de tudo que eu passei, de todo aquele sofrimento. Foram vários anos de muito sofrimento e muita angústia. Eu não quero nem lembrar, foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas e eu não quero nem lembrar”, me disse. Acontece que Rosana foi denunciada e pronunciada por homicídio simples e, por 18 anos, o seu destino esteve nas mãos de quem não levou em conta as marcas de esganadura que ela trazia no pescoço e, muito menos, a palavra dela. 

Em respeito à Rosana, eu não insisti com as perguntas sobre como tudo aconteceu e decidi recorrer aos autos. No depoimento que prestou à polícia no dia seguinte aos fatos, Rosana conta que ela e Roberto Keppler começaram a namorar em novembro de 2004. Em dezembro, o namorado a convidou para morar com ele e, assim, começa a história de violência:  

“Que ficou uma semana morando junto com a vítima. Que a vítima sempre queria lhe agredir, só não fazendo porque “eu corri e foi (sic) posar na casa dos vizinhos”; que posou na casa da mãe da I.M.; que a vítima sempre “me ameaçava de agressão”.” 

Note que, neste depoimento, a vítima é o Roberto.

“Que ontem, 06.01.05, por volta de 19h3 ou 20h, Roberto chegou com um litro de cachaça, já com sinais de embriaguez e disse: Rosi, hoje eu vou quebrá (sic) a tua cara, hoje eu vou te matá (sic)” Que pediu para o Roberto parar, pois estavam na casa da amiga e não queria fazer fiasco; que Roberto convidou a depoente dizendo “tu qué apanhá (sic) lá em casa?”; que concordou em descer junto com Roberto até a casa dele, porém pediu para tomar um banho. Que foi tomar banho e neste momento a I.M. veio lhe dizer para não descer junto com ele porque ele ia lhe bater. Que se escondeu no quarto, porém antes pegou uma faca tamanho grande, cabo de madeira, na cozinha da I.M. e foi para o quarto; que deixou a faca sobre o balcão e se escondeu atrás da porta; que I.M. foi dizer para o Roberto que a depoente tinha fugido; que Roberto disse “eu vou achar a R. nem que seja no inferno” e entrou para dentro do quarto, fechou a porta e começou a chamar a depoente de “vagabunda, vadia, vou quebrar a tua cara”; que pediu para sentar e conversar, mas Roberto disse “não tem conversa contigo, eu vou quebrar a tua cara, vou bater onde mais dói, vou te quebrar tudo”; que Roberto falava em tom baixinho, não elevou a voz nenhuma vez; que implorou para ele parar dizendo “tu qué (sic) que eu me ajoelhe aqui, vamo para (sic) com isso, pelo amor de Deus”; que neste momento Roberto lhe deu um tapa na “cara” e a depoente continuou pedindo para ele parar, porém Roberto lhe pegou pelo pescoço e disse “agora vou te matar” e começou a apertar; diz a depoente que estava sufocada, que não conseguia mais respirar e falar, neste momento lembrou da faca, “levei a mão pra trás, peguei a faca e finquei, eu tava desatinada, eu não sei onde atingi”; “quando eu grudei a faca ele me largou e eu saí apavorada”. 

Segundo testemunhas, Roberto saiu do quarto cambaleando e dizendo: “Ela me arrebentou o coração.” e tombou no chão da cozinha. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

Rosana pediu abrigo na primeira casa que encontrou e ficou lá até a manhã do dia seguinte, quando voltou para a casa da amiga e só então soube que o namorado estava morto. “Eu não acreditava que tinha matado ele.” Ela foi encaminhada para exame de lesão corporal em que se atestou que ela havia sofrido violência: “Apresenta contusão na face lateral esquerda da região cervical.” Mesmo assim, o delegado pediu a prisão preventiva. O juiz indeferiu, mas deu seguimento ao processo. Ela seria julgada por homicídio. 

Segundo o defensor público Andrey Régis de Melo, responsável pela defesa de Rosana no tribunal do júri, a versão dela foi desconsiderada ao longo do processo. “Não é levada em conta pelo delegado de polícia, que acaba iniciando ela; não é levada em conta pelo promotor da época, que acaba denunciando ela; não é levada em conta pelo juiz, que pronuncia. E no julgamento, a promotora também não reconhece a legítima defesa”, conta. 

Um tempo depois, a prisão preventiva foi decretada novamente, mas Rosana havia se mudado e não havia notícias do seu paradeiro. Ela foi considerada foragida até que foi presa em 2016. “Ela foi registrar uma ocorrência policial, inclusive, e aí ficou sabendo que existia essa prisão preventiva referente a esse processo”, explica o defensor.  

Rosana só seria julgada em agosto de 2023. A acusação passou de homicídio simples para lesão corporal seguida de morte, com pena de quatro a 12 anos de reclusão. O defensor Andrey Régis de Melo explica que o caso é muito emblemático sobre como as vítimas que reagem à agressão são tratadas no sistema. “Foi desconsiderado que ela era uma vítima de violência doméstica. Ela já havia sido agredida por ele, inclusive havia informações dando conta de que uma vez ela praticamente se jogou na frente de uma viatura da Brigada Militar pedindo socorro. Ele fugiu na oportunidade e depois confidenciou para uma policial militar que estava armado. Então, era uma relação de poucos meses, mas já tinha os indicativos muito fortes de que ela era vítima de violência doméstica.”

Desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, o debate em torno da violência de gênero vêm se fortalecendo, assim como a construção de uma rede de proteção às mulheres. Mas a violência estatal em julgamentos como esse perdura. “Quando a mulher senta no banco dos réus, ela é muito violentada”, aponta o defensor. E a violência de gênero, segundo ele, pode ser notada em diversos âmbitos, não apenas em casos em que isso é julgado especificamente. Por exemplo, em casos que envolvem organizações criminosas. “Nós temos o maior encarceramento feminino da nossa história e não é feito um debate, por exemplo, sobre o quanto elas são violentadas dentro de facções. A gente não vai deparar com homens cedendo o próprio corpo para transportar drogas, mas as mulheres fazem isso porque muitas vezes elas estão sofrendo violência psicológica, violência física e isso é totalmente desconsiderado.” O defensor Andrey Melo disse que já chegou a ouvir de um desembargador que uma mulher coagida poderia ir à polícia e registrar um boletim de ocorrência. “Por que ela não vai numa delegacia? Porque no outro dia tá morta.”

Rosana foi absolvida, afinal. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, antes representada pela defensora Kedi Leticia Bagetti. Mas não significa que ela não tenha, de certa forma, cumprido uma pena. É o que se chama de pena processual, que é o tempo que as pessoas ficam sentadas no banco dos réus.  E a “pena processual” de Rosana foi longa. “Graças a Deus foi feita a justiça. Eu fui absolvida e eu quero deixar lá no passado. Eu não quero nem lembrar porque foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas. Passa todo aquele filme novamente na minha cabeça e foi muito sofrimento para mim. Graças a Deus isso acabou”, desabafa Rosana. 

No interrogatório do julgamento, ela estava muito emocionada. Chorou bastante. Sabia que a vida dela, dos dois filhos e do marido dependia do desfecho daquela história.  “Porque é um trauma para vida dela. A facada que ela dá no então namorado, companheiro dela, é um ato de socorro, é o que restou. Ela está sendo esganada dentro de um quarto, inclusive por um agressor que xingava ela, zombava dela. Então não dá para entender. Sinceramente, não dá para entender porque que ela foi denunciada e submetida a julgamento”, questiona o defensor. 

A proibição pelo STF do uso da tese da legítima defesa da honra é um avanço, mas existe muita coisa ainda para mudar no sistema judicial brasileiro. O caso da Rosana é um exemplo de como ainda não se compreende a complexidade das relações a que as mulheres são submetidas. Porque até então, para se defender homens agressores, usava-se um recurso que sequer consta no Código Penal enquanto as mulheres que se defendem mal conseguem se defender com o que está, de fato, escrito na legislação.

Ou seja, a mulher acaba sendo submetida a diversas violências durante processo como esse. 

“Teve um momento no julgamento que a acusação diz o seguinte: olha, não há uma prova da versão dela. Aí eu até interrompi a promotora e disse : olha, Doutora, com todo respeito do mundo, mas quando a senhora diz que não há uma prova em relação à versão dela, inclusive desconsiderando o laudo médico, a senhora simplesmente tá dizendo que essa mulher aqui, que apresentou todo esse sofrimento hoje aqui, é uma mentirosa. É só uma forma elegante de dizer que essa mulher está aqui mentindo. Porque em um crime que só tem ela e o companheiro agressor, e ele morre e ela traz uma versão, é óbvio que só vai existir essa versão dela”, me conta o defensor. 

O caso da Rosana mostra que a misoginia do sistema não permitiria outro destino para Ângela Diniz. Ela não seria tratada com a benevolência do agressor. Mas o defensor Andrey Melo faz ainda outra pergunta: “Se fosse um homem que tivesse uma marca de esganadura no pescoço e que tivesse dado um único golpe de faca e que existisse pessoas dizendo que ele já havia sido agredido pela mesma pessoa. Será que esse homem seria submetido ao Tribunal do Júri?”

Reportagens Especiais

O conto do bioma invisível

Geórgia Santos
26 de setembro de 2023

Atualizado em 02 de outubro de 2023

A reportagem do Vós fez uma incursão pelo Pampa gaúcho e mostra porque ele é o bioma menos preservado – e menos protegido – do Brasil. Uma mistura perigosa de desinteresse, desinformação e dinheiro gerou o ambiente perfeito para a devastação da paisagem que é patrimônio cultural do Rio Grande do Sul. 

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Parece um conto de realismo mágico. Aqui, floresta grande e alta é mau sinal; colinas muito verdinhas e uniformes indicam uma espécie invasora; e gado pastando é sinônimo de vegetação preservada. É estranho. O senso comum sobre preservação ambiental não basta para entender o que acontece nestas terras. Ou seja, é preciso conhecer o Pampa para proteger o Pampa. Não basta olhar sem essa vontade, porque a supressão de campo nativo só é evidente para quem quiser ver. Assim começa o conto do bioma invisível.

“Como é que um leigo reconhece a devastação no Pampa?” Essa foi uma das primeiras perguntas que eu fiz à pesquisadora Ana Rovedder. Estávamos frente a frente, na sala dela, no segundo andar do departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Ela ficou pensativa, me disse que nunca ninguém havia perguntado isso a ela. Mas eu viajava havia dias pela metade sul do estado e, centenas de quilômetros depois, me incomodava o fato de eu ainda ter dificuldade para identificar o que era esperado da paisagem natural e o que era devastação. 

Acontece que a paisagem do Pampa não é composta de belas florestas tropicais como a Amazônia ou a Mata Atlântica. O Pampa é um bioma de campo que está restrito ao estado do Rio Grande do Sul, onde ocupa uma área de 176.496 km² (IBGE, 2004). Isto corresponde a 63% do território estadual e a 2,07% do brasileiro – o bioma estende-se, ainda, por Uruguai, Argentina e Paraguai.

Os campo cobertos de gramíneas espraiam-se cuidadosamente sobre as coxilhas, que é como chamamos as colinas com declives. A vastidão do Pampa preservado é impressionante. É possível enxergar o horizonte a quilômetros de distância, sem nada que obstrua a vista. A paisagem natural é pintada de tons de verde esmaecido e palha que, eventualmente, encontram o céu azul. E apesar do predomínio dos campos nativos, há também matas ciliares, matas de encosta, matas de pau-ferro, formações arbustivas, butiazais, banhados, afloramentos rochosos, etc.

A riqueza da biodiversidade brasileira é notória e as imagens das altas árvores das florestas tropicais e rios de quilômetros de largura são exportadas junto de papagaios, araras e onças-pintadas. Mas há formas de biodiversidade mais sutis, como  a do Pampa, que podem ser difíceis de se perceber. Para se ter uma ideia, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) encontraram 57 espécies diferentes de plantas em 1 m² de campo nativo por estas bandas. O faz o Pampa o bioma brasileiro com a maior diversidade de vegetação nativa por metro quadrado. 

Mas com exceção do que se nota na rodovia, de dentro do carro, que é algo obviamente escancarado, é difícil identificar a devastação quando se olha para o horizonte. É difícil saber se aquelas árvores deveriam estar ali, se aquele verde é da paisagem natural ou tem a mão do homem – que está cada vez mais pesada.

O biólogo Marco Azevedo explica que essa característica de “bioma invisível” não deixa de ser fruto de desinformação e faz com que o Pampa se torne um alvo fácil de uma espécie de desinteresse deliberado. Ele atua na área de pesquisa científica, conservação e gestão ambiental no Rio Grande do Sul há 18 anos. Ele também é membro da Coalizão pelo Pampa, um movimento da sociedade civil formado para proteger o Bioma. “Resiste uma visão predatória sobre o Pampa, dizendo que como o campo, por muitos anos, foi ocupado pelo gado, ele deve ser considerado todo ele como uma área consolidada e, portanto, não precisaria de licenciamento ambiental para utilizar essas áreas”, explica. 

Uma análise inédita feita pelo MapBiomas a partir da mais recente coleção de dados de uso e cobertura da terra, abrangendo o período entre 1985 e 2022, mostrou que a perda de vegetação nativa no Brasil acelerou principalmente nos últimos dez anos. O período coincide com a vigência do novo Código Florestal, aprovado pelo Congresso em 2012. O estudo foi realizado a partir de imagens de satélite e mostra que, nos cinco anos antes da aprovação do texto (2008-2012), houve uma perda de 5,8 milhões de hectares. Nos cinco anos seguintes (2013-2018), a perda aumentou para 8 milhões de hectares. E nos últimos cinco anos (2018-2022), alcançou 12,8 milhões de hectares. É mais que o dobro. Isso configura um aumento de 120% em relação aos anos que antecedem a vigência da nova legislação. 

Os dados referentes aos últimos 38 anos não são menos alarmantes. Houve uma perda de 96 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1985 e 2022 no Brasil.  É como se São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Paraíba, Santa Catarina, Pernambuco, Ceará e Paraná simplesmente desaparecessem. Onze estados. E proporcionalmente à vegetação existente em 1985, os biomas que mais perderam vegetação nativa até 2022 foram o Cerrado (25%) e o Pampa (24%).  E a velocidade é tão impressionante que, de tudo que foi convertidos para algum uso humano, como cidades ou atividades agropecuárias, um terço foi antropizado nos últimos 38 anos. 

E o Pampa perdeu a inglória primeira posição apenas no ano passado. O levantamento anterior indicava que se tratava do bioma brasileiro em que mais se havia suprimido vegetação nativa em termos proporcionais entre 1985 e 2021. No período, 3,4 milhões de hectares de diferentes tipos de campos deram lugar para a agricultura, principalmente o plantio de soja, e silvicultura. O que representa uma perda de 29,5% de vegetação.  Mas não é motivo para comemorar, porque entre 2021 e 2022, houve incremento na área desmatada em cinco dos seis biomas brasileiros – apenas a Mata Atlântica ficou de fora. Em termos de área, os maiores aumentos ocorreram na Amazônia e no Cerrado, mas em termos proporcionais, os maiores aumentos ocorreram justamente no Cerrado (31,2%) e no Pampa (27,2%).

Isso nos leva de volta à pergunta que eu fiz à professora Ana Rovedder, que também é coordenadora do Neprade e da Rede Sul de Restauração Ecológica. Ela concorda que é difícil, para um olho não treinado, identificar a supressão de campo nativo – no Pampa não se usa a expressão desmatamento. Mas ela indica que há elementos que podem ser observados mesmo pelo olho menos treinado, que podem amenizar a sensação de invisibilidade que a falta de florestas frondosas pode causar. “Uma das questões mais sensíveis, principalmente na região de campanha, é a degradação do solo. Então a gente tem cicatrizes que nos indicam isso.

As cicatrizes mais contundente são as erosões – as voçorocas – e os areais”, explica. As voçorocas são caracterizadas por vincos, sulcos muito grandes que se abrem no solo. Já os areais são porções de areia, já bastante comuns em municípios como Alegrete e Santiago, que dão ao Pampa um aspecto de deserto. Aliás, a professora Ana explica que não devemos usar a palavra deserto para nos referirmos ao Pampa. “No Rio Grande do Sul, para ter deserto, nós teríamos que ter clima de árido a semiárido, e nós não temos. As pessoas chamam erroneamente de deserto. São areais, porque é uma feição de solo e não de clima”, corrige. 

 

O solo do Pampa é um solo arenoso por natureza, então nem todo areal é sintoma de um problema ambiental. Claro, não seria simples no nosso Pampa do realismo mágico, que parece desenhado a partir de uma história de García Márquez. Mas o uso intensivo dessas áreas em sistemas muito intensivos, especialmente para o plantio de soja, aumentou essas feições. “Os campos não aguentam, não suportam esse tipo de produção”, diz a professora. 

Em outro conjunto de informações a respeito de cobertura e uso da terra do MapBiomas, um dos dados que mais se destaca é justamente o avanço da cultura de soja no país. Entre 1985 e 2022, a área ocupada para o plantio do grão passou de 4,5 milhões de hectares para 39,4 milhões de hectares. No Pampa, a soja avançou 3,1 milhões de hectares e, de acordo com o estudo, está mudando o perfil econômico do bioma a partir da degradação dos campos nativos, tradicionalmente utilizados pela pecuária.

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DE GRÃO EM GRÃO, O AGRO APAGA O PAMPA

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O plantio de soja provoca um esgotamento muito rápido do solo do Pampa. “Você até consegue trabalhar sistemas produtivos intensivos fazendo manejo conservacionista do solo, o problema é quando você não faz o manejo conservacionista. E a maioria não faz. Fora que a soja é uma cultura anual, então todo ano se mobiliza demais essas áreas produtivas. A silvicultura é problemática, mas ela é uma cultura de ciclos de sete anos, então fica mais parado. Mas a soja é todo ano”, diz Rovedder. 

Quando eu saí da sala da professora Ana e voltei para a estrada, os contornos do bioma e da devastação foram ficando mais nítidos. E não muito tempo depois da nossa conversa, a professora me enviou uma fotografia via WhatsApp que exemplifica o poder de degradação do plantio inconsequente de soja. “À direita, o campo nativo e à esquerda, na porção superior principalmente, a soja que foi plantada onde era campo nativo. Veja que os espaços claros são a erosão e o solo exposto já formados em um primeiro ano de plantio.” O solo já está erodido após o primeiro ciclo.

Além do impacto no solo, a agricultura sem manejo adequado tem um impacto imenso na biodiversidade da região, porque quando se faz matriz produtiva em grandes extensões, a fragmentação é diária e há um impacto muito grande na conservação de espécies. 

Para se ter uma ideia, o felino mais ameaçado do mundo vive por estas terras. Na estrada entre Dom Pedrito e Santana do Livramento, é possível avistar outdoors sugerindo cuidado com o gato-palheiro-do-pampa, um animal que só existe aqui e já poderia ser considerado extinto se não tivesse sido avistado recentemente, como foi divulgado pela reportagem do Vós em parceria com o portal ((o))eco de jornalismo ambiental. E a principal ameaça ao gato-palheiro é justamente a perda de habitat. 

Mas todos os animais sofrem com isso. O Marco Azevedo, que também é Doutor em Biologia Animal e especialista em ictiologia, fala da ameaça, por exemplo, aos peixes anuais. São um grupo de espécies pequenas, de pequeno porte, de peixes da família Rivulidae, que é bem distribuída na América do Sul. No Rio Grande do Sul, há cerca de 40 espécies de rivulídeos, a maioria delas com habitat no Pampa. “Essas são espécies muito particulares, que tem distribuição geralmente muito restrita. E são chamados de peixes anuais justamente porque elas vivem em ambientes temporários, que são poças ou áreas alagadas sazonalmente.

Os peixes anuais vivem nessas poças que geralmente ficam isoladas de corpos hídricos permanentes. Ou seja, elas secam em determinada época do ano e esses peixes tem o ciclo de vida adaptado a isso. “Quando elas estão cheias, eles crescem e se reproduzem muito rapidamente, em poucos meses. Então, depositam os ovos no substrato lodoso – que tem determinadas características. Quando a poça seca, os adultos morrem, mas os ovos permanecem enterrados no substrato e vão nascer na próxima estação chuvosa, completando o ciclo”, explica o biólogo. Isso significa que eles não sobrevivem em terrenos permanentemente irrigado, nao sobrevivem em solo totalmente seco. E não sobrevivem em plantações de soja. “A gente tem visto cada vez mais essas áreas serem perdidas para agricultura”, diz Marco.

Mas entra governo, sai governo, a dinâmica de expansão da soja no Brasil segue inabalada. Ou melhor, a escolha pela exportação de commodities segue inabalada. A área colhida era de 9,5 milhões de hectares em 1995 e saltou para para 30,7 milhões de hectares em 2017. E, segundo o CONAB, esse número já está em 44 milhões de hectares em 2022. Ou seja, 30% da área plantada simplesmente não existia como lavoura há pouco mais de cinco anos. 

O grão representa o maior valor de produção do país. O Rio Grande do Sul é o terceiro maior produtor de soja do país. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o valor da produção em 2022 foi de 345 milhões de reais. O maior produtor é Dom Pedrito, na região da Fronteira com o Uruguai. No Pampa. O mapa do cultivo da soja e o do bioma invisível se sobrepoem.

O problema do avanço da soja é o mesmo de todo monocultivo: empobrecimento do solo, destruição de vertentes e nichos ecológicos. Uma destruição que dá início a um ciclo vicioso que prejudica, inclusive, o cultivo dos grãos. 

É inevitável pensar, portanto, que, como disse o antropólogo Fábio Zuker em artigo publicado no site O Joio e o Trigo, parece haver “uma relação direta entre grãos (proponho nos centrarmos aqui no caso da soja), monocultivo, violência e concentração de poder.” Para explicar a provocação, ele sugere que podemos pensar que a sociedade que se constrói ao redor da soja cultivada de maneira irresponsável está solapando a sociedade que se organiza(va) em torno do que havia antes da lavoura.

Vamos pensar na paisagem mais tradicional do Pampa, naquela que vem à nossa mente de pronto: um gaúcho montado a cavalo, com um chapéu de aba larga, bombachas, tocando o gado. Talvez sentado à sombra de uma árvore, sorvendo um mate enquanto o sol se põe no horizonte por detrás de uma coxilha. Pois essa cena não existe em uma lavoura de soja. É a isso que Zuker se refere. 

Além disso, a ampliação de monoculturas vem acompanhada de outro tipo de relação de poder, até pela natureza do negócio, em que a soja, geralmente, é precificada e vendida antes mesmo de ser plantada. Há, portanto, o que antropólogo chama de fechamento ao imponderável. Segundo ele, isso se expressa também por meio do uso de agrotóxicos, utilizados como uma espécie de ferramenta política de eliminação da diferença. “A produção da homogeneidade encontra nos agrotóxicos a sua arma mais poderosa. Simplificação ecológica e extermínio de diferentes formas de cultura e vida social andam de mãos dadas.” Não por acaso, 2.182 agrotóxicos foram liberados para uso no Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro. 

“As pessoas não sabem, mas nós temos 8.600 famílias assentadas no Pampa, e elas estão sendo afetadas”, diz a professora Ana Rovedder. “Vou te dar um exemplo, tem um assentamento em Piratini. Eles estão muito assustados. Eles falam o seguinte: a gente está vendo a soja bater na porta da gente. Nós fizemos a análise da qualidade de água. Da água que eles usam para lavoura, da água que eles usam dentro de casa, dos poços artesianos e dos poços rasos. Todos estão contaminados com coliforme fecal e nós encontramos 2,4-D em várias dessas fontes.”

Trata-se de um um herbicida poderoso, um agrotóxico que foi banido na Europa há décadas, estava banido no Brasil e, recentemente, foi liberado pelo governo de Bolsonaro. “Eles estão tomando essa água. E eles não usam 2,4-D. Da onde que está vindo?”, pergunta.

Esse caso ilustra como a paisagem não é um sistema hermeticamente fechado. A paisagem do Pampa – e de qualquer bioma – é um sistema aberto que troca fluxos. Então tudo que se faz em uma propriedade afeta a sociedade em uma escala regional  e vai encontrar eco em outras localidades. No caso de Piratini, as famílias do assentamento da Reforma Agrária produzem alimentos orgânicos e bebem água contaminada por agrotóxico. 

“Não acho que seja exagero prever aquelas massas de migração para daqui um tempo, daquelas que nós vimos na década de 1930 no centro dos Estados Unidos. Daqui a pouco nós vamos ver isso por falta de água e por falta de condições de trabalho. Vocês já estão vendo faltar água na casa de vocês, vocês estão vendo os agricultores morrerem de câncer.”

A escolha – e insistência – dos governos brasileiros pela exportação de commodities mostra que a exportação dos bens primários é o motor de inserção do país na geopolítica e no mercado global. E essa opção foi feita e mantida por governos à direita e à esquerda no espectro político ideológico. Tanto que o governo Lula anunciou, neste ano, o maior Plano Safra da história, com a liberação de R$ 364,22 bilhões para a produção agropecuária nacional. Ainda assim, a associação da expansão do agronegócio com a ascensão da extrema direita e do Bolsonarismo é evidente. 

Em entrevista ao jornal Correio do Povo após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no ano passado, o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira, disse que o resultado era “altamente preocupante”.

No livro, As Geografias do Bolsonarismo, o autor Bruno Malheiro explica que a semelhança entre o mapa eleitoral da vitória de Bolsonaro e os mapas do cultivo de soja demonstram que “a expansão de um capitalismo de fronteira é também a de um gosto musical, de um sabor, de um modo de se vestir e se comportar, de uma racionalidade espacial cujo conteúdo de relações congrega um modo de vida violento e absolutamente refratário à diferença. Sabia-se, ali, que o alargamento das commodities no campo brasileiro não era apenas um processo econômico eivado de violência, mas também um processo politico com forte rebatimento na política eleitoral e na legitimidade do bolsonarismo.” 

E isso aparece nessa disputa pelo Pampa. Em que famílias assentadas e que produzem alimentos orgânicos disputam o espaço com uma soja cujo dono é mais invisível que o bioma. A dona Alaide Roso vive em um assentamento da Reforma Agrária em Julio de Castilhos. Ela cuida de um quintal agroflorestal implantado pelo projeto Quintais Sustentáveis em 2013. Em depoimento para o Programa Conexus bioma Pampa, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Agricultura Familiar (NESAF) e pelo NEPRADE, ela relata o avanço não requisitado dos agrotóxicos. “O veneno tá destruindo tudo. Muitas vezes eu entro aí no quintal pra colher uma fruta e eu vejo os passarinhos mortos, envenenados, que vem de outras lavouras”, conta.

Durante entrevista coletiva para apresentação do balanço de 2022 do Sistema Farsul e projeções para 2023, Gedeão Pereira destacou o papel do Brasil no cenário internacional dizendo que o país continuaria sendo um player fundamental para a solução da fome no mundo. “Nós todos somos brasileiros, vivemos nesta pátria e eu tenho orgulho quando saio lá fora e vejo o quanto nosso setor é importante. Possivelmente estejamos produzindo alimentos para mais de 1,5 bilhão de pessoas neste mundo”, disse.

Mas não é bem assim. Para além do fato de que a maior parte da soja é exportada e que milhões de pessoas passam fome no Brasil, a soja não é produzida para ser consumida de maneira direta, diferente das frutas da Dona Alaíde. A commodity tem dois produtos principais: óleo e farelo. O farelo é utilizado, basicamente, na composição de todas as rações. Isso significa apenas 2% da soja é consumida in natura para alimentação humana, a maior parte vai para os animais. Portanto, é consumida indiretamente por quem come carne. 

A relação entre o agronegócio e a fome, porém, é mais profunda. O agro não só não é parte da solução, como é parte do problema. Primeiro, porque avança sobre áreas de agricultura familiar, que é quem produz alimentos, de fato. De novo, podemos usar o exemplo da Dona Alaíde. “O que eu colho aqui não é só pra mim. Eu levo pra cidade, pro centro social onde tem crianças que moram lá. Eu dou pra eles, pros meus vizinhos. E elas não tem veneno, elas são natural. Isso é o mais importante, é a gente ter, sem veneno, e ter não só pra gente, mas pros outros”, diz ela. Mesmo assim, ela já depara com o veneno, como ela chama, no próprio quintal. Segundo, porque provoca o êxodo rural. De acordo com o IBGE, o país perdeu 1,5 milhão de postos de trabalho rurais entre 2006 e 2017. Mas note que a quantidade de pessoas que trabalhava na agricultura familiar foi reduzida em 2,2 milhões de trabalhadores. Mas porque a expansão da soja pode ser culpada pela redução das vagas? Porque homogeiniza o cultivo e, consequentemente, demanda menos. Isso além da mecanização do trabalho. Terceiro, é simples: dinheiro. O agronegócio tem privilégio para acessar financiamentos públicos além do Plano Safra e, ainda por cima, é regido pelo dólar. Com a desvalorização do real, os produtos do Brasil se tornam muito atraentes para o mercado externo. 

O agronegócio, da forma como é produzido, não alimenta quem tem fome de comida, alimenta quem tem fome de grana.  

A economia brasileira, obviamente, depende da produção dessas commodities, mas insistir na monocultura sem o manejo adequado do solo e sem respeitar espaços que deveriam ser preservado cobra um preço alto, especialmente em um bioma que já passa despercebido. Como diz o Bruno Malheiro no livro, “o ato de jogar veneno em áreas de monocultivos rodeadas por comunidades, fazendo de espécies que não interessam aos lucros – inclusive a humana – em pragas desprezíveis (…)são ações que carregam uma subjetividade que flerta com o autoritarismo, pois normalizam a transformação da natureza em obstáculo, a conversão dos diferentes em inimigos, a organização miliciarizada da vida social, o culto à violência e à implosão de todas as formas de vida comunitária em nome da defesa da propriedade privada.” A morte torna-se condição de expansão.

“Quem trabalha com questão ambiental tem ido contra o progresso?”, pergunta a professora Ana. “Não, ao contrário nós estamos barrando problemas seríssimos que nós vamos ter em curto prazo. E a questão da água é uma delas.”

E é curioso que o potencial financeiro da soja seja justificativa, porque, no longo prazo, a perda de biodiversidade compromete também o potencial de desenvolvimento sustentável da região, seja pela perda de espécies de valor forrageiro, alimentar, ornamental e medicinal, seja pelo comprometimento dos serviços ambientais proporcionados pela vegetação campestre, como o controle da erosão do solo e o sequestro de carbono que atenua as mudanças climáticas, por exemplo.

E à medida que os campos de soja avançam, vão matando o campo ao redor, fazendo com que se perca a florística nativa dos campos tradicionais e o potencial de pastejo para o sistema de produção pecuária.

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UMA TRADIÇÃO ESMAECIDA

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Quando a gente olha para o Brasil, os relatórios do MapBiomas indicam que a agropecuária continua sendo o principal vetor de desmatamento e pode ser constatado em quase todos os biomas brasileiros no período entre 1985 e 2022. A exceção fica, de novo, por conta da Mata Atlântica, o bioma historicamente mais desmatado do país, onde os dois terços do território ocupados por essas atividades permaneceram estáveis nas últimas duas décadas. Na Amazônia, a área ocupada pelo agro saltou de 3% para 16%; no Pantanal, de 5% para 15%; na Caatinga, de 33% para 40%; no Pampa, de 29% para 44% e no Cerrado, de 34% para 50%. As pastagens avançaram sobre 61,4 milhões de hectares entre 1985 e 2022; a agricultura, sobre 41,9 milhões de hectares.  De acordo com o levantamento mais recente, de agosto deste ano, a agropecuária respondeu por 95,7% de todo o desmatamento no Brasil em 2022, consolidando-se como o principal vetor de supressão de vegetação nativa. Mas no Pampa, é preciso separar o “agro” da “pecuária”. Porque  a soja é devastadora, mas a pecuária pode ser, inclusive, um meio de preservação.

“Quando se fala de Amazônia, eu tenho que eliminar um bioma e plantar um capim exótico, ou seja, não nativo, formar uma pastagem artificial. E aí eu crio o gado ali em cima com uma pegada ecológica bastante alta, porque eu desmatei. Mas aqui nessa região, os campos são ambientes naturais e com uma diversidade altíssima de forrageiras naturais”, explica o biólogo Glayson Bencke. 

A relação do Pampa com a pecuária – ou  com algo parecido com a pecuária – é anterior à existência do ser humano na América do Sul. Trata-se de uma história de evolução conjunta com herbívoros nativos e que hoje estão extintos, a chamada mega fauna. Há milhares de anos, havia mamíferos de grande porte que, assim como o fogo, atuavam como agentes de perturbação e mantinham o campo como, bem, campo. Hoje, quem exerce esse papel são os bois. “Nesse ambiente, assim como uma evolução natural o gado e os cavalos entram como agentes que mais ou menos mimetizam o papel ecológico dessa fauna extinta ou mesmo do fogo”, diz Glayson, que é pesquisador e Mestre em Zoologia.

Então, mais do que compatível, a pecuária mantém a florística de campo no Pampa. Ela opera como uma reguladora da manutenção. Se a pecuária for substituída pela soja, as feições mais arbustivas e arbóreas vão se sobrepor ao campo e gerar um desequilíbrio na paisagem. Ou seja, o modulador do Pampa é a bocada do gado. 

Mas a pecuária também tem que ser manejada com cuidado, e nem sempre é o caso. Outro sinal de campo degradado a que podemos estar atentos, é justamente a presença de uma pastagem exótica, o capim anoni. “Quem não conhece, pode até achar lindo aquele campo. É um capim de uma cor que oscila entre o verde e o pardo, é uma inflorescência parda. Mas é um pouquinho mais difícil, não é todo olhar que pode olhar e ver”, diz a professora Ana.

O capim anoni é uma espécie invasora africana que foi introduzida propositalmente com para fins de pastejo, por volta da década de 1960. “Mas ele já de cara mostra que é uma péssima pastagem, porque ele é muito fibroso. Ele tem muita sílica, então ele machuca a boca do gado. E se o gado tá machucado, ele reduz o seu ganho de peso”, explica. E agora, está no Pampa inteiro. 

“Esse tipo de coisa, esse tipo de interferência, acontece o tempo inteiro e ao mesmo tempo em que os nossos mecanismos de regulamentação sofreram muito nos últimos anos. Sofreram não apenas com a despolítica ambiental da esfera Federal, mas também com a esfera estadual e isso é importante que se diga”, desabafa a pesquisadora Ana Rovedder.

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INVISÍVEL ATÉ NO PAPEL

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A invisibilidade do Pampa pode ser constatada, também, quando olhamos para estratégias de conservação e mesmo para a legislação. O levantamento do MapBiomas indica, além da devastação, que o Pampa tem a menor proporção de unidades de conservação dentre todos os biomas brasileiros, com apenas 3,3% do território protegido. E destes, 2,4% de uso sustentável e somente 0,9% de proteção integral. Em relação às áreas naturais protegidas no país, é o que tem menos representatividade no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), representando apenas 0,4% da área continental brasileira protegida. 

O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), que prevê a proteção de pelo menos 17% de áreas terrestres representativas da heterogeneidade de cada bioma. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, as “Áreas Prioritárias para Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira” resultaram na identificação de 105 áreas do bioma Pampa, destas, 41 foram consideradas de importância biológica extremamente alta. Números que tornam os 3% ainda mais trágicos.

CAPÍTULO IV DO MEIO AMBIENTE 

Art. 251. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo, preservá-lo e restaurá-lo para as presentes e futuras gerações, cabendo a todos exigir do Poder Público a adoção de medidas nesse sentido. 

§ 1.º Para assegurar a efetividade desse direito, o Estado desenvolverá ações permanentes de proteção, restauração e fiscalização do meio ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente:

XVI – valorizar e preservar o Pampa Gaúcho, sua cultura, patrimônio genético, diversidade de fauna e vegetação nativa, garantindo-se a denominação de origem.

Apesar de a valorização e a preservação do Pampa constarem na Constituição do Estado, não há uma legislação específica para proteger o bioma. Em 2020, o governador Eduardo Leite (PSDB) sancionou o Novo Código Ambiental. O projeto foi aprovado apenas 75 dias após a apresentação do texto pelo Executivo e alterou 500 pontos da legislação vigente até então sem passar sequer pela Comissão de Saúde e Meio Ambiente da casa. Para se ter uma ideia, o texto do código anterior foi discutido ao longo de nove anos até ser aprovado, em 2000.

O governo diz que há um avanço, porque o Código anterior não mencionava o bioma e agora se prevê a proteção. Mas isso é porque o Pampa só foi reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente em 2004. E o novo texto é bastante nebuloso.

O código – que foi aprovado com um esforço do Executivo, de parte do Legislativo e do setor do agronegócio – indica que o Bioma Pampa terá suas características e proteção definidas por lei específica, mas não explica como isso será conduzido. Ao mesmo tempo, libera usos do solo da região sem necessidade de autorização de órgão ambiental. Por exemplo, um produtor rural pode substituir a pecuária pelo plantio de soja. Sem autorização. 

Os deputados Jeferson Fernandes (PT), Miguel Rossetto (PT) e representantes de organizações da sociedade civil articuladas na Coalizão pelo Pampa protocolaram um projeto de lei que dispõe sobre a conservação e uso sustentável do bioma, mas o texto ainda tramita na Assembleia Legislativa. Mas até que ele seja aprovado – se for -, o único dispositivo que proteção de que o Pampa dispõe é uma ação civil pública de 2015. Há oito anos, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente da Capital, representada pelos Promotores de Justiça Annelise Monteiro Steigleder, Josiane Camejo e Alexandre Saltz, integrantes do Núcleo de Proteção ao Bioma Pampa, ingressou com ação civil pública contra o Estado do Rio Grande do Sul com o objetivo de assegurar a proteção jurídica.

“A nossa ação civil pública, ela foi bem específica para impedir a emissão de licenças ou autorizações para conversão de campo ou para realização de qualquer empreendimento que pudesse impactar a vegetação nativa sem que a Secretaria Estadual do Meio Ambiente exigisse a reserva legal de 20% das propriedades rurais”, explica a promotora Annelise. Segundo ela, o MP-RS atacou o Decreto Estadual 52.431/2015, que, ao distinguir as áreas rurais consolidadas por atividade pecuária das áreas remanescentes de vegetação nativa, definidas no texto como áreas não-antropizadas, desconsiderou evidências científicas no sentido de que a atividade pecuária não causa supressão do campo nativo. É a isso que o biólogo Marco Azevedo se referia lá atrás.

A consequência prática do decreto seria, então, a dispensa da reserva legal para os imóveis rurais de até quatro módulos fiscais localizados no Pampa, independente da atividade. “Esse decreto tratou a vegetação do Pampa como uma grande área rural consolidada, porque geralmente tem gado ali pastando. Então o Estado, ele entendeu que a presença desse gado significava a supressão da vegetação nativa. E aí seria tudo área consolidada. E na visão técnica, acadêmica, dos vários especialistas que a gente ouviu para fazer a ação judicial, a presença do gado não não descaracteriza os remanescentes de vegetação nativa”, disse a promotora.  

A ação postula que, quando da aprovação da localização da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural, o Estado do Rio Grande do Sul respeite o percentual de 20% da área do imóvel mantida com campo nativo, ainda que ocorra a atividade de pecuária na área de vegetação nativa remanescente. Pede, ainda, que seja reconhecida a ilegalidade da anistia em relação às infrações administrativas praticadas no período de 22 de julho de 2008 a 25 de maio de 2012, já que esta anistia não está prevista no Novo Código Florestal. 

Mas neste ano surgiu um novo problema: o novo zoneamento da silvicultura. 

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AS VISÍVEIS LAVOURAS DE ÁRVORES

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Apesar de ser difícil para uma leiga identificar traços específicos da degradação do Pampa, algo me chamou a atenção no trajeto entre Rosário do Sul e Santa Maria, horas antes da minha entrevista com a professora Ana Rovedder. Eu sabia da existência de algumas porções de florestas no Pampa, embora menos comuns. Mas também sabia que elas não ocorriam nos municípios que eu havia percorrido naquelas dias. Ou seja, as florestas imensas que eu avistava agora só podiam ser fruto da silvicultura. Pouco depois, a professora Ana confirmou o motivo do meu espanto.  “O Pampa também tem floresta, embora não seja o predomínio, não é o ecossistema que predomina. Nós temos um predomínio de floresta em mosaico com campo nativo naquela região de Caçapava, Piratini, Canguçu, Santana da Boa Vista. É uma região toda “dobrada”. Lá tem floresta”, explica.  Olhando para o mapa do Rio Grande do Sul, constatei que estávamos longe dessas cidades. De fato, as árvores que oprimem o visual da estrada são espécies exóticas.

A silvicultura, embora não seja a maior, também é uma ameaça importante ao bioma Pampa. Plantam-se verdadeiras lavouras de árvores que retiram uma quantidade grande de nutrientes do solo e consomem água a ponto de inutilizar o espaço no longo prazo. E em vez de o governo do Estado frear o avanço dessa ameaça, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) aprovou um novo zoneamento a partir de um estudo encomendado justamente pela indústria de celulose. Segundo a nova regra, as espécies exóticas como pinus e eucaliptos podem cobrir mais de 10% do território gaúcho. Uma área extra de até 3 milhões de hectares. Isso significa que a área ocupada pela silvicultura pode quadruplicar e ocupar um espaço equivalente ao estado do Rio de Janeiro. 

As regras que estavam em vigência até então haviam sido aprovadas em 2009 com base em estudos da extinta Fundação Zoobotânica e com ampla discussão. Desta vez, a decisão foi baseada em um relatório financiado pela multinacional CMPC, uma das maiores produtoras de celulose e papel do mundo, que produz no RS há dez anos e tem o maior interesse em explorar a região. Mas quem protocolou a proposta do Novo Zoneamento no Consema foi a Federação das Indústrias (Fiergs). No conselho, o texto foi avaliado pela Câmara Técnica de Agropecuária até que, em março deste ano, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) abriu uma consulta pública e deu prazo de 10 dias corridos para discussão. Tirando sábados, domingos e feriados, restariam quatro dias para debate – foi durante a Páscoa. 

De novo, coube ao Ministério Público Estadual intervir e determinar a extensão do prazo. A promotora Annelise Monteiro Steigleder, que assinou a peça, também recomendou que o estudo fosse submetido também à Câmara Técnica de Biodiversidade – e não apenas a da Agropecuária – e que fossem incorporadas as contribuições da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).  Graças à intervenção do MP-RS, a consulta pública sobre o zoneamento acabou recebendo 215 contribuições da sociedade.

Segundo o parecer da Fepam, o estudo apresentado pela Fiergs é “insuficiente e inadequado” e pode tornar impossível a restauração do ambiente natural. A Coalizão pelo Pampa e o NEPRADE também se manifestaram contrárias ao novo zoneamento, mas a proposta original foi encaminhada praticamente intacta. 

O Rio Grande do Sul foi o quinto Estado brasileiro com maior produção de madeira em tora oriunda da silvicultura entre 2018 e 2020, conforme a última edição do Atlas Socioeconômico. Foram produzidos 13,9 milhões de metros cúbicos por ano no período. Grande parte disso é para exportação. 

“A grande dificuldade quando a gente pensa no Pampa é que ele é um mosaico de propriedades privadas. E falando bem concretamente, nos falta uma política pública de proteção desse Pampa que também trabalhe com estratégias de ordenamento territorial,  de realmente incentivar até o proprietário rural que tem gado. Porque hoje o apelo é econômico, então a pessoa que tem uma propriedade rural e de repente ela tem uma oportunidade de implantar uma lavoura de soja ou de arroz, enfim, ela vai querer fazer isso porque para ela é mais lucrativo”, desabafa a promotora Annelise Steigleder.

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ALIANZA DEL PASTIZAL

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A Alianza del Pastizal pode ser um exemplo das possibilidades de se retomar o uso para o qual o bioma é predestinado. No site da iniciativa, a primeira coisa que se lê é: produção agropecuária que conserva o Pampa. E é um bom resumo. O grupo reúne produtores rurais e parceiros institucionais que trabalham para aliar produção e conservação ambiental. 

Não é uma caridade, é uma ideia inteligente que segue a lógica da sugestão da promotora Annelise. O objetivo é promover sistemas de produção agropecuária mais eficientes e que operem em harmonia com os campos nativos, mantendo e aumentando os “serviços ecossistêmicos” prestados, com foco na monetização desses serviços. Ou seja, explora-se o potencial de projetos de créditos de carbono e outros mecanismos de pagamento por serviços ambientais. Assim, o produtor tem incentivo financeiro para proteger o Pampa, o campo nativo é conservado  e a biodiversidade de fauna e de flora continuam presentes. Completando o círculo. 

Basicamente, o produtor que mantém determinado percentual de campo nativo intacto é recompensado por isso. 

A Alianza del Pastizal atua nos quatro países em que o Pampa está presente. Já são 158 mil hectares de campos nativos preservados por meio de 290 produtores parceiros que estão em 38 municípios. “Já que maior parte do campo nativo que resta está nas mãos de proprietários privados, trabalhamos essa questão de recompensar produtores que se comprometessem a criar gado e produzir carne mantendo no mínimo 50% de campo nativo. Mas tem produtoras da Alianza que tem 90, 95 e até 100% da área da propriedade de campo nativo”, explica o biólogo Glayson Bencke, que também faz parte da Alianza. 

No Brasil, são 250 propriedades aderentes, segundo Glayson. E os benefícios já são evidentes. “A gente já visitou 70 propriedades da Alianza ao todo. Nessas 70 propriedades, a gente já encontrou 290 espécies de aves, mas, mais importante que isso, a gente já encontrou 85% das espécies de aves campestres do Rio Grande do Sul do Pampa. Isso quer dizer que a gente está, sim, mantendo a biodiversidade do Pampa, pelo menos em termos de aves.”

A ave-símbolo da Alianza é um pássaro chamado veste-amarela. Eu consegui fotografar um exemplar desse passarinho lindo, que voa pelos campos dos quatro países. Só fiquei devendo o registro pro Glayson. Mas ele contou que as propriedades visitadas guardam muitas espécies raras. “Das 29 espécies de aves ameaçadas de extinção no Pampa, 23 encontram um lugar nessas 70 propriedades”, comemorou.

E outro motivo pelo qual a Alianza é um projeto a ser celebrado, se dá em função da relação desses proprietários com a terra, que é diferente da de quem aposta na expansão do monocultivo. “Essa terra está na família há muitos anos, ela já foi dividida entre os filhos, entre os netos, entre os bisnetos dos ancestrais dessas pessoas. Então essa terra, ela tem um significado muito maior para alguém que sempre viveu na região do Pampa e é pecuarista. É uma tradição, há raízes, é diferente para um arrendatário que vem de fora para plantar soja.” Ou seja, protege-se, também uma cultura, um modo de vida, uma comunidade.

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O BIOMA INVISÍVEL

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O conto do bioma invisível começou a ser escrito antes de eu entrar no carro com destino à Piratini, a primeira parada. Foi quando eu conversei com o Glayson e ele me disse algo que foi para a estrada comigo: “A erosão não pega só a terra. Pega os costumes,  pega as tradições, pega a cultura e leva tudo embora.”

Depois da viagem, a entrevista com a promotora Annelise Steigledder completou o ciclo com a seguinte frase: “Essa paisagem é também um patrimônio cultural. E nós não temos um instrumento que proteja paisagem, que pressupõe um olhar integrado, um olhar amplo para a região. Qual é a estratégia para manter essa paisagem?”, pergunta.

Não é só o Pampa bioma que desaparece nesse conto. É o Pampa cultura, o Pampa símbolo do Rio Grande, o Pampa que a gente ouve nas canções nativistas, o Pampa que também é imaterial. Todo esse Pampa é invisível a quem não tem interesse em protege-lo. Seja por desinteresse, desinformação ou por dinheiro. 

“Quando a gente trabalha fala em preservar espécies de plantas e animais, em conservar nascentes, em conservar as beiras de rios do Pampa – e da Mata Atlântica -, a gente está falando de conservar processos produtivos, a gente está falando em conservar cultura. Nós estamos falando em conservar as próprias aglomerações humanas”, revela a professora Ana, em mais uma tentativa de mostrar para quem quiser ver, como diz a canção de Leonardo. Mostrar para quem quiser ver um lugar pra viver sem chorar. 

PodCasts, Reportagens Especiais

O gato fantasma do Pampa

Geórgia Santos
23 de agosto de 2023

Reportagem: Duda Menegassi e Geórgia Santos, uma parceria do Vós com o site ((o)) eco 

Pesquisadores tentam monitorar o raro e ameaçado gato-palheiro-pampeano e construir estratégias para salvá-lo da extinção. Restam menos de 50 indivíduos na natureza, o que faz dele o felino mais ameaçado do mundo.

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Bastou um clique. O contraste da cena em preto e branco evidencia as listras pretas que estampam as quatro patas do felino. A característica é inconfundível: trata-se de um gato-palheiro-do-pampa, um dos felinos mais ameaçados do mundo, com menos de 50 indivíduos estimados na natureza. Fotografá-lo em seu ambiente natural é um ato raro. O que faz dessa singela fotografia, feita por uma armadilha fotográfica, inestimável.

“A armadilha filma e fotografa, quando acionada pelo sensor de movimento, mas o equipamento teve uma falha técnica e não filmou, mas pelo menos ficamos com a foto”, conta a professora Ana Rovedder. A pesquisadora coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (NEPRADE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), responsável pelo projeto RestauraPampa, realizado com apoio do GEF Terrestre, através do Funbio, e iniciou este ano a coordenação da Rede Sul de Restauração Ecológica.

O registro foi feito em janeiro deste ano, na Reserva Biológica do Ibirapuitã, uma área protegida estadual de 351 hectares, situada no município gaúcho de Alegrete, na região da Fronteira. É a primeira vez que o animal é documentado dentro de uma unidade de conservação.

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     Ouça a história dessa descoberta pela voz da repórter Geórgia Santos no podcast     

     O GATO FANTASMA DO PAMPA     

 

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O gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai), como o nome sugere, tem uma relação íntima com o bioma gaúcho, já que a “cor de palha” permite que ele se camufle na vegetação campestre. Além disso, a distribuição da espécie se sobrepõe a dos campos nativos, que se estendem do Rio Grande do Sul para o Uruguai e Argentina. Monitorá-lo, entretanto, não é fácil. “Ele é um gato errante, um gato fantasma, ele não forma famílias e anda o tempo inteiro. E ele precisa do campo, não é um gato de floresta”, enfatiza Rovedder.

O zoólogo Fábio Mazim, consultor ambiental que apoia o projeto de monitoramento e membro do Pró-Carnívoros, reforça que essa relação é mais específica ainda, já que os gatos-palheiros preferem campos que não sejam nem muito rasteiros, nem muito arbustivos. “Hoje restam só em torno de três milhões de hectares desse campo, sendo que ele sofre muito impacto”, ressalta.

Somada ao principal problema, que é a perda de habitat, estão ameaças como predação por cachorros, caça por retaliação e atropelamento. “Setenta por cento dos registros que nós temos é por atropelamento. Sabe por quê? Porque eles estão se restringindo a viver nas faixas de domínio de rodovia [as laterais da pista] que é o único lugar que não está impactado pela agricultura. Então aquele campinho que fica ali é a área que eles estão e aí se torna uma armadilha ecológica”, explica Fábio.

Um levantamento recente liderado pelo zoólogo mostra que desde que a espécie foi descrita, no início do século XX, foram feitos somente pouco mais de 200 registros deste gato, o que equivale a 1,28 por ano. O gato-palheiro-do-pampa é considerado, portanto, o felino mais ameaçado do Brasil e possivelmente o mais ameaçado do mundo. Estima-se que existam apenas entre 35 e 50 indivíduos na natureza.

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“É uma espécie que não se salva mais sozinha. Tem que ter interferência humana”, sentencia

Registro da armadilha fotográfica instalada na Reserva Biológica do Ibirapuitã, o primeiro feito dentro de unidade de conservação. Fonte: Projeto RestauraPampa

Ainda que possa ser considerada uma medida drástica, Fábio acredita que talvez a única solução para a espécie seja capturar indivíduos de vida livre para reproduzí-los em cativeiro, o que é chamado de manejo ex situ, ou seja, fora do ambiente natural. Atualmente, não há nenhum indivíduo da espécie em cativeiro no Brasil. A única experiência do tipo acontece no Uruguai, onde há três desses felinos em cativeiro, mas, até agora, os uruguaios não tiveram sucesso nas tentativas de reprodução. “Porque senão vai se perder não apenas a espécie na natureza, mas também na face da terra”, alerta. 

Apesar disso, a espécie nem sequer aparece na Lista Vermelha da fauna ameaçada do país. Na época da avaliação de felinos, atualizada pela última vez em 2014, conhecia-se somente uma espécie de gato-palheiro, o Leopardus colocolo – classificado como Vulnerável à extinção – que teria duas subespécies. Isso foi revisto apenas em 2020, quando a ciência passou a reconhecer o gato-palheiro-do-pampa (Leopardus munoai) como uma espécie.

O trabalho de monitoramento começou em dezembro de 2020, com armadilhas fotográficas em duas unidades de conservação. Além da Rebio, onde o gato-palheiro foi documentado, há câmeras no Parque Estadual do Espinilho, a cerca de 200 quilômetros da reserva biológica.

Por serem animais errantes e solitários, é muito difícil monitorá-los. Através das câmeras, os pesquisadores esperam conseguir novas informações sobre a espécie, sobre a qual ainda se sabe muito pouco. “A gente manteve as câmeras nos mesmos locais, porque se a gente conseguir captar comportamento fixo em uma trilha, em um local, talvez seja a primeira vez que a gente vai poder falar em população de gato-palheiro, porque como eles são solitários”, explica Ana Rovedder, professora da UFSM.

Esse comportamento solitário era reforçado pelo fato de que, até muito recentemente, não havia o registro de nenhuma população de gato-palheiro-do-pampa. Graças ao esforço de monitoramento dos projetos de conservação, foi possível fazer seis novos registros da espécie por armadilha fotográfica e identificar duas populações, em dois locais diferentes. “É a primeira vez que se repete o registro dos mesmos indivíduos”, comemora o consultor do projeto Fábio Mazim. A reportagem teve acesso aos arquivos que mostram o mesmo indivíduo, no mesmo local, em dois momentos diferentes.

O gato-palheiro-do-pampa em novo registro feito pela Expedição Gato-Palheiro-Pampeano em junho de 2023

Uma parte desses novos registros é da Expedição Gato-Palheiro-Pampeano. Além do Fábio Mazim (Pró-Carnivoros), participam o Moisés Barp, Mauricio Santos e Yan Rodrigues (iniciativa privada), e Paulo Wagner (CETAS-IBAMA/RS). “O nosso plano hoje é tentar registrar uma população ou indivíduos que estejam ocupando um território de forma residencial. E aí tentar capturar, colocar um rádio colar e monitorar ecologia espacial. Ver realmente qual é o tipo de campo que ele gosta e necessita, tamanho de área de vida, etc”, explica o zoólogo.

As imagens das armadilhas fotográficas do RestauraPampa são monitoradas a cada trimestre. Junto com o registro do gato-palheiro-do-pampa, também foram flagrados outras duas espécies de felinos: o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi), documentado no Parque Estadual do Espinilho, e o gato-maracajá (Leopardus wiedii), que foi registrado na Reserva Biológica do Ibirapuitã. Ambas as espécies são classificadas como Vulneráveis à Extinção no país. “São duas unidades de conservação muito invisibilizadas e esses registros mostram o valor dessas áreas, que são os corredores finais de Pampa que a gente tem. Se a gente não tiver elas, a gente não tem refúgio para essa fauna e flora específica”, destaca Rovedder.

A especificidade da biodiversidade citada pela pesquisadora é o que a ciência chama de endemismo, ou seja, as espécies que só ocorrem num local ou bioma específico, que coevoluíram com o ambiente e, por isso, só conseguem sobreviver ali. É o caso do gato-palheiro-do-pampa, mas não apenas dele. A vegetação dos campos sulinos abriga mais de 400 espécies endêmicas da flora, com ocorrência restrita ao Pampa brasileiro. “O Pampa é um dos biomas de campo mais biodiversos do mundo”, reforça Ana Rovedder.

Em contrapartida, apenas 3,14% do Pampa está coberto por unidades de conservação, que equivalem a menos de 600 mil hectares. Dentro desse já pequeno território protegido, menos de um quarto (21,4%) contam com proteção integral, o restante está na categoria de uso sustentável, mais flexível e permissivo às atividades humanas e seus impactos.

“O comportamento do gato-palheiro-do-pampa é se esconder nas moitas de campo, ali ele esconde os filhotes, se reproduz, se alimenta de pequenos ratinhos nativos do pampa. Ele tem todo o comportamento de alimentação, abrigo e reprodução nos campos. A espécie demora milhares de anos para se adaptar a esse campo, sem campos como ela vai fazer?”, destaca a pesquisadora da UFSM.

A paisagem natural do Pampa, o bioma brasileiro que mais perdeu vegetação nos últimos anos. Foto: Geórgia Santos

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É preciso proteger o pampa

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O Pampa foi o bioma brasileiro que mais perdeu vegetação nativa entre 1985 e 2021, em termos proporcionais, de acordo com dados do Mapbiomas. No período, 3,4 milhões de hectares de diferentes tipos de campos deram lugar para a agricultura e silvicultura, o que representa uma perda de 29,5% de vegetação. 

Dentro dos diferentes tipos de vegetação do Pampa, são justamente as áreas campestres que mais sofreram. Os campos perderam 36% de cobertura entre 1985 e 2021, em grande parte para dar espaço às monoculturas.

As áreas ocupadas pelo homem já cobrem quase metade do bioma, sendo 41,6% somente para a agricultura. O plantio de madeiras para exploração, como eucalipto e pinus, também tem avançado nas últimas décadas. “A soja e a silvicultura comercial entraram muito forte nesses últimos quatro anos. A gente está perdendo campo nativo e o gato-palheiro precisa do campo nativo”, conta Ana Rovedder. 

A pesquisadora alerta ainda para uma proposta de alteração do zoneamento ambiental para a atividade da silvicultura, que pode quadruplicar a área de floresta plantada de eucalipto sobre os campos nativos. A proposta está em discussão na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

O zoólogo Fábio Mazim reforça que o Pampa – e os campos de forma geral – é invisibilizado e tem muito menos espaço na agenda de conservação do que as florestas. “Outro problema, ele [o gato-palheiro] está num habitat, que é o campo, sobre um solo totalmente fértil, que é o solo pampeano. Tanto no sul do Rio Grande do Sul, quanto no Uruguai e no pedacinho que ele ocorre no oeste argentino, e está sendo convertido em lavoura”, acrescenta.

Soja avança sobre os campos do Pampa no Brasil. Foto: Geórgia Santos

Tão pouco do Pampa é protegido, que todos os outros registros conhecidos anteriores do gato-palheiro-do-pampa foram feitos em áreas particulares. Em outubro do ano passado, a espécie foi vista em uma vinícola na região da Campanha Gaúcha, mais ao sul do estado.

Recentemente, em artigo científico na Biota Neotropica, foi divulgado o registro inédito de um gato-palheiro-do-pampa melânico, ou seja, todo preto, feito em julho de 2021, numa área rural do município de Rosário do Sul.  

O monitoramento de fauna realizado pelo RestauraPampa também está de olho em outra ameaça ao gato-palheiro: as espécies exóticas invasoras. Além dos javalis – que invadem cada vez mais áreas no Brasil – os cervos conhecidos como chital (Axis axis), nativos das florestas asiáticas. 

Para além de uma eventual competição por recursos, a presença de invasores representa um desequilíbrio nos ecossistemas nativos e suas espécies originárias, como o gato-palheiro.

 

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Reportagem: Duda Menegassi e Geórgia Santos

Texto: Duda Menegassi

Arte de capa: Gabriela Güllich

Podcast

Produção: Todavós

Roteiro e Edição: Geórgia Santos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Trilha sonora adicional: Artlist

 

 

Reportagens Especiais

A liberdade de não colocar vidas em risco

Geórgia Santos
7 de agosto de 2023

 

 

Brasil registra aumento em mortes no trânsito enquanto, no Congresso, tramitam propostas para flexibilizar a legislação em nome da liberdade

Há dois anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou, em Genebra, a Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030. O objetivo é prevenir ao menos 50% das mortes e lesões no trânsito até 2030. Mas faltou uma palavra no título da ação proposta pela OMS. Esta é a Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito.  A Primeira foi lançada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010 com a meta ambiciosa de conscientizar os países a adotar medidas e reduzir também em 50% a mortalidade em rodovias. Naquela ocasião, entre 2011 e 2020. Qual não foi surpresa, portanto, quando o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou, em agosto deste ano, o “Balanço da 1ª década de ação pela segurança no trânsito no Brasil e perspectivas para a 2ª década” com a informação de que o Brasil registrou um aumento de 13,5% em mortes no trânsito entre 2010 e 2019. A taxa de mortalidade por 100 mil habitantes cresceu 2,3% em relação à década anterior. Os acidentes com motocicleta puxam a fila do crescimento das mortes.

A pesquisa foi realizada pelos pesquisadores Carlos Henrique Carvalho e Erivelton Pires Guedes a partir de dados do Datasus, plataforma do Ministério da Saúde disponível para consulta. Além disso, eles utilizaram informações de ocorrências registradas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).


Eu não dirijo. E isso se deve às estatísticas. Não que eu não dirija porque determinado estudo aponte para determinada tendencia, e sim porque minha mãe e um querido amigo se tornaram estatísticas. Foi em 1996, eu tinha oito anos e estava ansiosa pela chegada dela enquanto meu pai preparava o churrasco que ele sempre assava para esperá-los. Naquela época, minha mãe era prefeita da cidade em que nós morávamos e ela e o então vice-prefeito, o amigo querido, viajavam o tempo todo para a capital. Eles deveriam chegar a qualquer momento.

Nós tínhamos nos mudado para aquela grande há poucos meses. Foram anos de construção para eu, finalmente, poder brincar no sótão. Eu adorava aquele lugar. O problema é que eu ficava isolada. Então, sempre que eu ouvia um barulho que poderia significar que eles estavam chegando, eu descia as escadas correndo e passava feito um furacão pelo seu Jorge. Ele achava graça e ria.

Mas foi ficando chato. E estranho. O tempo foi passando e nada de eles chegarem. Até que o telefone tocou. Meu pai atendeu. O semblante mudou. Ele manteve a calma, mas encheu os olhos de lágrimas.

 

“Mas tu tá bem? E o Nelcides? Tenta ficar tranquila, eu falo com eles.”

 

Eu não entendi o que havia acontecido. Ou não queria entender, porque eu era bem esperta. De todo modo, arranquei o telefone da mão dele e perguntei se ela tava quase chegando. Um clássico. Ela estava chorando, mas tentou se recompor para não me preocupar. Enquanto ela me explicava que eles haviam se envolvido em um acidente e que demorariam para chegar, meu pai me olhava com tristeza e carinho.

Ele então ligou para a família do Nelcides. Nelcides Tecchio era o nome dele. Um tipo bonachão que tinha o hábito de ajudar muita gente, principalmente levando os doentes para consultas em outros municípios. Ele mexia na canela enquanto falava e me ensinou a tomar sete goles de guaraná quando estivesse com soluço. Os quatro filhos eram doidos por ele. Mas, ao telefone, meu pai não falou no passado, como eu faço agora.

Em pouco tempo, minha casa começou a encher de gente. Mas encher mesmo. Eu falo de, sei lá, cem pessoas. Talvez mais. Assim eu fui entendendo que era grave. Eu desconfiei quando vi um adversário político da minha mãe chimarrão na nossa cozinha. Mas só tive certeza quando ela chegou.

Eu nunca vou esquecer daquela cena. Ela desceu do carro com muita dificuldade. A cabeça estava enfaixada e o tailleur de linho azul escuro estava rasgado e ensanguentado. Ela bateu a cabeça no parabrisa mesmo estando de cinto de segurança, isso fez com que o peito dela se abrisse e as costelas quebrassem. Ela tinha sangue, pontos e curativos por todos os lados. A meia-calça cor de gelo estava vermelha. O sapato da mesma cor da meia, antes e depois. Foi só naquele instante que ela verbalizou que o amigo querido havia falecido. Depois daquele dia, foram meses de um luto intenso e de uma recuperação lenta.

Isso aconteceu há 27 anos e há 27 anos eu carrego esse medo. Ir para a estrada é um suplício, algo incompreensível para o meu avo, um caminhoneiro que amava a profissão. O problema é que as estatísticas, as benditas estatísticas, reforçam a sensação de insegurança que me acompanha há tanto tempo.


 

Em dez anos, 392 mil pessoas perderam a vida em acidentes de trânsito no Brasil

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Os autores optaram por deixar o ano de 2020 de fora em função da rotina atípica ocasionada pela pandemia da Covid-19, algo que poderia justamente falsear os números. O resultado foi que no Brasil, entre 2010 e 2019, 392 mil pessoas perderam a vida em acidentes de transporte terrestre, incluindo atropelamentos, ocorrências com bicicletas, motocicletas, automóveis, caminhonetes, caminhões, ônibus, veículos de serviço e fora de estrada. As regiões Nordeste e Norte concentraram o maior crescimento do número de mortes, com cerca de 45% de aumento. Os acidentes com motocicleta puxam a fila do crescimento no número de óbitos. As mortes de usuários de motocicleta cresceram cerca de 150% em relação à década anterior.

O governo passado divulgou, em 2021, que houve uma redução de 30% no número de mortes por acidentes, mas o pesquisador Carlos Henrique Carvalho, um dos responsáveis pelo estudo do Ipea, indica que a discrepância acontece, provavelmente, em função de uma divergência de metodologia.

“Houve uma queda na taxa de mortalidade por 100 mil habitantes a partir de 2014. Isso ocorreu muito em função do desaquecimento da economia. E em 2020 [ano que foi excluído do levantamento do Ipea justamente por ter sido atípico] começou a pandemia, que reduziu bastante o volume de tráfego e circulação de pessoas e mercadorias. E isso teve impacto. Mas na pesquisa, comparando as duas décadas, a gente viu que a mortalidade subiu. Na primeira década houve 346 mil mortes e na segunda década houve 392 mil. Ou seja, o número de mortes continua subindo”, diz.

A análise das mortes por faixa etária mostra outros números que são assustadores. Por exemplo, pelo menos um terço é formado por jovens de até 15 anos. E os acidentes com motocicletas respondem por cerca de 44% dos óbitos na faixa de 15 a 29 anos. E como se não bastasse o horror da violência, essas ocorrências ainda geram custos superiores a R$ 50 bilhões por ano. Isso gera forte impacto na economia por conta dos gastos com a previdência e redução de renda das famílias atingidas, além dos eventuais altos custos hospitalares e danos patrimoniais.

O Painel CNT de Consultas Dinâmicas dos Acidentes Rodoviários 2022 mostra, a partir de análises de ocorrências em rodovias federais, que somente em 2022 houve 64.447 acidentes, sendo 52.948 com vítimas (mortos ou feridos). No período acumulado de 2007 a 2022, foram 1.982.059 acidentes, sendo 970.674 com vítimas. Quase um milhão de pessoas ficaram feridas ou perderam a vida. 

Somente em 2022, 5.432 vidas foram perdidas nessas rodovias. Se olharmos para o período acumulado, estamos falando da morte de 110.215 pessoas. A rodovia com o maior número de acidentes no ano passado foi a BR-101, onde foi contabilizado um total de 9.079 acidentes com vítimas. Em relação ao número de mortes, a BR-116 é a rodovia em que mais se morre. Somente em 2022 foram 640 vidas perdidas nesta rodovia.

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O custo anual estimado dos acidentes ocorridos em rodovias federais no Brasil chegou a R$ 12,92 bilhões em 2022

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Dados da PRF, responsável pela fiscalização e controle do trânsito em rodovias federais em todo o país, mostram que a principal causa dos sinistros nessas rodovias é a falta de atenção ou reação dos motoristas, motociclistas e pedestres (36% das ocorrências). Essa informação é reafirmada pelo levantamento da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), que indica que o que mais causa acidentes é a reação tardia ou ineficiente do condutor, com um total de 8.065 acidentes (12,5% do total). E a principal causa de mortes é transitar na contramão – provavelmente em ultrapassagens -, com um total de 753 ocorrências (13,7% do total).

Foi essa a causa do acidente que vitimou o Nelcides, lá em 1996. O motorista fez uma ultrapassagem em local indevido e não havia acostamento. Os carros colidiram de frente e a vida de muitas pessoas mudou para sempre a partir daquele momento.

Os estudos mostram consistentemente  que as questões comportamentais estão associadas à maioria dos acidentes. Além dos problemas já citados, ainda se observa desobediências das regras de trânsito (14,4%), excesso de velocidade (10%) e uso de álcool (5%), lembrando que as últimas duas também são desobediências. O principal tipo de ocorrência é a colisão frontal, responsável por quase 40% das mortes no trânsito.

O levantamento do Ipea também aponta para essa direção. “A pesquisa mostrou claramente que as questões comportamentais são as principais causas para a ocorrência desses sinistros. Desobediência das regras, excesso de velocidade, uso de drogas e álcool e falta de atenção responderam, nos dados da década analisada, por dois terços das causas de acidente”, explica Carlos Henrique Carvalho.

Os recursos para a promoção de políticas públicas de redução da mortalidade no trânsito, em geral, tiveram contingenciamentos para formação de superávit primário, acentuados a partir da crise econômica iniciada em 2014. O Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (Funset), oriundo de 5% da arrecadação das multas de trânsito e destinado à promoção de medidas de segurança e campanhas educativas, tiveram corte de 75% em relação ao total arrecadado no período. Além disso, os recursos do seguro DPVAT (Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres), dos quais 45% são destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS) para compensação das ocorrências com atendimento hospitalar das vítimas de trânsito e 5% para financiar medidas do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), foram fortemente reduzidos e depois zerados. Já os recursos da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre combustíveis, destinados aos investimentos em infraestrutura viária, foram reduzidos e posteriormente zerados para manter o preço dos combustíveis.

Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles. Avenida Central na altura da Rua do Ouvidor, com rua Miguel Couto, Rio de Janeiro, c. 1906. Negativo de Vidro.

De uma maneira perversa, acostumamo-nos a esse tipo de informação. A nossa rotina não é alterada pelo fato de que a gente sabe que o transito no Brasil mata mais que guerras ou mesmo que morre mais gente nas estradas do que por arma de fogo. Aliás, sequer conseguimos dissociar os carros da nossa rotina. Mas nem sempre foi assim. No final do século XIX, as pessoas andavam a pé. E para todos os cantos. Os pedestres compartilhavam as vias com bondes, carroças e bicicletas até que, em 1891, o primeiro carro chega ao Brasil pelas mãos do pai da aviação. Não é uma piada, tampouco confusão. Santos Dumont trouxe de Paris um Peugeot Type 3 e saiu a rodar pleno Estado de São Paulo.

Em uma velocidade bastante diferente do que o século XXI impõe, o primeiro acidente de carro só aconteceu seis anos depois e no Rio de Janeiro. De novo, com figuras célebres envolvidas. O abolicionista José do Patrocinio, dono do jornal A Cidade do Rio, também retornou de Paris com uma novidade: o Serpollet.

 

“Trago de Paris um carro a vapor… O Veículo do Futuro, meus amigos. Um prodígio! Léguas por hora. Não há aclives para ele: com um hábil maquinista vai pelo Corcovado acima, garanto a vocês, pelo Corcovado acima, garanto a vocês, pelo Corcovado acima como um cabrito. Em meia hora faremos o trajeto do Largo do São Francisco ao Alto da Tijuca. Imaginem! É a morte de tudo, dos tílburis, dos carros, do bonde… até da estrada de ferro. Ficamos senhores da viação. É a fortuna.” Anunciou Patrocínio a seus amigos.

 

Na crônica “A era do automóvel”, o cronista João do Rio diz que “o primeiro (carro), de Patrocínio, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida, como se tivesse visto um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata.” Bem, não estavam tão distantes assim da realidade e o poeta Olavo Bilac parecia disposto a provar.

Bilac era amigo de Patrocínio e resolveu que queria dirigir o Serpollet. O poeta assumiu a direção e o jornalista, corajoso, sentou no lado do carona. Os dois saíram de Botafogo ruma à Estrada Velha da Tijuca, no Alto da Boa Vista. O carro chegou a impressionantes 4 km/h antes da  primeira curva e, rapidamente, Olavo Bilac perdeu o controle e bateu em uma árvore. Eles não se feriram, mas foi o fim do Serpollet. Não é preciso dizer que não havia escolas de direção disponíveis, exigência de uma carteira de habilitação ou demanda para testes psicotécnicos e motores. Da mesma forma que não é preciso esclarecer que Bilac nunca havia tido contato com um automóvel na vida. Ou seja, a crônica de uma morte anunciada.

Mas se o acidente no Rio de Janeiro servir como metáfora, o automóvel adentrou o mundo dos pedestres assustados sem pedir licença e mostrando a que veio. Não demorou muito para que acidentes, muita poluição e imensos congestionamentos passassem a fazer parte da rotina das grandes cidades. Um estudo do historiador Peter D. Norton indica que, nos Estados Unidos, o número de pessoas mortas anualmente no transito passou de cerca de 250 em 1905 para algo perto de 15 mil em 1922. O resultado da pesquisa de Norton está no livro Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City, publicado pela MIT Press e sem tradução para o português. Ali, ele mostra o processo turbulento que levou o automóvel a se tornar não apenas parte indissociável da vida dos norte-americanos como o elemento de prevalência nas ruas a despeito dos pedestres.

OUÇA . A imposição do automóvel produziu um custo muito grande na vida urbana, por Roberto Andrés, Urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Geórgia Pelissaro Santos · A imposição do automóvel

Era um futuro que ninguém poderia imaginar no início do século XX, quando o carro ainda era um item de luxo – inclusive na Europa. Afinal, o privilégio de dirigir estava restrito aos homens ricos. Jovens aristocratas, banqueiros e alguns industriais. No Brasil não era diferente, não à toa as duas ocorrências listadas acima envolvem nomes célebres da nossa história. Pois foi nos Estados Unidos, graças aos processos de automação industrial da Ford, que o carro se tornou um produto de massas. E a rápida difusão foi acompanhado da escalada de acidentes e mortes. Crianças de quatro a oito anos representavam o principal grupo de vítimas em muitas cidades. Na maioria, morriam atropeladas enquanto brincavam nas ruas, caminhavam pelos bairros ou de e para a escola.

O problema não era ignorado. À época, houve muita comoção e indignação contra os motoristas, que eram poucos, e contra o próprio carro. Não demorou a surgir grupos e eventos destinados à promoção da segurança no transito que organizavam passeatas e instalavam monumentos públicos em memória das vítimas. Esses comitês ainda foram responsáveis por campanhas publicitárias bastante agressivas, inclusive associando o carro ao diabo. Além disso, com o crescimento das frotas e dos acidentes, também cresciam os congestionamentos. Ou seja, no meio da década de 1920, a situação do automóvel nos Estados Unidos não era das melhores. Estavam na ascendente o tom e a força das campanhas de segurança, a indignação com acidentes e mortes, as buscas por redução de velocidade e restrição à circulação em áreas adensadas. Assim, entre 1923 e 1924 a venda de automóveis caiu pela primeira vez no país e despertou a atenção do setor automotivo.

No The New York Times, reportagens sobre o levante da nação contra as mortes causadas por automóveis

Rapidamente, a partir de uma atuação atuação organizada de associações industriais e câmaras de comércio, surge o lobby automobilístico, que, com relevante investimento financeiro, se estruturou para persuadir governos, mídia e Judiciário. Havia dois problemas a combater, um referente à justiça e outro que dizia respeito à eficiência. Os comitês de segurança apontavam o fato de que os poucos motoristas, a minoria, tirava o direito da maioria, os pedestres, de frequentar as ruas. Já os engenheiros de tráfego indicavam que os automóveis eram pouco eficientes em regiões muito populosas. A estratégia foi, então, virar o jogo, inverter a narrativa – onde já vimos isso antes?  Assim, o lobby automobilístico começou a discutir os problemas nos termos da liberdade. Política e de mercado.  E deu certo.

Junto ao discurso existia a vantagem de fomentar uma imensa cadeia econômica que envolvia as empreiteiras, os proprietários de terra, o mercado imobiliário e, claro, a indústria automobilística. Esse arranjo esteve no centro do New Deal na década de 1930 e, depois da Segunda Guerra Mundial, o modelo foi exportado para o mundo. No Brasil, essa ideia foi incorporada ao ousado Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, que transferiu o investimento em ferrovias para rodovias. E assim, o Brasil se transformou em um país que prioriza o carro.

No Brasil, até o final dos anos 1990, a principal vítima do trânsito era o pedestre. O Código de Trânsito Brasileiro (lei 9.503/1997) associado a campanhas educativas fez com que as mortes em acidentes de trânsito caíssem por alguns anos – as de pedestres caíram quase pela metade entre 1997 e 2000, mas isso não se repetiu em outras frentes, indicando que seria preciso a adotar medidas  estruturais. Especialmente diante do crescimento da frota, que aumentou a partir do século XXI com as políticas de incentivo à indústria automobilística do segundo governo Lula.  As consequências são os números que abrem essa reportagem.

A legislação evoluiu bastante desde a criação do novo Código e algumas ações foram bastante eficientes. Uma delas foi a implementação da lei seca (lei 11.705/2008), que entrou em vigor há 15 anos. Dados do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) mostrou que as mortes em acidentes de trânsito causados pela mistura de álcool e direção caíram 32% no Brasil entre 2010 e 2021. Hoje se sabe, portanto, que a lei contribuiu para a redução de ocorrências e de mortes, mas foi muito criticada quando proposta. Quem era contra, usava um argumento que já vimos aqui: o da liberdade. É um argumento recorrente, afinal de contas, e que agora volta a ser usado.

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LIBERDADE?

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No último dia 24 de julho, o deputado federal Kim Kataguiri (UNIÃO-SP), membro do Movimento Brasil Livre (MBL) propôs uma nova alteração no Código de Transito. O PL 3616/2023 dispõe sobre a realização dos exames exigidos no processo de habilitação. Kataguiri entende que exames de aptidão física e mental e de vista devem ser realizados em regime de livre concorrência e que os cidadãos devem ter autonomia para escolher as clínicas. Que não devem se submeter apenas aos estabelecimentos credenciadas pelo Detran como determina a legislação atual.  Aliás, essa não é a primeira proposta de Kataguiri para o Código de Trânsito. Em 2020,  ele propôs acabar com as exigências de autoescolas no processo de emissão da CNH e abrir a porta para instrutores independentes. Nos dois casos, o objetivo é parecido. Segundo o texto mais recente, a ideia é “assegurar a liberdade de escolha do cidadão que pretende tirar ou renovar a carteira de motorista (CNH)”.

O PL ainda explica que o ato de pré-determinar as clínicas configuraria em reserva de mercado, algo que o “STF, guardião da nossa Constituição Federal, repudia”. Mas o argumento tresloucado da liberdade não para por aí. Na justificativa do projeto, ainda há menção a Ludwig Von Mises e ao que o autor denominou de “socialismo das guildas”.

“Em um sistema de cooperação social com base na divisão do trabalho, nada há que se identifique com o interesse exclusivo dos membros de algum estabelecimento, companhia ou setor, e que não seja também de interesse dos demais membros da coletividade (…)Não existem questões internas de qualquer guilda cujas soluções não afetem a toda a nação. Um setor da atividade econômica não está a serviço apenas daqueles que nele trabalham; está a serviço de todos… O esquema do socialismo de guildas e do corporativismo não leva em consideração o fato de que o único propósito da produção é o consumo. Há uma inversão total de valores; a produção torna-se um fim em si mesmo (…) a reserva de mercado é extremamente eficiente em restringir a oferta de serviços e, com isso, encarecer os preços ao mesmo tempo em que derruba a qualidade, pois a concorrência é extremamente restrita.”

Ainda se pode ler o seguinte: “Se a finalidade do exame de vista é auferir se a pessoa tem condições de enxergar enquanto dirige, pouco importa se o exame é realizado na clínica A, B ou C.” O nobre deputado esquece, porém, que a legislação vigente visa garantir a imparcialidade e impessoalidade dos exames que atestam a aptidão dos brasileiros para conduzir seus veículos, reduzindo a possibilidade de burla.

Tanto é assim que a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet) publicou uma nota em que externa preocupação com a apresentação do projeto. “A vinculação das clínicas aos Departamentos de Trânsito Estaduais, regra atualmente em vigor, proporciona um controle mais rigoroso da qualidade dos exames e dos profissionais que os realizam, o que é de suma importância para a segurança e a saúde no trânsito”, explica. Essa prática assegura a isenção dos médicos peritos envolvidos no processo e evita conflitos de interesse. Segundo a Abramet, a possibilidade de redução do controle sobre os exames de aptidão física e mental pode resultar em um maior número de condutores e motoristas não aptos nas vias. Isso em um país cuja principal causa de acidentes em rodovias é a falta de atenção ou reação. Um país em que o comportamento dos envolvidos é determinante para a segurança no transito.

OUÇA . Por que os exames – físico e mental – são tão importantes? Por Ricardo Hegele, médico do tráfego e vice-presidente da Abramet

Geórgia Pelissaro Santos · Por que os exames – físico e mental – são tão importantes?

Além disso, a legislação atual garante acessibilidade universal. O vice-presidente  da Abramet, Ricardo Hegele, explica que as dependências tem que ter acessibilidade, tamanho apropriado e equipamento específicos. “Além do atendimento às normas técnicas, tem que ter acessibilidade aos sistemas informatizados de comunicação com o Detran e a guarda dos prontuários tem também essa necessidade especial. Existem resoluções e outras normativas que, frente a necessidade desse exame criterioso, considerando que esse exame é um ato pericial, ele deve ser realizado em local de atividade médica exclusiva pra esse tipo de procedimento. E devem ser distribuídos de forma imparcial e equitativa. Esses locais ainda tem fiscalização e vistorias”, explica.

OUÇA . A que riscos estamos expostos quando o condutor pode escolher quem vai fazer o exame? Por Ricardo Hegele, médico do tráfego e vice-presidente da Abramet

Geórgia Pelissaro Santos · A que riscos estamos expostos?

Isso significa que propostas como o PL 3616/2023 trazem risco à segurança. Hegele lembra que projetos similares já foram propostos antes, inclusive pelo último governo, e foram rejeitados pelo Congresso.

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CONDUTORES DESCOMPENSADOS

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De acordo com o Guia CNT de segurança nas rodovias, as ocorrências de acidentes nas rodovias do país são muito elevadas e há muitos motivos para isso. Destaca-se as condições do veículo, as condições climáticas e da rodovia e o comportamento do motorista. Em muitos casos, os sinistros não tem apenas um motivo. O Guia CNT exemplifica que “quando há falta de atenção por parte do condutor (comportamento do motorista) ao passar por um ponto crítico, como um buraco grande (condição da rodovia), pode-se perder o controle do veículo e ocorrer uma colisão ou saída de pista.”

Na perspectiva do “Visão Zero”, que é uma abordagem que entende que nenhuma morte no transito é aceitável, eventuais erros do condutor deveriam ter as suas consequências mitigadas por elementos da própria infraestrutura que alertam o motorista caso ele saia inadvertidamente da faixa, mantêm o veículo na via e absorvem os impactos. Infelizmente, o Brasil sobre com a falta de investimento na infra viária. Isso significa que se apenas 12% das vias são asfaltadas no país, segundo estudo da Confederação Nacional dos Transportes, é impossível pensar em contenções que “perdoariam” as falhas dos motoristas, evitando a ocorrência de acidentes ou minorando os seus efeitos. Ou seja,  a aptidão física e mental dos motoristas é ainda mais importante no Brasil, onde a reação tardia ou ineficiente do condutor é a principal causa de acidentes.

Quem melhor traduziu as características particulares da dinâmica social do trânsito no Brasil foi o antropólogo Roberto DaMatta, no livro Fé em Deus, Pé na Tábua, publicado em 2010. A partir de uma série de entrevistas com motoristas, motociclistas e pedestres, ele mostrou que muitos motoristas apontavam como solução para o trânsito mais fiscalização e punições para infratores, ao mesmo tempo que não consideravam deixar de realizar suas paradas em fila dupla, ultrapassagens em trechos proibidos, furadas de sinal e excessos de velocidade.

“Não há duvida alguma, como tem sido exaustivamente assinalado por especialistas nesta área, que o comportamento do motorista é o grande responsável – ao lado da postura dos pedestres, das vias por onde trafega e do veículo que dirige – pela maioria dos acidentes de trânsito no Brasil.”

“Quem tem fé em Deus é aquele mesmo sujeito que, sem dó ou piedade, enfia o pé na tábua”, disse DaMatta.


Mais de 25 anos depois, meu trauma me acompanha, é verdade. Mas não me impede de viajar de carro. Na última vez em que me aventurei a passar muito tempo na estrada – de carona, é claro -, embarquei em uma empreitada pelo interior do Rio Grande do Sul. E enquanto viajava de Pelotas a Bagé, a minha lista de viagem do Spotify me pregou uma peça. Eu ouvi a melodia conhecida e um apito de trem. Maria Fumaça, de Kleiton e Kledir. Eu adoro essa música. E, confesso, preferia estar a bordo de um trem de passageiros. Mas esse não é um ttado contra o automóvel, afinal, fiz meus 2 mil quilômetros planejados dentro de um carro muito querido. É apenas uma alerta e um lembrete de que as pessoas morrem na estrada.

Segundo dados do Guia CNT de segurança nas rodovias, a maioria dos acidentes ocorre nos finais de semana e em feriados, à noite e com mau tempo, quando há piores condições de visibilidade. A maioria dos acidentes é fruto de colisões e saídas de pista e a maioria das mortes resulta de colisões e atropelamentos. Ou seja, todo mundo que está na via está vulnerável, não apenas os ocupantes dos carros. Além disso, 66,0% da extensão das rodovias apresentam algum tipo de problema; 55,5% da extensão apresentam problemas no pavimento; 60,7% da extensão têm problemas de sinalização; 63,9% da extensão têm deficiência na geometria da via.Por isso, todo cuidado é pouco.

Antes de iniciar a viagem, o condutor deve se certificar de que a habilitação e os documentos do veículo estão válidos. Motoristas de veículos pesados devem, ainda, realizar  periodicamente exames toxicológicos. Para evitar a ocorrência de avarias durante a viagem, o condutor deve fazer as manutenções periódicas do veículo, assim como verificar o funcionamento de faróis, freios e limpadores de para-brisas, as trocas e a calibragem dos pneus e os níveis de óleo lubrificante e água. Também é importante que o motorista conheça previamente as condições das vias por onde vai transitar. Desse modo, deve planejar a sua viagem, analisando, dentre as rotas possíveis, aquela que apresenta as melhores condições – ou, caso haja apenas um itinerário, identificando as situações de perigo que pode encontrar nele.

Pra mim, especificamente, viajar de carro é aterrorizante, eu não vou negar. Mas não precisa ser assim se todos seguirmos as orientações de segurança e formos responsáveis e atentos ao que dita a legislação. Eu cumpro meu papel de carona afivelando o cinto de segurança e sendo absolutamente vigilante – jamais chata, claro que não – com relação à adoção de medidas preventivas. Ao meu lado, ninguém ultrapassa em local perigoso, ninguém dirige alcoolizado, ninguém burla a legislação do transito deliberadamente. Se o faz inadvertidamente, paga a multa correspondente sem discurso.

E fazemos isso com toda a liberdade que temos de não colocar ninguém em risco.

Reportagens Especiais

O crime da casa da frente

Geórgia Santos
28 de outubro de 2022

De um lado da rua, um jovem morto a tiros. Do outro lado da rua, dois irmãos presos injustamente pelo assassinato do vizinho.

A casa da frente fica na zona urbana de um município da região Metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Em uma área de ocupação predominantemente residencial e de média densidade populacional, como diz o laudo dos peritos que estiveram no local em 23 de setembro de 2016, no dia seguinte ao crime. É fácil de entrar e fácil de sair desse bairro de casas de tamanhos diversos, feitas de materiais diversos. Nessa rua, em específico, há construções de alvenaria com portões, cercas e grades protegendo os quintais, na maioria com grama nem tão verde. Às vezes por cortar. Há outros imóveis de madeira, mais vulneráveis, como a Casa 886.

 

A porta da frente tem vestígios de arrombamento na estrutura metálica. Como um afundo feito por um chute de sola. Ao se ultrapassar essa primeira barreira que não se sabe se ainda fecha, o vermelho surge logo por sobre o piso de azulejo da sala. Havia tênues manchas de sangue contrastando com a laje de gelo, formadas por contato e por arrasto, interrompidas somente pelo rejunte escuro. Sobre a mesa redonda da cozinha adjacente, há uma tampa de alumínio com uma marca típica de consequência de arma de fogo. O par está na geladeira e ostenta o mesmo sinal da tampa, o que leva a crer que estavam juntos no momento dos disparos. Alguém colocou a panela no refrigerador para a comida não estragar, provavelmente. O prato vazio com restos de algo que parece feijão na foto em branco e preto também preserva alguma coisa daquela noite. Mesmo a geladeira tem duas perfurações alinhadas, uma na face lateral, outra na face posterior. Na parede de madeira escondida pelo eletrodoméstico, nota-se uma marca de impacto. Algo bateu ali com força e fez um vinco.

No chão da Casa 886, junto à porta que leva da cozinha para um quarto, há um fragmento de jaqueta de munição, uma daquelas cápsulas de bala de arma de fogo. No quarto, vê-se uma janela ainda aberta. O alvo fugiu por ali antes de ser atingido. E dessa mesma janela dá para ver o cão, este sim, morto com um tiro no pescoço.

Nunca se sabe quando um evento vai transformar a nossa vida. Os guris que estavam na casa da frente não sabiam que aquelas marcas assinaladas pelos peritos não eram apenas evidências do assassinato do vizinho, mas viriam a ser o seu decreto de prisão e sentença de morte. Porque a casa da frente não é só uma e o crime da casa frente não é só um. É o assassinato do vizinho na Casa 886 e a prisão dos dois irmãos da Casa 891, que ficaram quatro anos no cárcere aguardando julgamento. E só um voltaria pra casa.

Os nomes dos envolvidos nos crimes foram omitidos a pedido da família da casa 891, cujos integrantes conversaram com a reportagem. Os membros da família da Casa 886 já não vivem mais lá e não foram encontrados. Os fatos narrados a partir de sua perspectiva foram reconstituídos com base nos depoimentos prestados à polícia.


 

22 DE SETEMBRO DE 2016

 

Na Casa 886, a mãe está amamentando o bebê em um quarto – ela tem outros cinco filhos. O mais velho chegou da casa da avó há pouco, recém trocou de roupa. De repente, ouve o barulho de um carro chegando e portas batendo. O primogênito e uma irmã mais velha também perceberam algo de estranho na porta lateral da casa e resolvem verificar o que está acontecendo. A irmã do meio está grávida, então continua onde está, em algum cômodo incerto, mas o Cunhado, pai da criança que ainda não nasceu, fuge pela janela quando ouve o anúncio: “Polícia!”

Mas não é a polícia. Quando o irmão mais velho se aproxima da porta de metal que guarda a frente da casa de madeira, é surpreendido por dois homens usando uma meia de nylon na cabeça e que já entram atirando. Quando ouvem alguém chorando, repreendem: “Vagabunda!” É tudo muito rápido. Depois dos tiros, os dois tipos começam a se movimentar pelo interior do imóvel onde, aparentemente, não encontram a pessoa com quem querem acertar contas. A essa altura, já está claro que se trata do Cunhado, egresso da Fase e foragido do sistema prisional. Ele e a namorada grávida haviam discutido dias antes e isso levou a uma briga com outras pessoas, que inclusive mandaram um aviso: “Vagabundo a gente não bate, a gente mata.”

Os dois mascarados então recolhem as jaquetas da munição e, assim como entraram, saem. Rápidos, brutos, violentos. Um gordinho de olhos claros, bastante alto, branco, que usava uma touca. E outro homem de pele mais escura e de olhos castanhos, mais baixo que o primeiro, mais magro que o primeiro, que usava um boné de aba curva. Saem sem deixar rastro em um carro que bem poderia não ter marca ou placa, não faria diferença na penumbra.

É só agora que todos percebem que o irmão mais velho está ferido. Ele foi atingido logo no início, mas permaneceu de pé enquanto a dupla não saía de dentro da casa. Ele controlou a dor. Mas agora que todos estão seguros, quando sente que pode, desaba no sofá, sangrando. Desesperada, a mãe sai de casa para pedir ajuda. E é acolhida pela família da casa da frente. 

Na Casa 891, o cenário é outro. Uma construção de alvenaria guarda uma família unida. Os pais, juntos há mais de 20 anos, criam três filhos. Dois guris e uma guria. Ninguém ali conhece uma delegacia de polícia por dentro, muito menos um presídio. O mais parecido com grades que conhecem é a cerca que guarda o pátio bem cuidado. Na casa da frente, não há bebês, grávidas, egressos. Já é meia noite, mas todo mundo está acordado. Quem conta é a memória da mãe.

“Já é tarde da noite, a gente tem costume de dormir um pouco mais tarde. Aí a gente ouve um barulho de carro parar, ouve os tiros e eu digo para todo mundo se abaixar. Logo depois a gente ouve gritos pedindo socorro aqui no nosso portão, pedindo para gente ajudar, acudir. Então eu saio, eu saio na frente, porque eu estou na sala e meu marido está no quarto. E quando eu abro a porta e vou ver, é a vizinha da frente e o filho dela pedindo socorro.

– O que houve?

– Entraram na minha casa, atiraram no meu filho. Por favor, nos ajude.

– Chama a polícia!

– Não, a gente não pode, mas por favor, acode! Socorre o nosso filho, nos ajuda!

 

Nessa hora, meu marido já está junto de mim. A gente volta para pegar a chave do portão e abrir para ele tirar o carro. O tempo todo os nossos filhos estão dentro de casa, e a minha guria também.” Só depois que o carro já está fora da garagem é que os guris saem. Então, o pai e outro vizinho levam o menino ferido para o hospital e a mãe volta para dentro da casa da frente. O filho mais velho fica no pátio e os moradores das duas casas ficam conversando, trocando informações, tentando entender que o que acabou de acontecer e tentando amenizar o choque e a preocupação.

O pai volta em seguida e chama a esposa para fazer companhia à outra mãe, que está sozinha esperando notícias. Antes de ir, ela passa na outra casa da frente e pega um par de chinelos para a vizinha que está descalça e vai para o hospital. “Aí eu digo para o meu filho: entra e tranca o portão. Fica dentro de casa que a gente já volta.”

Aquela rua não é necessariamente tranquila, mas também não mete medo. A questão é que a cidade inteira, de mais de 200 mil habitantes, é um campo minado. De acordo com o Mapa da Violência elaborado e publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2016 o município está entre os 30 mais violentos do país, ocupando a 12 posição no geral e a primeira no Rio Grande do Sul. Os dados são referentes ao ano de 2015 e indicam um índice de 78,4 mortes para cada 100 mil habitantes. Então aquela rua, justo aquela, não seria diferente. Mas sempre assusta. Tiro sempre assusta. Gente que vive em bairro com nome e sobrenome antigo acha que todo mundo que mora em vila com nome de santa tira essa vida de letra, mas não é bem assim. Quem tem filho debaixo do teto sempre vai se assustar com tiro. E quem tem filho de pele preta, então, precisa se preocupar com os tiros dos dois lados.

A mãe fica no hospital até que pessoas mais próximas da família da vítima apareçam. Ela sai sem saber que o vizinho viria a falecer naquela madrugada.

A certidão de óbito do primogênito da Casa 886 indica que ele morreu em função de uma “hemorragia interna devido a ferimento transfixante de tórax por projétil de arma de fogo. Tipo de morte: violenta.” Tinha olhos castanhos. Tinha 20 anos. Nos primeiros depoimentos prestados à polícia, as testemunhas são unânimes em apontar que duas pessoas entraram na casa. Duas pessoas brancas, ninguém mais. E todos também concordam que as figuras não são reconhecíveis. Este é o primeiro crime da casa da frente. O segundo crime da casa da frente acontece quase um ano depois.

 

De novo, a gente nunca sabe quando um evento será definidor. É algo só denominado com o tempo, com distanciamento. Neste caso, a importância que aquele acontecimento teria na vida da família da casa 891 só seria evidenciada em setembro de 2017, quando a polícia bate na porta, disposta a levar os dois guris da casa da frente. “A polícia chega aqui do nada e leva os nossos filhos, dizendo que eles tinham sido acusados. E a gente não estava entendendo nada. Simplesmente foi de um dia para o outro que tudo desmoronou”, contou a mãe.

 

24 DE JULHO DE 2017

 

O Cunhado, que estava foragido, é preso. Em depoimento, ele relata que reconhece “sem sombra de dúvida” três dos autores do homicídio cujo alvo era ele, mesmo tendo fugido pela janela.

 

Com este único depoimento prestado à Polícia Civil, tudo muda. Os dois indivíduos passam a ser quatro ou cinco; de dois brancos passam a ser dois brancos e dois pretos e talvez mais um misterioso; e de desconhecidos passam a ser reconhecíveis. “Os gêmeos” a que ele se refere são os irmãos da casa da frente, que são parecidos, apenas. Um tem 19 anos e o outro tem 18.

O depoimento do Cunhado basta para a Polícia Civil, que encaminha a representação pela prisão preventiva e mandado de busca e apreensão em 28 de julho de 2017 e, três dias depois, remete o inquérito ao juiz. Em quatro de agosto, o Ministério Público oferece a denúncia e o magistrado defere o pedido 20 dias depois. O mandado de prisão para o Desafeto e os dois irmãos é emitido em 31 de agosto. E assim, sem antecedentes e surpreendidos pela acusação da vizinha, os guris da casa da frente são presos em 04 de setembro de 2017.

O defensor público Iesus Rodrigues Cabral entra no caso já na reta final. Antes, a família da casa da frente contrata duas advogadas que ficam à frente do caso por dois anos até que a Defensoria Pública assume, em 2019. E desde o primeiro momento em que o processo dos dois irmãos cai na mãe do Dr. Iesus, ele surpreende. “Se por um lado, em um primeiro momento eu até penso que é realmente muito suspeito esses garotos estarem ali, à meia-noite, na frente da casa, depois eu falo: “Bom, eles são vizinhos.” Quando acontece um tiroteio, a gente aguarda um pouquinho e depois vai ver o que que aconteceu. E a postura desses rapazes, de estarem lá sem máscara, a não ser que fossem pessoas da mais alta frieza no sentido de se garantir, não era compatível com o que se descrevia. “Nós participamos desse esquema e nós vamos fingir que nós somos pessoas que estão ajudando. Chegar lá desmascarados, sem armas e ajudar a vítima.” Não, não, isso está errado”, disse. Mas a polícia e o Ministério Público compraram a versão do Cunhado, para desespero da mãe. “Como que uma pessoa que reconhece os criminosos vai na casa dessas mesmas pessoas para pedir socorro? Isso nos abalou muito. Não foi investigado, não foi nada. Simplesmente porque disseram que foram eles. E tudo leva a dizer que foram eles porque eles são pobres, são pretos, não estavam trabalhando de carteira assinada. Tudo isso. É o peso das coisas.” 

Depois de preso, o guri mais velho não quis falar, mas o guri mais novo prestou depoimento e contou a mesma história que a mãe relatou à reportagem. E quanto mais tentava explicar, mais inacreditável tudo parecia. “Simplesmente os guris foram presos porque ele [o Cunhado] falou isso. Eles entraram aqui e os guris não tinham uma arma, não tinham nada. Simplesmente foi pela palavra dele [o Cunhado). E a gente ficava mais chocado porque a gente sabia o que tinha acontecido ali, que a gente estava dentro de casa, que a gente socorreu o vizinho. Só que ao mesmo tempo, a nossa palavra não valia de nada, porque nós somos os pais.” E assim começa a peregrinação pelo inferno. Da casa da frente para uma casa prisional.

Nos 17 dias em que eles estiveram detidos de maneira improvisada na delegacia, os pais visitavam os filhos três vezes por dia. Não podiam se ver o tempo todo, mas atentavam para que estivessem, pelo menos, bem alimentados. Para que estivessem bem, dentro do possível, se é que é possível. Com lasanha da mãe. Com cuidado do pai. Mas era uma situação extrema, porque as delegacias estavam abrigando mais presos provisórios do que a capacidade indicada, era um problema generalizado no estado em 2017. Nos autos do processo, há inclusive o registro da preocupação do Comandante do Batalhão da Brigada Militar da região. Por isso, ao longo do mês de setembro, as advogadas constituídas pelos irmãos pedem a revogação da prisão preventiva. Mas o Ministério Público advoga pelo indeferimento e o juiz acolhe o parecer do MP.

Até que no dia 21, sem aviso, os guris são transferidos para o Presídio Central, o maior de Porto Alegre. A família fica afastada por longos 20 dias. “E quando a gente entra no Central toma outro baque, porque a gente não tinha nenhuma noção de como era um presídio. Juro. A gente não tinha mesmo. Então a gente quando entrou lá, ficou muito chocado.  E os guris estavam magros, bem mais magros. Eles já são magros por natureza, mas estavam bem mais magros, com cabelo grande.  Foi uma visão do inferno, de verdade”, lembra a mãe. E era. Naquele período, a cadeia pública da capital gaúcha operava com superlotação. Segundo dados da Superintendência de Assuntos Penitenciários, havia 4700 presos em um presídio com capacidade para 1824. Mais de dois presos por vaga.

Mas não seria o fim da peregrinação. No mês seguinte eles foram transferidos para a Penitenciária Estadual de Canoas. “Era um pouco melhor, mas também era um presídio. Mas a gente ia lá todo dia de visita. Todo domingo.” De fato, a Pecan II é uma casa prisional considerada modelo. Além de não operar com superlotação – à época da prisão dos guris tinha 807 vagas para 505 presos –, era um complexo recém construído, com infraestrutura adequada e boas condições de higiene. Outro detalhe importante é que foi um presídio construído para enfraquecer o poder das facções criminosas do Estado, então, era um local para apenados que não tinham vínculo com esses grupos. Isso fazia com que o ambiente fosse menos hostil que o padrão do sistema prisional brasileiro. Mas não seria o destino final.

Eventualmente, os guris seriam enviados para a Penitenciária Estadual do Jacuí, em Charqueadas. Esta, sim, conhecida pela precariedade da infraestrutura e péssimas condições de saneamento “Cada um que a gente ia, a gente ficava baqueado mesmo, porque era um diferente do outro. Então cada vez que eles trocavam, era um baque diferente. Quando foram para Charqueadas também, chegamos lá e foi outro susto. Muda tudo de novo, é bem complicado”, lembra a mãe entre suspiros. Entre 2017 e 2018, segundo dados da Susepe, a PEJ chegou a abrigar 2596 presos em um complexo que suportava 1422, uma média de quase duas pessoas por vaga. Como se não bastasse, enquanto os guris estiveram lá, o poder público ficou, pelo menos, quatro meses sem recolher o lixo do presídio, gerando um problema sanitário e ambiental.

 

“ACONTECE COM TODO MUNDO, VÍRGULA”

 

A mãe nunca imaginou que veria os filhos naquela situação degradante. A família veio de Caçapava do Sul, mas vive na região Metropolitana de Porto Alegre há mais de 20 anos. Ela trabalha como cuidadora e cozinheira em uma casa de família e o marido trabalha em uma empresa de laboratório de concreto – ambos na capital. O casal teve três filhos. Dois meninos e uma menina. É uma família comum, que gosta de ficar em casa, reunir os parentes, fazer almoços e jantares. A mãe é quem cozinha – lasanha, de preferência – enquanto se ouve samba, pagode, forró, o que tiver. O povo é bem eclético, “faz uma misturança”, diz ela. No futebol, não há consenso. A mãe, o filho mais novo e a filha são colorados. O pai e o filho mais velho são gremistas. Mas a divisão para por aí. Para todo o resto, trata-se de um grupo muito unido.

Então não, ela nunca imaginou ver os filhos nem ninguém da família sendo humilhado daquela forma. E quando alguém é preso, a família toda é presa, segundo ela. Porque não existe vida fora daquilo, todo mundo é humilhado, todo mundo é humilhado, arrastado da casa da frente para o inferno.

Foi só depois da prisão dos guris que a família passou a falar abertamente sobre racismo, inclusive com os sobrinhos. “A gente vê em reportagens, mas a gente não imagina que possa acontecer com a gente. E acontece, acontece com todo mundo. Quer dizer, acontece com todo mundo, vírgula. A classe social, a cor, tudo interfere”, desabafa.

Ela é uma mulher negra e jovem, de 40 e poucos anos. Hoje, todos na casa tem consciência de que se tivesse acontecido em outro bairro, com pessoas brancas, com pessoas “de dinheiro”, com certeza teria um cuidado em volta, mas a história foi outra. “Um dia o guri falou aquilo, não deu 20 dias e eles estavam presos. Sendo que o nome deles nunca tinha sido citado.”

O defensor público Iesus Rodrigues Cabral entende que esse caso é o exemplo “perfeito” das falhas estruturais do sistema. “O primeiro ponto é a fraqueza, a fragilidade, a dificuldade que a polícia tem para trabalhar. Hoje, no Brasil, trabalha-se basicamente com testemunha. Então, se acontece um homicídio e eu digo que foi a senhora, essa é a prova. A não ser quando envolve uma pessoa rica ou bem relacionada, aí vem polícia coletar digital.”

O segundo ponto indicado pelo defensor público, e aí é específico desse caso, é o fato de a polícia e/ou o Ministério Público não ter considerado o contexto, porque os guris não tinham antecedentes. Até o policial que atendeu a ocorrência declarou em juízo que “nunca teve conhecimento [dos guris] em outras ocorrências policiais.” A única passagem que se pode considerar é um cigarro de maconha no bolso de um deles, anos antes. “Olha, o cara já iniciar, já debutar, com um homicídio desse, não é o comum.”

Os guris eram, de fato, amigos de um dos atiradores supostamente reconhecidos. O Desafeto do Cunhado. Mas exceto por esse vínculo, toda a acusação é feita com base nos depoimentos. Diante da falta de evidências materiais, a polícia tentou, então, criar uma conexão dos guris com o crime organizado que pudesse explicar o envolvimento com o assassinato do vizinho. E tentou fazer isso por meio das redes sociais. Na página do Facebook de um dos irmãos, os agentes encontraram somente algumas fotos do Desafeto do Cunhado, que fora reconhecido pela mãe da vítima, e letras de rap “proibidão” que foram usadas como evidência de associação criminosa. “Então veja, ali também tem claramente uma repreensão a um aspecto cultural. Mas eu nem sei qual era esse tipo de rap porque a polícia acabou não juntando ao processo. Ela mencionou no relatório, mas não juntou o que tinha nesse perfil do Facebook”, explicou o defensor.

Ou seja, mesmo sem materialidade, a partir apenas do depoimento do Cunhado, os guris da casa da frente são acusados por um homicídio consumado com duas qualificadoras: motivo fútil, porque essa ação teria se originado daquela discussão entre o casal, e recurso que dificultou a defesa da vítima, porque teriam entrado na casa de surpresa e a vítima não teve tempo de reação; por um homicídio tentado contra o Cunhado também por motivo fútil; e associação criminosa armada. Em sendo condenados, a pena poderia ser de mais de 60 anos.

Por causa da associação criminosa, eles são presos preventivamente. A prisão preventiva é um dos tipos de prisão cautelar – as outras são a prisão em flagrante e a prisão temporária – que se aplica quando o acusado ainda não tem uma sentença transitada em julgado mas, segundo autoridades, existem provas do crime e indícios de autoria. Ou seja, a ideia é impedir que a pessoa pratique o mesmo delito enquanto responde em liberdade. Por isso a acusação de associação criminosa é tão determinante nesse caso.

A legislação brasileira não prevê um prazo para o término da preventiva, e esse é um dos pontos centrais do problema do encarceramento em massa no Brasil. Em 2017, ano da prisão dos guris, 32,4% das pessoas privadas de liberdade no país também eram presos provisórios. Em 2018, esse percentual chegou a 35,1% segundo os dados publicados pelo Fórum Brasileiro da Segurança Pública. No RS, o percentual era de 31%.

De acordo com o último levantamento, o percentual de presos provisórios no Brasil diminuiu, mas o número absoluto aumentou. Em um universo de mais de 820 mil presos em 2021, 233 mil ainda não foram julgados. Alguns esperam anos por um desfecho. Os irmãos da casa da frente, por exemplo, só seriam julgados quatro anos depois e permaneceriam atrás das grades durante todo esse tempo.

 

“DISSE QUE NÃO VIU [OS GURIS] ARMADOS”

 

O andamento do processo refletiu a morosidade esperada do Judiciário brasileiro. As primeiras audiências são agendadas para o início de abril de 2018, mas foram adiadas para o final de maio. No dia 28, as testemunhas de acusação são ouvidas e corroboram o depoimento do Cunhado, que repete o que havia dito a polícia um ano antes. A mãe e as irmãs da vítima, por outro lado, modificam suas versões dos fatos. A mãe, por exemplo, passa a reconhecer o Desafeto do genro e diz que quando saiu de casa para pedir ajuda, deu de cara com “os gêmeos” no pátio, ambos sem máscara. Mas são testemunhos cheios de contradições.

Primeiro porque, de repente, reclamaram de uma pichação no muro da casa da vítima. Só que a casa não tem muros, mas grades. Segundo porque tanto a mãe quanto as irmãs da vítima não eram capazes de reconhecer ninguém e agora apontam que o Desafeto e os guris da casa da frente estavam lá. Terceiro, nos primeiros depoimentos à Polícia, as duas irmãs afirmaram que duas pessoas brancas entraram na casa e agora afirmam que os dois irmãos, que são pretos, ficaram na porta enquanto os outros vasculhavam a casa. Sem contar que a mãe não corrobora a versão de que eles tenham sido vistos antes de ela ir para o pátio. Quarto, nenhuma sabia descrever os guris ou apontar as características dos irmãos. A mãe da vítima só soube dizer que eram parecidos com o pai, que aguardava no saguão do Fórum. Do pai ela lembrava, porque ele levou o filho para o hospital antes de ele falecer.

“QUE OS DOIS “MORENINHOS” FICARAM NO PÁTIO. APÓS O FATO, PEDIU PARA SUA FILHA E. PEDIR SOCORRO E QUE ELA SAIU NO PÁTIO E OS OUTROS DOIS “MORENINHOS” AINDA ESTAVAM NO PÁTIO. QUE QUANDO ELA SAIU DE CASA, OS “MORENINHOS” DESCERAM A RUA CORRENDO E ENTRARAM NO CARRO. QUE OS DOIS “MORENINHOS” MATARAM O CACHORRO QUE TINHA NO PÁTIO. ADUZIU QUE SÃO IRMÃOS E QUE SÃO BEM PARECIDOS COM O PAI, ALÉM DOS DOIS ESTAREM ARMADOS. DISSE QUE NÃO VIU [OS GURIS] ARMADOS, POIS ESTAVA ESCURO. DISSE QUE O PAI DELES PRESTOU SOCORRO AO FILHO QUE HAVIA SIDO BALEADO.”

 

PRENDER NO BRASIL É UM PROJETO POLÍTICO”

 

Não bastasse a fragilidade das evidências, o julgamento dos guris foi adiado diversas vezes e todos os pedidos para que fossem soltos durante o processo foram ignorados. E eles não são exceção, como bem lembra o defensor público Iesus Cabral. A questão racial no Brasil, ela é muito forte. Não estou culpando o juiz, o promotor ou o delegado, não. Isso aqui é um sistema. Quisera fosse uma só pessoa que fosse racista. Isso é um sistema racista. O nosso Direito Penal, ele tem um alvo muito claro, que é a pessoa pobre e, de regra, a pessoa preta.”

 Nos últimos anos, o perfil da população encarcerada não tem se modificado profundamente. Aliás, o percentual da população negra encarcerada aumentou. Entre 2011 e 2021 passou de 60,3% para 67,5% de presos negros. Lembrando que mais 22,5% dos apenados não forneceram informações sobre raça ou cor, portanto, o número de pessoas negras que estão privadas de liberdade pode ser ainda maior. Os dados do Anuário do Fórum Brasileiro da Segurança Pública indicam que há também uma intensificação do encarceramento de jovens. Hoje, no Brasil, 46,4% dos presos têm entre 18 e 29 anos. Vale ressaltar que o perfil da população presa é o mesmo perfil das principais vítimas das mortes violentas intencionais (MVI) no Brasil: a população masculina, negra e jovem. O mesmo perfil dos guris da casa da frente.

Joel Luiz Costa, advogado criminal, co-fundador e coordenador-executivo do Instituto de Defesa da População Negra, que atua no estado do Rio de Janeiro, ressalta que prender no Brasil é um projeto político. E não só agora que o país tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás somente de Estados Unidos e China, segundo o World Prison Brief , um levantamento mundial sobre dados prisionais realizado pela Institute for Crime & Justice Research (ICPR) e pela Birkbeck University of London. “Prender como um mecanismo de controle dos grupos indesejados é parte da história brasileira. Você está falando de um país que recebeu a maior quantidade de pessoas negras escravizadas na América e foi o último país do ocidente a abolir a escravidão. Uma em cada cinco pessoas que saíram da África para ser escravizadas botou o pé, em algum momento, no Rio de Janeiro. Isso é muito importante”, diz.

De acordo com o Censo de 1849, portanto quase 40 anos antes da abolição, o Rio de Janeiro tinha 266,5 mil habitantes, destes, 110,6 mil eram escravizados. O que representava 41,5% da população. Segundo lembra Costa, é a maior concentração de pessoas escravizadas em ambiente urbano da história da humanidade.

“Então, você precisa criar uma máquina, uma estrutura e uma forma de controlar esses corpos, sobretudo no cenário pós-abolição. Porque você não pode mais, em 1888, sair matando preto igual matou índio em 1500. Então, nesse processo de controlar esse grupo massivo, você precisa criar essa estrutura de prender para controle de corpos. E não só prender, né, porque não é simplesmente o corpo físico, é criar toda a estrutura política para desenvolver a figura do elemento criminoso, do elemento suspeito.

Tudo isso você precisa construir no imaginário, porque ao mesmo tempo que você prende fisicamente 750 mil, indiretamente você prende dois, três milhões aqui no Rio de Janeiro, que é a população de favelas. Ou os 110 milhões de pessoas pretas que esse país tem. Prende na seguinte perspectiva: não pisa fora da faixa que você não tem o direito de errar.

 

Há um homem branco ganhando R$ 25 mil por mês pra assinar esse mandado de prisão. Há um homem branco ganhando R$ 23 mil por mês pra pedir esse mandado de prisão. Há um homem branco ganhando R$ 18 mil por mês para mandar a equipe dele cumprir esse mandado de prisão. Há homens brancos ganhando R$ 7 mil por mês na Polícia Civil pra ir lá e prender essa pessoa”, explica Joel Luiz Costa. E de fato há um abismo entre o perfil dos magistrados e o perfil do presos. Segundo dados do Perfil Socioeconômico dos Magistrados Brasileiros publicado em 2018, mais de 62% do Judiciário é formado por homens, 80% brancos, com média de idade de 47 anos. E um detalhe importante: pelo menos 20% tem familiares na mesma carreira. Enquanto isso, 95% dos presos são homens, 67% negros, 45% entre 18 e 29 anos, segundo o Infopen de 2020.

“Então, esses casos, como o desses irmãos, está nessa perspectiva do simbólico. O aviso está dado. Fica na tua que, com sorte, nada vai te acontecer. Com azar vai”, declara Costa. E, com azar, foi o que aconteceu com os guris.

O irmão mais velho contou à reportagem que os anos no cárcere foram de convivência com a superlotação. “Tinha muita gente, muita gente, tinha mais de 200 na galeria”, lembra. Ele fala pouco, mas a linguagem corporal diz muito. Ele já não é guri, é um homem magro, de pele preta, não muito alto, que tenta sorrir, mas parece cansado. Usa um boné e um moletom escuro estilo canguru. Os ombros baixos, encolhidos, as pernas inquietas, sem saber o que fazer com os braços, as mãos acabam nos bolsos. Os olhos expressivos e ao mesmo tempo desesperançosos.

Mas a realidade que ele descreveu não é exclusiva. Em 24 de dezembro de 2019, como um presente de Natal perverso, foi publicada a Lei 13.964/2019, conhecido como Pacote Anticrime. A legislação tornou-se a grande bandeira do então Ministro da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro, que chegou a admitir que as medidas não resolveriam todos os problemas, mas que, na opinião dele, eram um “passo na direção correta”. O problema é que essa “direção correta” era investir no encarceramento em massa e se aproximar da marca de 1 milhão de presos no Brasil.

Um dos pontos centrais do Pacote é o aumento do prazo para progressão do regime, o que significaria um cenário de maior tempo de pena em regime fechado e, como consequência, o aumento do encarceramento de um modo geral no país. Assim, se entre 2016 e 2019 a população carcerária cresceu em um ritmo menos acelerado que nos períodos anteriores, e, entre 2019 e 2020 houve praticamente estabilidade no total de presos – impulsionada pelas medidas de contenção de riscos em razão da pandemia de Covid-19, em 2021, retoma-se a tendência de crescimento da população, atingindo o total de 820.689 pessoas custodiadas pelo Estado.

Vale destacar que esse é o dado sistematizado e divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) a partir de coleta realizada com todas as unidades prisionais do país entre janeiro e junho de 2021. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que usa o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, com informações oriundas dos mandados de prisões e Varas de Execuções Penais, divulgou, para maio de 2022, o total de 919.272 pessoas privadas de liberdade. Ainda que apresentem ordens de grandeza distintas, as duas fontes mostram a mesma tendência de crescimento no número de presos no Brasil. É muita gente. E durante a pandemia, isso significou um risco ainda maior que o normal.

No caso dos guris da casa da frente, como se sabe, eles foram encarcerados em uma prisão que abrigava o dobro de pessoas que o recomendado, sem acesso a condições de higiene e saneamento minimamente aceitáveis e com vários casos de tuberculose.” Tinha muita gente no mesmo lugar?”, perguntamos. “Sim, era horrível.” “E com a Covid teve alguma orientação?” “Não, só o que a gente via na TV.”

 

“NEM TODO MUNDO SAI VIVO”

 

Em março de 2020, com o início da pandemia de Covid-19 no mundo, uma das principais preocupações dos governos ao redor do mundo eram as unidades prisionais. Afinal, são locais insalubres, superlotados e sem a possibilidade de distanciamento social. Logo, são ambientes ideais para a rápida disseminação do vírus. Em março de 2021, Phillip Meissner, especialista em reforma prisional da UNODC, colocou, em perspectiva mundial, que “a superlotação das prisões aumenta os desafios postos pela COVID-19 e a atual viabilidade de levar prevenção e medidas de controle da pandemia a esses locais”.

Mas essa não era uma preocupação do governo do Brasil, especificamente, ou do Judiciário. O site ‘Deixados para morrer’ revela impactos da pandemia nos presídios brasileiros e mostra que o Judiciário fechou os olhos para a situação, endossando uma política genocida, racista e punitiva que resultou em incontáveis mortes que poderiam ter sido evitadas.

Os juízes brasileiros dificultaram e até impediram a aplicação de uma das únicas medidas para conter o contágio por Covid-19 nas prisões, que foi a Recomendação 62/2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A recomendação tratava de medidas sanitárias que deveriam ser assegurada aos presos, como fornecimento de água e acesso à saúde. e convocava magistrados a reavaliarem a necessidade de prisão em uma série de casos. No entanto, o que o Instituto de Estudos da Religião (ISER) notou foi falta de acesso à água e tempo de banho de sol; interrupção da comunicação com familiares; distribuição insuficiente de kits de higiene, máscaras e álcool gel; falta de assistência médica; testagem em massa não realizada; inexistência de distanciamento social e medidas de desencarceramento não implementadas. O CNJ recomendava, entre outras coisas, reavaliar a aplicação do em regime fechado em casos de pessoas com tuberculose, em unidades superlotadas e presos provisórios detidos há mais de 90 dias. Os irmãos da casa da frente se encaixavam nesses três itens, afinal, os dois contraíram tuberculose enquanto presos, estavam em um complexo superlotado e, apesar de a sentença não ter transitado em julgado, estavam presos há dois anos e meio. Mesmo assim, o Judiciário fechou os olhos. E a consequência foi a pior possível.


“Eu vou ser sincera, eu não sei muito bem. Eu até agora não li os laudos do hospital, porque eu não tive coragem. Quem sabe os detalhes é o meu outro filho, mas não consigo tocar nesse assunto com ele. Eu evito. Deixo ele falar quando ele quer falar, que eu sinto que ele está angustiado e quer colocar alguma coisa pra fora, eu deixo, mas eu não continuo no assunto, porque eu ainda não quero saber.” A mãe ainda chora quando fala nisso. Provavelmente vai chorar sempre que lembrar do dia em que o mais novo faleceu, depois de apresentar um quadro de tuberculose dentro da prisão.

“A última vez que eu vi ele foi dia 14 de março. Foi a última visita que a gente fez,  porque na outra semana já cancelaram as visitas por causa da pandemia. Então essa foi a última vez que eu vi ele com vida. Só que ele estava bem.  O meu filho mais velho é mais quieto, mas o outro era muito extrovertido, muito falante, muito risonho e ele estava bem, não demonstrava nada de doente. E aí depois, no dia 27 de agosto me ligaram. Eu estava no trabalho. Era de lá [do Presídio], dizendo que ele estava ruim, que ele estava com tuberculose e que ele estava com a pressão muito baixa. Mas daí me ligaram do hospital, porque ele teve que ser internado e intubado. Só que também não adiantava eu ir lá, porque por causa da pandemia eu não poderia entrar. Isso foi dia 27 de agosto, era umas 5:30 da tarde, mais ou menos. E aí eu fiquei desesperada. Fui para casa e contei para o meu marido. 

Eu liguei para minha irmã, mas depois ela ligou de volta para saber mais detalhes, porque eu fiquei muito atacada e não perguntei nada na hora que me ligaram. A minha irmã depois que ligou e pediu mais informações. A moça do hospital deixou o número dela comigo, caso eu precisasse saber de alguma coisa, porque eu não podia entrar. Daí eu soube que ele tinha ido para lá muito debilitado. E o meu filho disse que ele estava com tuberculose há um tempo e que ele estava tomando a medicação, mas a medicação fazia muito mal, porque ele vomitava muito. E disse também que ele parou de querer sair pro sol, de querer caminhar, que ele ficava mais na cama e quase não comia mais.

Ainda disse que na noite anterior ele  tinha passado muito mal. Ele foi pra enfermaria do presídio dia 26, mais ou menos 10 horas da noite, que foi quando ele ficou bem mal, quase não conseguia respirar. E aí meu filho mais velho e outro rapaz foram até o portão e pediram e imploraram para levar ele para enfermaria.  Daí foi que levaram.

Só que pelo que eu entendo, ele só foi para o hospital no dia 27 à tarde. Então ele ficou do dia 26 à noite até o dia 27 à tarde lá no presídio. E essas horas que, para mim, foram as horas fundamentais pra vida dele. 

Esse intervalo de tempo que eu queria saber o que realmente aconteceu, o que fizeram para ajudar. Se tivessem feito, se tivesse levado ele para o hospital de manhã, será que não teria salvado? Eu não sei. Depois, já nessa madrugada, dia 28, ele faleceu. A moça me ligou. E é isso que eu sei. Há muitas perguntas que eu nunca vou saber, que só ele saberia. Porque ele ficou sozinho depois que saiu do lado do irmão.”

O atestado de óbito não menciona Covid, mas o irmão mais velho não se conforma. Ele não duvida da tuberculose, porque ele também contraiu a doença e até hoje convive com ela, mas a piora súbita nos sintomas, para ele, foi sinal de coronavírus. “Tenho certeza. Porque suspenderam as visitas e depois eles estavam abafando para poder reabrir”, desabafou.  

E ele não está sozinho. No livro “Covid nas prisões: luta por justiça no Brasil (2020- 2021)”, organizado Nina Barrouin e outros autores, é possível ter acesso à memória da violência estatal sobre pessoas encarceradas no período de pico da pandemia do novo coronavírus. Fátima Pinho, moradora da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, e cofundadora do Movimento das Mães de Manguinhos, tem o filho privado de liberdade no sistema de Bangu e relata, no livro, o desrespeito da Secretaria de Administração Penitenciária do estado (SEAP) com a falta de informações sobre o estado de saúde do jovem de 21 anos que entrou saudável no sistema e hoje está com tuberculose. “Queria saber como ele está, pois estamos passando por uma pandemia, meu filho é grupo de risco, e a SEAP não me passa nada. Não durmo e não como direito há dias, pois sei que meu filho não está bem, é uma situação que nos coloca doente. Se por acaso tivesse alguma informação, faria uma diferença enorme, mas nenhum canal de informação existe, com as visitas suspensas, fico sem saber o que fazer”, contou ela em 2021.

Não há como saber se o irmão mais novo foi vítima da Covid, mas sabe-se que há subnotificação de casos nas penitenciárias. Desde o início da pandemia, em 2020, foram registrados 69.591 casos e 314 mortes por Covid no sistema prisional, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública. São 38,5 óbitos para cada 100 mil presos. Quando se trata da população geral, segundo o Our World in Data, o Brasil tem 321 mortes para cada 100 mil habitantes. É uma diferença e tanto, especialmente para um nicho insalubre.

De todo modo, o guri mais novo começou a definhar mesmo antes da pandemia. “Conversando com o irmão sobrevivente, soube que ele entrou em depressão e foi definhando. Emagreceu muito, os dentes foram afetados. Foi uma coisa chocante, porque ele morreu com 21 anos. Chegou lá com 18 e faleceu aos 21. Ele acabou muito frágil e morreu por problemas respiratórios”, conta o defensor publico Iesus Cabral.

Como disse Joel Luiz Costa, há várias formas de matar e morrer no cárcere. Fora das prisões, a taxa de mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes é de 22,2, conforme apresentado no Anuário da Segurança Pública. Já no sistema prisional, a taxa de mortalidade é de 155,6 a cada 100 mil presos. Mas mesmo o que matou o guri mais novo, a tuberculose, não é rara. “No Rio de Janeiro os índices de tuberculose são comparáveis à Idade Média. E há outras coisas: doenças, suicídio, rebelião, bala. Nem todo mundo sai vivo”, diz.

A mãe perdeu completamente a fé. “Porque eu dizia: Deus, por que isso tá acontecendo? Porque eu não sou uma pessoa ruim, meu marido não é uma pessoa ruim, a gente sempre tentou fazer o melhor pelos filhos e por que isso aconteceu? E eu, literalmente, perdi a fé. E isso só foi e resgatando em mim agora pouco tempo atrás, depois de muita luta com isso, comigo mesmo.” Ela só conseguiu começar esse processo depois do julgamento a que o filho mais velho foi sozinho, em 2021, 1460 dias depois da prisão.

 

O GURI DE VOLTA À CASA DA FRENTE

 

A tragédia da morte de um dos guris da casa da frente é mais um elemento de pressão para o defensor público Iesus Rodrigues Cabral, que desde o início percebeu que havia algo de muito errado com esse caso. “Ou os dois rapazes eram atores, eram verdadeiros psicopatas para simular de tal forma brilhante ou eles estavam sendo injustamente acusados disso. E quando eu conversei com eles, cheguei à conclusão que era a segunda opção.”

A preparação para o Tribunal do Júri começa em março de 2020, com o irmão mais novo ainda vivo, mas o julgamento só seria marcado para nove de fevereiro de 2021. Houve quatro adiamentos nesse período, até que em sete de julho chega o dia do evento que não precisa de tempo ou distanciamento para ser definidor.  

Das 12h47 às 14h15, o representante do Ministério Público expõe os indícios frágeis que apontam que os irmãos são culpados pelo assassinato do vizinho. Das 14h30 às 15h40, o defensor público rebate a tese da acusação. O Dr. Iesus é sistemático e organiza as informações por escrito e em uma apresentação de Power Point para os jurados. E ponto por ponto foi derrubando a tese da polícia e do Ministério Público. Ele conseguiu mostrar que os depoimentos eram contraditórios e não se sustentavam, que não havia evidências de que os guris tivessem entrado na casa do vizinho, que não havia indicativos de associação criminosa que fossem além de preconceitos, que não havia materialidade na acusação, até que resta comprovado o fato de que os irmãos estavam em casa, com a família. Cinco anos depois do primeiro crime da casa da frente, quatro anos depois do segundo crime da casa da frente.

No dia sete de julho de 2021, o irmão mais velho foi absolvido. Mas não sem antes perder a paz, não sem antes o irmão perder a vida.

“Quando termina, eu faço questão de ligar para a mãe. E ela chora muito. Chora muito. Ela fala, “olha eu sempre soube.” A mãe sempre acha que o filho é inocente, mas ela sabe que ele é”, lembra o defensor. Hoje, a mãe dos guris, que recuperou a fé, abençoa o defensor. “Não sei como teria sido se o Dr. Iesus não tivesse cruzado o nosso caminho, porque ele entendeu a injustiça e fez de tudo para que eles fossem inocentados. Que Deus abençoe ele e tudo o que ele fizer”, desabafa.

Mas é uma vitória que é difícil de ser celebrada, mesmo pelo Dr. Iesus, que conseguiu encerrar o ciclo infernal da família. “O problema é que a vida desse guri, se ele não passasse pelo sistema penitenciário, já seria muito difícil no Brasil. Mas agora, passando, fica muito complicado, porque a acusação de homicídio, essa vai ficar. Todo mundo vai dizer: ah, esse aqui foi acusado de homicídio.”

 

O caso do crime da casa da frente evidencia as deficiências estatais a que os brasileiros estão submetidos. E é uma deficiência estatal que, nesse caso, tem o apoio da maioria da sociedade. Porque se o guri saísse da prisão e tivesse apoio de um serviço de assistência social integrado que encaminhasse esse egresso para um emprego, por exemplo, seria muito diferente. Mas quem sai de uma penitenciária não recebe sequer passagem para voltar para casa. “Alguém certamente diria, olha, nem o trabalhador recebe isso, mas o bandido recebe”, aponta o defensor. E a família sabe disso, a mãe sabe disso. “A justiça também simplesmente te joga de volta para o mundo, assim como te tirou. Mas te joga e tu que se vire, tu fica também num beco sem saída. Porque é isso que acontece com ex-presidiário. Tu fica sem rumo. E a gente como da família, também, a gente fica sem saber para onde correr, porque a gente quer ajudar, mas não tem como, não sabe como. Por que o nome “ex-presidiário” pesa muito. Porque até eu te explicar, ninguém vai querer parar para ouvir que ele é inocente. E muitas pessoas não vão nem acreditar. Então como que vai arrumar trabalho? É outra luta. A gente não venceu a guerra, ainda, só vou vencer uma guerra depois que eu consegui colocar ele na sociedade de novo.”

E, de novo, não é uma exceção. “Saber que muitas pessoas são injustiçadas porque são pessoas negras, é muito revoltante. Às vezes falam que a gente se vitimiza, mas não. Tem muitas pesquisas que dizem que isso é verdade, que existe o preconceito de classe e de cor”, diz a mãe. “A nossa família nunca mais vai ser a mesma, a vida do meu filho nunca mais vai ser a mesma.”

“Um outro dia a gente foi no mercado e eu pedi para ele entrar comigo.  E ele lá dentro e começou a suar, a tremer. Ele disse que as pessoas estavam olhando para ele, que estavam olhando o jeito dele, que o segurança estava olhando para ele. Teve um ataque de pânico.  Então são traumas que são difíceis, tanto para nós como para ele.”

“Eu posso dizer que justiça teve por um lado. Que se as coisas não tivessem dado certo, seria muito pior. Mas Justiça seria se desde o começo as coisas tivessem sido encaminhadas do modo certo. Eles não teriam nem passado pelo que eles passaram e talvez meu filho estivesse vivo, ainda. Então não sei te dizer isso, se houve Justiça. Porque Justiça há se as coisas são feitas certas desde o começo. Aí sim é Justiça. Porque a cicatriz que ficou na gente, nunca vai sair. Mas eu agradeço todos os dias pelo meu filho estar de volta em casa. Pelo menos um.”

A cada vez que o filho mais velho, que agora está em casa, sai para passear, os pais ficam com o coração na mão. Ligando, mandando mensagens, ansiosos, porque não podem confiar em ninguém, nem na polícia, nem nos vizinhos. E pra ele também é muito difícil. “Por enquanto, eu tô vivendo, não tem o que fazer”, diz o guri mais velho, que evita a casa da frente. Porque nunca se sabe quando evento vai transformar nossa vida.

Reportagens Especiais

O dia em que Everaldo foi cortado – e o que veio antes e depois disso

Geórgia Santos
28 de outubro de 2022
Última atualização em 13/11/2022

O telefone tocou às 18h45 do dia 15 de maio de 1972. Everaldo atendeu e se surpreendeu ao ouvir a voz do advogado Felix Back em uma segunda-feira à noite e logo imaginou que devia ser algo importante. E de fato, era. O também amigo ligara para avisar que Everaldo estava fora da Seleção Brasileira.

Não era um tempo de redes sociais em que os jogadores gravam suas reações ao anúncio da convocação, então ninguém sabe exatamente o que passou pela cabeça do jogador naquele momento. Mas certamente não era um samba-enredo do Bambas da Orgia, o sabor daquela eventual dose de uísque com gelo ou o cheiro da grama do sítio de Viamão. Poderia, sim, ser um samba-canção de Lupicínio Rodrigues, porque talvez nem ele soubesse exatamente o que trazia no peito, se era ciúme ou despeito. Afinal, foram cinco anos de Seleção.

Everaldo tinha que sair em seguida, ia com a esposa para um churrasco em Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre, onde a turma da Seleção Gaúcha estava reunida para comemorar a vitória sobre o Uruguai, de alguns dias antes. Mas ele esperou pelo Jornal Nacional daquela noite para confirmar. Vai que fosse daqueles sonhos matreiros em que a gente pensa que está acordado. Mas não era. Ele realmente fora cortado da Seleção. O jogo em abril contra o Paraguai, na capital gaúcha, havia sido o último.

Já no local da festa, os companheiros estavam inconformados. O meia-esquerda Torino, que também jogava no Grêmio, era o mais incomodado e esbravejava. Everaldo, não. Ele estava calmo. Talvez tenha sido o tempo entre o telefonema e a voz de Cid Moreira. Talvez o tempo entre a casa e o Dodge Dart. Talvez o tempo ao volante tenha sido suficiente para passar a sensação de mal-estar. Ele chegou tranquilo, cumprimentou a todos e já foi dizendo que estava tudo bem e que se havia jogadores em melhores condições, Zagallo, então técnico da Seleção, estava certo em convocá-los. “Tá certo”, dizia ele. Mas não estava. O futebol é um movimento da paixão e Everaldo não imaginava que aquele seria o começo de um evento que entraria para a história do futebol brasileiro.

Ao lado de Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza, Clodoaldo, Gérson, Rivelino, Tostão, Pelé e Jairzinho, Everaldo foi titular daquela que ficou conhecida como a melhor seleção de todos os tempos. Mesmo assim, o jogador do Grêmio não foi convocado para a Mini Copa, um torneio organizado pelo governo e pela Confederação Brasileira de Desportos (CDB) para celebrar os 150 anos da Independência do Brasil e que, segundo Zagallo, serviria como homenagem e despedida de alguns heróis do tri.

Por isso, o estado inteiro se insurgiu para defender Everaldo, o lateral-esquerdo do Brasil na Copa do México em 1970, e ele se tornou personagem central de um dos episódios mais insanos da história do futebol no país. Ele foi um dos motivos pelos quais a Seleção Brasileira enfrentou a Seleção Gaúcha em um jogo de desagravo em 17 junho de 1972.

De um lado, uma Seleção Gaúcha com os melhores da Dupla Grenal. Schneider; Espinosa, Ancheta, Figueroa e Everaldo; Carbone, Tovar e Torino; Valdomiro, Claudiomiro, Oberti e depois Mazinho. Do outro, a Seleção Brasileira de Futebol. Leão, depois Sérgio, no gol; Zé Maria, Brito, Vantuir e Marco Antônio; Clodoaldo, Piazza e Rivelino; Jairzinho, Leivinha e Paulo César Lima. Pela lógica, seria uma partida festiva no Estádio Beira-Rio. Os heróis do tri seriam celebrados, assim como seriam exaltados os gaúchos nascidos no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, na Argentina, no Chile ou Uruguai. Mas não foi o que aconteceu. Cem mil pessoas vaiaram quem vestia amarelo como se fossem os rivais a quem, naquele momento, abraçavam. Queimaram bandeiras do Brasil e maldisseram o Hino Nacional em plena Ditadura Militar.

Mas quem era esse cara, capaz de mobilizar gremistas e colorados ao mesmo tempo? Quem era esse cara que virou estrela cedo demais? Para Jairzinho, o Furacão da Copa de 70, não era apenas o companheiro Everaldo. “Era um dos melhores laterais da história do futebol brasileiro e mundial.”

Everaldo Marques da Silva nasceu em 11 de setembro de 1944, no bairro da Glória, em Porto Alegre. Era filho do seu Osvaldo e da dona Florinda que, desde cedo, entenderam que o futebol seria parte da vida do guri. Devia ter cerca de dez anos quando começou a jogar pelo Marabá entre companheiros bem mais velhos. Em 1970, um desses parceiros deu uma entrevista ao repórter Lupi Martins, da Rádio Guaíba. “Era um dos melhores de todos”, disse o “boleiro” anônimo.

 

“O seu Hermogêneo, nosso técnico, dizia assim: esse rapaz, no futuro, talvez seja um grande craque.”

 

Everaldo foi para as categorias de base do Grêmio em 1957, quando tinha de 12 para 13 anos. O tricolor gaúcho foi a única casa do jogador, exceto por um breve período em que foi emprestado ao Juventude, em 64. Mas se não houve variação de clube, sobrou mudança de posição. Ele começou na zaga do Marabá, chegou como centro-médio no Grêmio, foi experimentado como centroavante no time de Caxias do Sul, até que, mesmo destro, foi parar na lateral-esquerda quando voltou ao tricolor. Segundo o jornalista Batista Filho, foi obra do técnico Darci Schmidt. “Foi ele quem viu que o Everaldo teria que ser lateral-esquerdo, pela forma de condução da bola e do espaço que dava para fazer essa troca de posição que nós vamos chamar de transição.” E ainda há um detalhe: nas primeiras convocações para a Seleção, ele vai como lateral-direito. O goleiro Jair Eraldo dos Santos, companheiro de Grêmio e amigo de Everaldo, lembra que, além do tempo de bola excelente, o lateral chutava tanto com a esquerda quanto a direita. “Então é por isso que ele chegou na seleção nessa posição”, recorda.

A primeira convocação foi em 1967. De alguma forma, ele furava a bolha de Rio e São Paulo e se firmava na lateral com bastante técnica e poucas faltas, qualidades que eram frutos de talento e personalidade mas também de muita dedicação. O Luís Fernando, sobrinho do jogador, conta que ele tinha uma jogada que era marca registrada: o bote. “Ao final de cada treino, ele colocava uma camiseta bem junto à lateral do campo e depois vinha correndo e dava um carrinho. A camiseta era lançada longe e o principal era não levantar a grama do chão. A camiseta tinha que se deslocar no ar, sair da posição inicial, mas não podia levantar a grama. Era para desarmar e roubas a bola sem machucar os adversários”, conta o sobrinho. Ele treinava à exaustão. E funcionou.

Everaldo tornou-se uma peça importante no tricolor. O lateral Zeca Rodrigues, campeão brasileiro com o Palmeiras, só conseguiu ume brecha no time titular do Grêmio quando o companheiro decidiu se casar. Everaldo e Cleci se casaram em 27 de dezembro de 1967. Juntos, eles tiveram duas filhas: Denise, que nasceu em 1968, e Deise, três anos mais nova. Zeca aproveitou a lua-de-mel e jogou toda a primeira fase de 68, em que o Grêmio seria heptacampeão gaúcho. Mas faltou sorte. “No último jogo do turno eu amanheci com um torcicolo. Aí ele entrou de novo.”

No início de 1970, não se sabia qual seria o time titular da Seleção Brasileira na Copa do México. Pra se ter uma ideia, acreditava-se que Mário Jorge Lobo Zagallo apostaria numa linha de ataque com Rogério, Gérson, Jairzinho, Roberto e Paulo Cesar – só dois desses acabaram sendo titulares. Rogério, por exemplo, era ponta-direita do Botafogo na época, mas hoje só lembra dele quem acompanha futebol há muito tempo. É um bom exemplo do tamanho da dúvida sobre os titulares.

A situação era tão incerta que houve um momento em que o zagueiro Brito gritou para os repórteres da varanda da concentração, perguntando se tinham um exemplar do Jornal do Brasil. “Serve outro?”, responderam. “Não, tem que ser o Jornal do Brasil para poder procurar emprego na parte dos classificados.” Com Everaldo, a dúvida era ainda maior. Apesar de convocado inúmeras vezes, ele não era o titular de Zagallo e disputava a vaga com Marco Antônio, que tinha apenas 19 anos e era o mais jovem do grupo.

À época, a revista Placar fez uma enquete para conhecer os queridinhos da torcida e o lateral-esquerdo do Fluminense conquistou o maior apoio popular. Nada menos que 87% escalaram Marco Antônio como titular. Não era pouca coisa. Para se ter uma ideia, Pelé tinha o apoio de 73% dos entrevistados. Também por isso, a escalação para a estreia da Copa do Mundo foi uma surpresa: Félix, Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gerson e Pelé; Jairzinho, Tostão e Rivelino. Marco Antônio estava fora.

Nos jornais da época, a justificativa oficial era de que Marco Antônio estava lesionado. Mas isso nunca foi muito bem explicado e a versão que ficou foi a de que o jogador “não aguentou o tranco”. Ou, se alguém preferir o trocadilho, “amarelou”. É a explicação de que o jornalista Mário Marcos de Souza se recorda. “O Zagalo me falou numa cobertura de Seleção Brasileira e deve ter falado para vários profissionais. “Jogador meu que chega na véspera de uma decisão e vem com história de dorzinha, está fora do time.” E foi o que o Marco Antônio fez.” Everaldo seria o lateral-esquerdo titular em 3 de junho de 1970 contra a Tchecoslováquia, na estreia do Brasil no México.

Já eram três anos de convocações, mas ser titular em uma Copa do Mundo era algo novo para Everaldo. E imenso. Segundo nos conta Denise Helena da Silva, filha do jogador, era também um sonho antigo. Naquela época, ser jogador de futebol era o sonho de todo guri de vila. Minha avó dizia que quando tinha jogo da Seleção Brasileira, ele enchia a casa de bandeirinhas e dizia: um dia eu vou estar lá.” “O que eu posso querer mais?” Era isso que ele dizia nas páginas da Placar.

O Brasil venceu a Tchecoslováquia por 4 a 1. No dia seguinte, o jornal O Estado de São Paulo indicava que, dos quatro defensores, apenas Everaldo não havia recebido citação negativa com relação ao jogo de estreia da Copa de 70. Em seguida, o jogador foi apelidado de o “Gauchão da Copa” pelo narrador Geraldo José De Almeida. “O Everaldo, ele deu aquilo que a seleção precisava, que era marcar melhor pelo lado esquerdo, já que o Marco Antônio não marcava muito. E o Everaldo sabia das suas limitações, não era um grande apoiador, então ele pegava a bola e dava pra quem sabia”, lembra o jornalista João Carlos Belmonte. A lateral-esquerda era dele. Ele só ficou fora de um jogo por lesão e voltou para enfrentar o Uruguai pelas semifinais e, é claro, vencer.

O Brasil jogou a final contra a Itália e venceu por 4 a 1. Uma partida que coroou a melhor seleção de todos os tempos e que até hoje serve de inspiração para o futebol moderno. O técnico Zagallo montou um time perfeito e improvável ao mesmo tempo, pois reunia, nas mais variadas posições, jogadores que tinham praticamente a mesmo função: Gerson, Tostão, Pelé, Jairzinho e Rivelino vestiam a camisa 10 nos respectivos clubes. E essa final, especificamente, tinha algo especial: era a reunião dois bicampeões – até então – que teriam a honra e o privilégio de lutar pelo tricampeonato que renderia a posse da Taça Jules Rimet em definitivo.

 

“Ô Everaldo, no momento que você sentiu realmente no México que você seria campeão do mundo, qual foi o jogo?”

“Foi o primeiro jogo”

Rádio Guaíba, 26 de junho de 1970

 

Os heróis do tri foram enaltecidos com todas as glórias merecidas. E Everaldo, que 52 anos depois nem sempre é lembrado quando se tem no time os brilhantes pés de Pelé, Tostão, Jairzinho, Rivelino, Gérson, Clodoaldo, figurava como eleito entre os melhores da competição. Ele, que chegou de mansinho como reserva de Marco Antônio e conquistou a titularidade, segundo Denise, com uma ajudinha especial.

 

O Pelé tinha um carinho muito grande por meu pai. Eu sei que foi por uma mãozinha dele que o meu pai se tornou titular da seleção brasileira. E teve uma vez que ele veio a Porto Alegre e queria muito comer um carreteiro. Ele ligou pro meu pai e disse: “Everaldo, estou chegando em Porto Alegre e eu vou jantar na tua casa. E tem que ser uma comida gaúcha.” Então minha tia fez um carreteiro de charque pra ela. Não era uma amizade assim, de estar um na casa do outro. Mas ele tirou um dia pra isso. E Pelé é Pelé né? Receber uma ligação do Pelé é maravilhoso, receber o Pelé em casa não é pra qualquer um”, lembra a filha.

 

Com ou sem carreteiro, com ou sem a ajuda de Pelé, o que fica é o que se viu em campo. Ele foi o titular da lateral-esquerda na Copa de 70 pela qualidade do futebol que tinha. “Eu quero te dizer que o Everaldo, pra mim, foi um dos melhores laterais da história do futebol brasileiro e mundial. E como homem um exemplo de personalidade e um exemplo de participação coletiva”, lembra Jairzinho, o Furacão da Copa.

O sonho de Everaldo estava realizado. Do guri que pendurava bandeirinhas da seleção na Glória, em Porto Alegre, ele vestiu a amarelinha e trouxe a Copa do Mundo pra o Brasil fazendo parte da melhor seleção de todos os tempos. Como ele disse à Rádio Guaíba na volta do México, uma vida boa o esperava. “É, talvez com a Copa do Mundo eu consiga a minha independência financeira, mas acho que vai me dar a vida mais regular até a minha morte. Eu acho que até a minha morte, tem bastante tempo.” Não tinha.

Em 1974, Cláudio Duarte era o lateral-direto do Internacional. Naquela noite, o time havia jogado no interior contra o Inter de Santa Maria e voltava de ônibus para a capital gaúcha. Claudião não conseguia dormir em movimento, até hoje não consegue, segundo ele, então viajava no banco da frente, com o motorista. “Eu lembro que a gente vinha retornando pela BR-290 e havia aquele tumulto todo ali naquela reta e que era um acidente. Não nos deixaram parar. O ônibus passou devagarzinho e a gente, da janela, perguntou: “o que houve?” “Acidente com jogador do Grêmio.”

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Era o Everaldo

O corpo estendido no chão na noite de outubro de 1974 era o do Gauchão da Copa, um dos heróis do Tri

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Lasier Martins, que à época era repórter da Caldas Júnior, estava nesse mesmo jogo e passou por essa mesma rodovia, nessa mesma noite. Nós estávamos vindo de Santa Maria, nove e meia da noite, quando de longe nós avistamos um aglomerado de gente sobre a pista. E aí o motorista reduziu a velocidade da caminhonete e quando nos aproximamos o Lupi [Martins, irmão de Lasier e também repórter da Guaíba] gritou: é o carro do Everaldo.”

Em 1970, quando o Brasil foi campeão do Mundo, Everaldo ganhou um carro de presente de uma concessionária de Porto Alegre. Nos arquivos da Rádio Guaíba, está registrado o momento em que o repórter João Carlos Belmonte pergunta sobre a cor ideal do automóvel.

 

– Olha, eu não sei bem, tem duas cores, é a cor azul, porque eu gosto, e também tem essa cor, esse amarelinho ouro, mas vamos ver, talvez quando eu chegar lá eu escolha uma cor que gosto mais, mas vamos ver.

– Nossos cumprimentos Everaldo, muito obrigado. E como eu disse foi uma alegria poder estabelecer esse contato você e seus familiares e sobretudo lhe dar essa notícia de que é proprietário de um flamante Dodge Dart zero quilômetro.

 

O carro com que ele bateu em um caminhão carregado de arroz também era um Dodge, mas não era o que ele ganhou, como todo mundo sempre pensou. O Dodge Dart que ele ganhou tinha as cores do tricolor gaúcho. A lataria era de um azul metálico, tinha a capota preta e era branco por dentro. Mas dois anos depois ele compraria outro Dodge. Agora sim, na cor “amarelinho ouro” que ele cita na entrevista. Foi com esse carro que ele viajou.

Everaldo era candidato a deputado estadual pela Arena com o número 1246 e aproveitou um jogo de veteranos do Grêmio em Cachoeira do Sul para fazer campanha naquela noite. Loivo Johann, que também era jogador do Grêmio, acompanhou o amigo naquela viagem. Fomos juntos e na volta toda a delegação parou em Pantano Grande.  E daí jantamos e fomos embora. Eu parei pra abastecer no posto logo adiante e ele encostou do meu lado. Ele me chamava de alemão. “Ô Alemão, eu vou tocando aí.” “Vai que eu já vou também, só vou abastecer e já vou.” Depois que eu saí, uns 30km depois daquele posto, eu vi o carro atravessado da faixa.” Loivo foi o segundo a chegar no local e a imagem marca a memória ainda hoje, quase 50 anos depois. “Eu perdi um grande amigo. Foi um acidente muito feio, ele entrou embaixo do caminhão carregado. Eu cheguei e fui tentar falar com ele, ele ainda estava vivo, mas a esposa e a filha mais nova já tinham falecido. Eu trouxe a Denise, que se salvou. Ela veio comigo.”

O Loivo levou a Denise, que à época tinha seis anos, para o Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre. Ela lembra de quase tudo. “Nós fomos pra um jogo de futebol e meu pai sempre levava alguém da família. Então ele levou a minha tia, a irmã dele; mais a minha outra tia, irmã da minha mãe; a minha mãe,  minha irmã e o meu tio Jardelino, que era um tio lá de Alegrete que morava aqui em Porto Alegre, primo da minha avó. E nós fomos pra um campo onde tinha um estádio de futebol com uma arquibancada toda pintada de branco. Então eu e a minha irmã brincamos um monte naquela arquibancada. E depois eu lembro da volta, um posto de gasolina onde nós paramos, ele conversou com o Loivo, vários carros pararam para abastecer. E depois eu adormeci no banco de trás, no colo da minha tia. Aí eu não lembro de mais nada.” 

O professor Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, hoje, é titular do departamento de História da UFRGS. Mas antes de ser historiador, ele exerceu a medicina por 13 anos. E estava de plantão no HPS naquela noite.

 

Era impressionante, porque ele parecia muito musculoso, muito forte, porque ele estava com uma hemorragia interna muito grande. Eu já nem lembro quais as lesões que ele teve, mas eram múltiplas lesões. Ele morreu logo depois de chegar. Foi uma coisa realmente muito chocante, porque quando a pessoa deixa ser um número e passa a ter um nome, é outra coisa. Não é um “poli-traumatizado”, o nome dele é Everaldo Marques da Silva.”

 

O companheiro Atílio Ancheta, que à época também jogava no Grêmio, esperava Everaldo para uma celebração em casa e ficou surpreso quando o telefone tocou e chegou a notícia do acidente, porque o amigo era cuidadoso na estrada. “Ele tinha o Dodge e eu tinha um Alpha Romeo. E saíamos a passear com as duas famílias e ele nunca andou rápido. Porque eu me lembro muitas vezes de que nós viajámos e eu andava a 80 ou 100 km/h e ele ficava para trás. Eu freava num lugar, tomava um refrigerante e ele aparecia quinze minutos depois.” Depois de uma hora, um novo telefone com o aviso de que Everaldo tinha falecido. Nessa hora, o amigo já não consegue continuar. Ancheta precisou interromper a entrevista por alguns minutos neste ponto, os olhos se encheram de lágrimas e a voz não saía. É como se ele tivesse sido transportado para o enredo do bolero mais triste que já cantou.

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Everaldo Marques da Silva faleceu em 27 de outubro de 1974, aos 30 anos de idade

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Naquela noite, também morreram a esposa, Cleci; a filha caçula, Deise; e sua irmã, Romilda. A morte de Everaldo foi uma tragédia daquelas que tem poder de anestesiar uma multidão. A família despedaçou-se. E com ela, o estado inteiro. No Grêmio, o trauma foi coletivo. O Luís Fernando, sobrinho do jogador, era criança. Mas jamais esqueceu daquela madrugada.

Talvez hoje as pessoas não tenham dimensão do tamanho de Everaldo, embora devessem. “O Everaldo pegou um nome que acho que nenhum jogador gaúcho depois alcançou na mesma proporção. Lamentavelmente, morreu ali o Everaldo, mas ficou o nome. Ficou o nome, ficou a família e ficou a estrela”, ressalta o jornalista Lasier Martins. O Everaldo é aquela estrela dourada na bandeira no Grêmio.

A ideia foi do então vice-presidente do Grêmio, Sérgio Ilha Moreira. “Um belo dia, em 1970, o Flávio Obino, nosso querido presidente, e eu conversávamos sobre esse feito de um jogador do Grêmio ter entrado na história do futebol brasileiro e como o clube se inseria nesse contexto. E me veio à mente a colocação de uma estrela dourada na bandeira do Grêmio. A história pode ser esquecida por algum tempo, mas jamais será apagada. E a estrela ali na bandeira do Grêmio é isso. Cada vez que eu passo pela Arena ou vejo uma bandeira do Grêmio tremulando, eu me lembro do Everaldo.”

Mas será que é o caso quando se pensa nas novas gerações? Será que todo gremista conhece Everaldo? Será que todo mundo sabe quem é aquela estrela? Será que todo mundo sabe que ele fez parte daquela seleção que encantou o mundo e foi escolhido como um dos melhores por jornalistas brasileiros e estrangeiros? “Se fizerem uma enquete do significado da estrela da bandeira do Grêmio, muita gente não vai saber essa resposta e eu acho que isso faz parte desse apagamento de quem contou essa história, de quem está contando essa história.” Quem diz isso é o Marcelo Carvalho, coordenador do Observatório Contra a Discriminação Racial no Futebol. “Quem está simbolizando pra torcida qual é o símbolo daquela estrela. E eu acho que isso faz parte desse apagamento. A gente não conta essas histórias, a gente deixa elas serem ditas pelo povo. E aí o povo vai trazer as suas versões. E eu acho que essa história do racismo tem muito isso. De a gente esquecer os grandes ídolos que o futebol brasileiro já teve que eram negros.

E o apagamento do Everaldo começou em vida. No dia seguinte ao enterro do jogador, enquanto jornais gaúchos como Zero Hora e Correio do Povo exaltavam os feitos da estrela, no centro do país, a despedida era melancólica. “A morte de Everaldo, o tricampeão infeliz”, esse é o título da reportagem com a notícia triste do jornal “O Estado de São Paulo”.

“Não tivesse sido tricampeão mundial, Everaldo seria sempre marcado pelo azar. Menino pobre nascido no dia 11 de setembro de 1944, tornou-se titular do Grêmio justamente quando, depois de 13 anos de domínio no futebol gaúcho, o time entrava em decadência. Foi também o mais pobre dos tricampeões, o que jamais conseguiu aplicar bem o dinheiro trazido pela rápida fama: descontrolado por problemas financeiros, perdeu primeiro a posição na seleção, em 72, depois agrediu um juiz e tornou-se reserva no seu próprio time.”

Esse episódio a que a reportagem se refere talvez seja a única mancha no currículo de Everaldo. Muito embora, para torcedores devotos como o escritor Eduardo Bueno, tenha sido um ponto alto. O que eu mais gosto do Everaldo é quando ele resolveu fazer justiça com as próprias mãos com o juiz José Faville Neto. O Grêmio era tradicionalmente roubado pelas arbitragens do centro do país e por algumas locais também. Eu estava presente naquele jogo contra o Cruzeiro e o tal José deu um pênalti que não foi. Aí o Everaldo recebeu um Will Smith. Não sei se essa lembrança vai ser fugaz ou não, mas o Will Smith é o ator que fez justiça com as próprias mãos no Oscar. O Everaldo também”, contou.

Apesar do entusiasmo do Peninha, como disse o jornalista Michel Laurence em uma crônica, os personagens não combinavam com o enredo. Um árbitro honesto e um jogador discreto. Foi uma surpresa, especialmente para um jogador que receberia o Prêmio Belfor Duarte naquele ano, por fair play. Mas ele foi suspenso do futebol por um ano.

Ninguém sabe exatamente o que houve para que Everaldo agredisse o árbitro fisicamente, mas a matéria do Estadão indica que o descontrole aconteceu porque ele enfrentava problemas financeiros. Como todos os tricampeões, Everaldo ganhara uma agência lotérica da Caixa Econômica Federal, mas essa loja teve a licença cassada por irregularidades cometidas por dois funcionários. E a estância que ele tinha em Viamão também não rendia o esperado. E assim listava os infortúnios do jogador.

Mas quando desembarcou em Porto Alegre voltando do México, em 70, Everaldo deixou o testamento de como queria ser lembrado. Eu espero que os torcedores do Rio Grande do Sul e a crônica, em primeiro lugar, me vejam como me viam antes, para que eu seja aquele que era antes.” Que assim seja.

A chegada do Everaldo depois da Copa do México, em 26 de junho 1970 foi uma consagração. Depois de ir à Brasília, onde a Seleção foi recepcionada com toda a pompa e circunstância, ele foi esperado por milhares de pessoas em Porto Alegre.

 

“Uma multidão enorme se faz presente e a parte fronteira de Salgado Filho aqui na parte milhares de pessoas com bandeiras do Brasil, do Grêmio, até mesmo do Internacional, estão presentes aqui para recepcionar o craque tricampeão do mundo, o Everaldo. Agora lá o Everaldo Marques da Silva, erguendo uma réplica da taça.”

Rádio Guaíba

Essa imagem eternizada no som da transmissão da Rádio Guaíba também está nas páginas de todos os jornais do RS. Everaldo vestia um conjunto de calça e jaqueta de couro, ou melhor, de camurça, em tom de caramelo. A jaqueta tinha franjas ao melhor estilo Buffalo Bill, como disse Divino Fonseca na Placar.

Depois de sair do Aeroporto Salgado Filho, Everaldo foi sentado em um trono armado sobre um caminhão. E acomodado como um rei, não estava sozinho. De um lado, a esposa, de outro, a mãe. No colo, a pequena Denise. O cortejo saiu do aeroporto Salgado Filho com destino ao Palácio Piratini, onde Everaldo seria recepcionado pelo Governador do Estado.

Uma escola de samba cadenciava a festa das 100 mil pessoas que saíram às ruas para receber o ídolo. “Um gaúcho que aguentou o repuxo”, como estava escrito em várias das faixas espalhadas pela cidade. “Foi uma loucura e ali a festa eram colorados e gremistas.”  Essa lembrança do Mário Marcos é importante, porque mostra que unir gremistas e colorados era uma constante pra o Everaldo.

Naquele momento, a ovação dos gaúchos com relação a Everaldo parecia daquelas coisas que não se repetem. Mas voltou a acontecer. E assim voltamos ao começo da nossa história, a 15 de maio de 1972.

Everaldo estava fora. O técnico da Seleção em 72 era Mário Jorge Lobo Zagallo e cabia a ele escolher o time que disputaria a Taça da Independência, o nome oficial da Mini-Copa. E ele não só cortou o Gauchão da Copa como ignorou o colorado Claudiomiro, frustrando as duas torcidas. No dia 16, os jornais já estampavam: “Gaúchos declaram guerra à seleção”.

O torneio era ideia do general Emilio Garrastazu Médici, o ditador do momento, e a sugestão foi prontamente acatada por João Havelange, então presidente da CBD, que era como se chamava a CBF na época. Os dois concordaram que era preciso celebrar os 150 anos da Independência do Brasil. Mas Havelange ainda tinha um segundo motivo: estava de olho na eleição da FIFA e essa era a oportunidade perfeita para fazer campanha.

Mas deixar os gaúchos de fora gerou um clima de revolta que estava nos jornais, nas ondas das rádios e invadia a TV. Imprensa, dirigentes de Grêmio e Inter, jogadores e torcedores faziam, naquele momento, acusações severas à CBD, afirmando que os diretores da entidade estavam comprometidos com os clubes cariocas. Além disso, começaram a ventilar a ideia de que não prestigiariam as semifinais da Mini-Copa, que aconteceriam em Porto Alegre. Dizia-se em alto e bom som que Havelange não ganharia dinheiro nenhum por aqui, nem para pagar a bola. E isso era um problema imenso para o dirigente, porque ele tinha saído por aí, mundo afora, oferecendo rios de dinheiro pra trazer seleções pra o Brasil e votos a sua eleição na FIFA.

Há registros em jornais de São Paulo que a gauchada estava tão incomodada que arriscava ameaçar Havelange, dizendo que era melhor ele não aparecer por estas bandas. O jornalista Lauro Quadros deixou a intimidação registrada na Folha da Manhã.

 

“Olha gente: a convocação do Zagalo, 24 horas depois daquele banho que demos nos uruguaios, é uma vergonheira. Um monte de cariocas, um pouco de paulistas, vários mineiros e nenhum gaúcho. Com toda a força do nosso futebol, comprovada reiteradamente, é dose! Querem uma prova da sujeira? Everaldo foi o único tricampeão desconvocado. Por Rodrigues Neto, do Flamengo de Zagalo. Para o RS, uma punhalada, tal como o esquecimento de Claudiomiro. Agora sei porque o Zagalo não veio ao Beira-Rio domingo. Aliás, depois dessa, nem precisa vir mais.”

 

Além dos jogos da Mini Copa previstos pra o Beira-Rio, tinha jogo-treino da Seleção marcado para acontecer em Porto Alegre no dia 17 de junho. O colunista Antônio Carlos Porto, da Folha da Manhã, dizia que Havelange já podia alterar os planos. O presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Hoffmeister, também não media palavras. Disse que, com a não-convocação de Everaldo, “cortaram a única ponta que mantinha o estado ligado ao esporte nacional.”

Enquanto isso, Everaldo, que seguia discreto, afirmando que recebia aquela desconvocação com a mesma simplicidade com que recebeu a primeira convocação, em 67. O lateral-esquerdo do Grêmio era um homem inteligente. Disse ao jornal Estado de São Paulo que se os convocados tivessem a mesma sorte que ele teve, ele nunca mais seria chamado.” Ou seja, a encrenca tinha tudo para esfriar, só precisava de tempo, mas Havelange cometeu um erro fatal.

No dia 17 de maio, durante visita à Federação do Comércio de São Paulo, Havelange disse que os gaúchos não tinham sentimento de brasilidade. Pode até parecer lógico para quem pensa numa Revolução Farroupilha da vida, mas os gaúchos não aceitaram, especialmente em um momento de exaltação nacionalista do regime militar. “Houve uma comoção nacional, eu me lembro claramente, e a mídia gaúcha insuflou isso”, lembra o escritor Eduardo Bueno.

A frase de Havelange foi como sal nas feridas dos gaúchos, que sempre se sentiram rejeitados. Era um desacato. Afinal, apesar da pecha separatista, o Rio Grande do Sul queria que João Havelange soubesse que o Brasil vai até o Chuí. Inclusive a autoridade máxima do estado. No dia seguinte à declaração de Havelange, o governador Euclides Triches enviou um telegrama ao presidente da CDB pedindo explicações:

“Peço ao ilustre presidente a gentileza de informar o exato teor das declarações prestadas na sede da Federação do Comércio de São Paulo, aqui divulgadas, atribuindo a torcedores gaúchos a falta de sentimento de brasilidade. Saudações, Euclides Triches.”

Os deputados estaduais também não pouparam críticas à CBD e os parlamentares de Arena e MDB, talvez em uma união ainda mais estranha que de gremistas e colorados naqueles tempos, aprovaram o texto de outro telegrama por unanimidade:

“Os deputados gaúchos com assento nesta Casa (a Assembleia Legislativa), por unanimidade, deploram sua manifestação perante empresários paulistas. Até a presente data, ninguém precisou ensinar lições de patriotismo e brasilidade ao povo gaúcho, que tem sido mestre nesse setor. Fica convidado a vir até o rio Grande do Sul, a fim de aprender, ao longo de nossa história, os exemplos mais vivos e dignificantes de como se constitui com lutas e sacrifícios, as páginas da história brasileira.”

 

O prefeito que hoje é nome de viaduto, o arenista Thompson Flores, lamentava o ocorrido. O vereador que hoje é nome de Largo, o emedebista Glênio Peres, era taxativo: “Havelange demonstra não ter condições para nem mesmo dirigir uma liga esportiva do interior.”

No final da tarde no dia 18 já se acumulavam dezenas de pronunciamentos, listas e abaixo-assinados com mensagens de protesto. Todas deveriam ser enviadas ao presidente Médici. Uma delas, que circulava pela Rua da Praia, no centro da capital, indicava que  os signatários manifestavam “a mais viva repulsa face à manifestação do presidente da CBD”. E foi a partir deste dia que a imprensa gaúcha começou a chamar Havelange de Jean Marie – o nome oficial do dirigente, dando uma letrinha sobre brasilidade.

Zagallo errou primeiro, ao não convocar Everaldo para disputar a MiniCopa. Havelange errou depois, ao dizer que os gaúchos não tinham sentimento de brasilidade. Os dois equívocos combinados, foram a oportunidade perfeita para um jogo de desagravo: a Seleção Brasileira deveria enfrentar uma Seleção Gaúcha. E o presidente da FGF, Rubens Hoffmeister, propôs o duelo como a única maneira de recompensar os sulistas.

O presidente da CBD arrastou a resposta tanto quanto pôde, mas finalmente, em 12 de junho de 72, apenas cinco dias antes da data do amistoso agendado para Porto Alegre, é que chega a confirmação de que “os brasileiros” enfrentariam um selecionado gaúcho. Para acomodar a agenda, o Hamburgo, adversário no jogo-treino,  passaria a enfrentar a equipe Olímpica, com os jovens Falcão e Abel. Além disso, toda a renda do jogo seria destinada às obras sociais da primeira-dama do estado. Assim, os dois jogos serviriam como homenagem ao povo gaúcho e assinalariam um ponto final nas divergências entre a CBD e o povo do Rio Grande.

No dia 13 de junho, a Federação Gaúcha de Futebol publicou um livreto com a convocação. Otávio Junior, neto do Everaldo, encontrou um original. O lateral-esquerdo do Grêmio, discreto nas manifestações sobre esse jogo do qual é personagem central, guardou esse material com cuidado. Talvez um sinal de que aquele momento foi, sim, muito importante pra ele. Na lista estavam jogadores de Grêmio e Inter.

Os convocados se apresentaram no dia 14 para treinar e no dia 15 para a concentração. Foram dias em que, pelo menos para os atletas, a rivalidade Grenal quase desapareceu. E os mais jovens estavam maravilhados. “Eu lembro que eu e alguns outros jovens, a gente procurava nos treinamentos tentar fazer uma ligação com o Everaldo. Tentar conversar, porque ele era a estrela, a gente estava quase naquela de pedir “por favor” pra ficar junto, né? Então foi um exemplo que me foi muito positivo”, lembra Cláudio Duarte, que na época tinha 21 anos.

Apesar do apoio dos colegas, Everaldo sabia que estava no meio dessa guerra. Por mais que o erro de Havelange tenha sido determinante para o jogo acontecer, tudo começou com a não-convocação do jogador. E não deixava de ser um peso, como lembra Bráulio Lima, o “Menino de Ouro” do Inter. “Ele estava um pouco ansioso, um pouco nervoso. Durante um treino, ele estava sentado e eu sentei na bola perto dele e disse assim: o que é pior, jogar esse jogo ou uma decisão contra a Itália? Ele começou a rir e a descontrair e eu digo: deixa que a gente pega a bronca pra ti. E o Figueroa foi lá disse: deixa que nós abraçamos, tu vai lá e joga o teu futebol.”

Então, em 17 de junho de 1972, sob os olhares de 100 mil pessoas, os times entraram em campo juntos – muito como uma estratégia frustrada para inibir a vaia monumental. Os capitães empunhavam a mesma bandeira do Brasil. De um lado, Brito, do outro, Everaldo. “E se eu bem lembro, uma coisa que foi notada por todos é que quando os times entraram em campo, os jogadores da Seleção Brasileira fizeram questão de cumprimentar o Everaldo.”

A vaia foi inédita para a Seleção Brasileira, acostumada a ovações mesmo de adversários. Mas a torcida, que não estava para diplomacias, não cedeu. O primeiro gol da Seleção Gaúcha ocorreu aos três minutos do primeiro tempo, pelos pés de Tovar, e o estádio Beira-Rio quase veio abaixo. Quando Jairzinho fez o primeiro gol da Canarinho, foi um silêncio sepulcral.

O jogo terminou com um quase amargo 3 a 3, que, no fim, foi um placar perfeito para o desagravo, Everaldo saiu gigante, os gaúchos lavaram a alma e os brasileiros, apesar de melindrados, não voltaram para casa humilhados.

“Vamos lá, pessoal. Quem é o bom na cuíca? Pergunta uma voz não identificável. Torino, gremista todo de vermelho, estava numa rodinha com Sérgio, Beto, Everaldo e Cláudio, batucando nos vestiários do Beira-Rio. Nem pareciam os adversários valentes dos Grenais. Até Oberti, argentino fechado, batia no banco, imitando um pandeiro, batucando.

Aparício [o treinador da Seleção Gaúcha], olhando de longe, disse: é fácil comandar um time assim. Veja como eles se entendem.”

Zero Hora, maio de 1972

 

É possível presumir que foi a redenção de Everaldo, embora ele não verbalizasse. Mas é conjectura. Ele é descrito sempre como um cara discreto, tranquilo, de poucas palavras e que vivia para a família. Quase 50 anos após sua morte, a filha Denise lembra de detalhes cheios de carinho. “Eu lembro do meu pai bem em casa mesmo, de chinelo de dedo, bermuda, camiseta e curtindo a música dele na vitrola. Eu lembro da Páscoa, também. Ele gostava muito e a gente tinha que procurar o ovo.”

Mas quem conhecia ele de perto, como o Loivo, o Zeca e o Ancheta, também sabia que ele gostava de uma festa. Apesar da discrição e tranquilidade, ele se soltava quando o assunto era samba. Tanto ele quanto a esposa Cleci, cujo pai foi presidente da escola de samba Bambas da Orgia. Aliás, foi na quadra da azul e branco que eles se conheceram. “Ele sempre me convidava para os ensaios, para ir lá no baile, e eu dizia: “Everaldo, alemão não gosta de carnaval.” “Mas vamos junto lá, vamos tomar uma cervejinha”, dizia ele. Ele gostava muito de mim, daí eu ia com ele pros Bambas lá na travessa da Protásio”, conta Loivo.

O gosto pela música era tanto que ele e o goleiro Jair até se aventuraram pela noite porto-alegrense. Nós tivemos em Porto Alegre um bar chamado emboscada, no centro. Com música ao vivo, muito tira-gosto. E foi muito legal, vivia lotado. Tivemos até Sargentelli”, conta o amigo.

E quando acabava a temporada do futebol, o caminho era praia. “A gente era um trio, eu, Espinosa e Everaldo. E quando começava as férias, a gente ia junto para aquela região das praias, Tramandaí, Cidreira. E a gente, puxa vida, até inventava algum tipo de roupa. Tinha um alfaiate em Porto Alegre muito famoso que fazia pra nós alguns negócios diferentes”, conta Jair, fazendo referencia ao alfaiate Reis, que vestia os jogadores de futebol mais atentos às tendências.

E Everaldo era um deles, segundo a Denise. Ele era elegantérrimo, ele gostava de se vestir bem, ele gostava de coisas boas.” E gostava de inventar moda, de acordo com os amigos. O Zeca Rodrigues, que também é padrinho da Denise, conta que as roupas do jogador do Grêmio eram um espetáculo à parte. Eu lembro do casamento do Valdir Espinosa, nós fomos padrinhos. Era eu, ele e o Jair. E o Everaldo colocou um terno que era uma coisa inexplicável, parecia essas fazendas para fazer sofá. Ele foi gozado por todo mundo, foi um motivo de gozação.”

O meu pai, todo tempo possível que ele tinha pra estar com a gente, ele era pai. Ele tinha tempo de brincar, de nos levar pra passear. Ele me ensinou a gostar de samba, porque é o ritmo que eu mais gosto, que me embala, que me faz feliz. Foi ele quem me apresentou, Lupicínio Rodrigues e Paulo Diniz. Eu lembro bem. Ele gostava de estar em casa com a gente. Eu tomava uísque” com ele. O meu era água com gelo e ele tomava uísque, né?

Ele também gostava muito de reunir a família, de fazer churrasco, de estar com os amigos também e a gente sempre fez parte disso. Ele sempre levava os amigos pra dentro de casa. Pra mim sempre era festa, todo dia era festa.  Ele era uma pessoa que adorava a vida. Ele tinha muito tempo pra ser pai, pra ser marido, pra ser irmão.”

Olhando pra trás, pensando na mobilização que ele provocou, não é estranho. Não é estranho que alguém tão amado fosse capaz de unir gremistas e colorados três vezes: quando voltou da Copa, quando não foi convocado para a Mini Copa e quando faleceu.  Então eu espero que os torcedores do Rio Grande do Sul e a crônica em primeiro lugar me vejam como me viam antes para que eu seja aquele que era antes”, disse ele em 70.

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Texto: Geórgia Santos

Entrevistas: Cléber Grabauska e Silvio Benfica

Produção: Márcio Beyer

 

 

Reportagens Especiais

A Filha Perdida

Colaborador Vós
18 de janeiro de 2022

Por Tatiane de Sousa*

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O filme A Filha Perdida, adaptação de Maggie Gyllenhaal do romance homônimo de Elena Ferrante e disponível na Netflix desde o final do dezembro, aborda de modo nada sutil a intensidade da relação entre mães e filhas, uma pedida a reflexão sobre essa ligação tão arrebatadora, transformadora e indelével. A proposta não serve apenas para quem passa pela maternidade como para todas as mulheres como filhas. 

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Na trama, a protagonista Leda relembra as emoções vividas com as filhas quando ainda eram pequenas a partir da observação de uma jovem às voltas com sua pequena durante o veraneio. As cenas observadas mostram uma mãe sufocada pela necessidade de atenção permanente da criança. Diante dos cuidados, a personagem acaba por anular seus desejos enquanto espera por dias mais tranquilos. Apesar do amor que sente pela criança, parece que não há espaço para o desempenho do papel materno com satisfação. Os flashbacks de Leda mostram igualmente uma mãe oprimida e dividida entre as possibilidades profissionais e os desejos como mulher, e as obrigações maternas.

A personagem principal da trama está em férias, sozinha e conversa eventualmente com as filhas de 23 e 25 anos pelo telefone. Apesar de os diálogos aparentarem uma relação normal, de cumplicidade e preocupação mútua, Leda se prende à culpa de não ter sido mais presente na infância das meninas. O título “A Filha Perdida”, aponta mais na direção do rompimento que se dá na relação da mãe com as filhas do que na perda física da coadjuvante com a criança que acontece durante determinado ponto da trama.

Para entender um pouco mais sobre essa relação, vale lembrar o livro A Relação Mãe e Filha, (Ed. Campus), da psicanalista Malvine Zalcberg. A autora aponta que, mesmo quando há a intervenção paterna constituída no Complexo de Édipo, as dificuldades da filha de separar-se da mãe existem. Principalmente quando a mãe confunde os cuidados com o dom do seu amor e oferece à filha algo sufocante, alimentando-a em demasia, impedindo que a filha chegue a formular uma demanda em função de alguma falta ressentida. Sem falta, não há como fazer emergir um desejo próprio. O livro interpreta estas dificuldades que expressam uma ligação profunda entre mãe e filha e têm como efeito o ressentimento e a ambivalência da filha em relação à figura materna, conjuntura emocional já constatada e balizada por Lacan com o neologismo “hainamoration”, isto é, haine (ódio) énamoration (enamoramento) para demonstrar o que se passa em uma menina que ama e odeia sua mãe: um processo catastrófico e devastador.

No filme o sofrimento mostrado está todo na mãe responsável pelo rompimento. Mas o telefonema no final a uma das filhas mostra que, afinal, apesar das culpas, tudo ficou bem. A culpa materna não se justifica com filhas felizes e capazes de construir suas vidas.

Em dado momento da trama, Leda, que se dedica à carreira e impõe-se a separação das filhas, diz ao marido ser uma ameaça falar que deixará as crianças com sua progenitora caso ela não volte. Para o pediatra e psicanalista Donald Woods Winnicott, “para toda mulher, há sempre três mulheres: ela mesma, sua mãe e a mãe de sua mãe” (WINNICOTT apud ZALCBERG, p. 6). É nas dificuldades dessa relação – da “catástrofe” e da “devastação à mascarada” – que cada menina construirá o seu caminho como mulher, em um processo de invenção e criação da feminilidade. De qualquer modo, a construção de uma mãe satisfeita é fundamental para a construção de uma filha capaz de criar sua individualidade e feminilidade. O rompimento no entanto, não precisa ser dramático como em um filme para apresentar um final esperançoso ou feliz, digno de um romance.

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Parafraseando a própria personagem , “não são apenas as coisas inefáveis a que me refiro, mas as inesperadas.”

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*Jornalista, pós graduada em comunicação e marketing pela Unisinos. Profissional inquieta sempre aberta a novos desafios na reportagem, produção e assessoria de comunicação. Atualmente, consultora de comunicação no Tesouro do Estado. Na vida, mãe de adolescentes full time. Para descontrair, brinco de escrever e cozinhar.

Reportagens Especiais

(Mais) protestos conservadores na era pré-pós-Trump: invadindo o Capitólio

Colaborador Vós
9 de janeiro de 2021

Por David S. Meyer*

O esforço caótico de insurreição no edifício do Capitólio mostrou que mais 14 dias é tempo demais para Donald Trump continuar a servir como presidente.

Como prometido, [em seis de janeiro] Trump apareceu cedo para falar em um comício organizado em apoio às suas acusações infundadas de que a eleição presidencial fora roubada. Na maior parte, o discurso reprisou a recitação de realizações imaginadas e inimigos acumulados, conhecidos de suas aparições de campanha. Mas a lista de inimigos ficou maior, agora incluindo o ex-procurador-geral William Barr; o vice-presidente Mike Pence; o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell; e a congressista Liz Cheney. Seus pecados: não apoiar Trump agressivamente o suficiente e, então, apegar-se demais às normas da governança constitucional.

Trump (de novo, falsamente) alegou uma vitória eleitoral esmagadora, reclamou sobre ser enganado e exigiu que seus seguidores lutassem para mantê-lo no cargo. Ele proclamou que jamais reconheceria a derrota e anunciou que marcharia com eles até o prédio do Capitólio para impedir o Congresso de aceitar os resultados do Colégio Eleitoral. Então, Trump voltou para a Casa Branca.

Os apoiadores seguiram em frente e, de alguma maneira, formaram uma coluna que passou pelos bloqueios ao redor do Capitólio e invadiram o prédio. (Pelo menos um vídeo circulando parece mostrar a polícia removendo as barricadas para convidar os insurgentes a entrarem.) Você teria que voltar a 1814, quando os britânicos invadiram (sem guitarras) para encontrar algo remotamente semelhante. Ironias abundaram enquanto os caras que marchavam para apoiar vidas azuis lutavam com a polícia.

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Trumpianos subiram correndo os degraus do Capitólio e avançaram pelos corredores, reivindicando o plenário da Câmara e do Senado, ocupando o Statuary Hall, invadindo escritórios, vasculhando mesas, quebrando vidros e saqueando – tirando selfies por todo o caminho
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Embora seja provável que pelo menos alguns dos vândalos tenham planejado a incursão, parece que muitos dos insurgentes apenas se deixaram levar pelo momento. Houve pouca coordenação aparente depois que o pessoal da segurança evacuou os membros do Congresso, nem qualquer consideração de uma mensagem comum.

Havia manifestantes em trajes estranhos, uma variedade de bandeiras brandidas (veja a bandeira confederada abaixo, quase cobrindo o que tenho certeza que é um retrato de John C. Calhoun, o principal teórico político da secessão do sul para preservar a escravidão), bonés MAGA [Make America Great Again, algo como Faça a América Grande de Novo, em tradução livre], mas não muitas máscaras em deferência a uma pandemia global.

O acesso aparentemente fácil dos vândalos ao prédio e sua capacidade de interromper o funcionamento do governo nacional levantaram questões óbvias sobre o policiamento. Os tuiteiros foram rápidos em perceber que bloqueios, prisões, espancamentos e estrangulamentos, gás lacrimogêneo e tiros vieram muito mais lentamente para este grupo de manifestantes brancos do que para disciplinar os manifestantes do Black Lives Matter no verão passado, quem dirá para o ocasional motorista negro, ou corredor, consumidor ou dorminhoco.

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O esforço tardio de Trump para promover a ordem pública veio com um vídeo de um minuto no qual ele reiterou suas queixas insustentáveis ​​sobre a eleição e declarou seu amor pelos insurgentes antes de encorajá-los a voltar para casa
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A coordenação da segurança pública estava, na melhor das hipóteses, dispersa, em parte devido a uma administração disfuncional e desinteressada, em parte como resultado da estranha governança de Washington DC. Observe que foi o Pence quem chamou a Guarda Nacional, embora o vice-presidente não tenha autoridade para fazê-lo. Demorou horas para uma coleção de agências de segurança pública evacuar o prédio e, lentamente, as áreas do entorno.

Os líderes do Congresso anunciaram que se reuniriam novamente e aceitariam os resultados assim que o prédio fosse limpo e, presumivelmente, quando o gás lacrimogêneo também fosse removido. Eles estavam determinados a não dar aos insurgentes nem mesmo o sopro de uma vitória para reivindicar. Parece que pelo menos alguns dos membros abandonaram seus planos de contestar os votos de alguns dos estados indecisos.

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As reportagens, nesta fase, não importa o quão sérias e bem-intencionadas, provavelmente não são totalmente fidedignas, então estamos esperando para obter uma história mais completa e esclarecer as implicações, mas aqui estão alguns palpites:

A insurgência vai desafiar ainda mais a fé de pelo menos alguns políticos republicanos no presidente, exacerbando uma divisão crescente no partido;

A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e os líderes do Senado McConnell e (agora!) Schumer tentarão coordenar alguma forma de remover – ou pelo menos calar – Trump para evitar mais danos. (O Twitter congelou temporariamente sua conta);

O Congresso – e as legislaturas estaduais – vão reforçar barricadas e aparelhar as forças policiais e de segurança, tornando mais difícil para as pessoas confrontarem – ou mesmo entrarem em contato com – seus representantes;

Talvez haja um apoio mais urgente para a criação de um estado em Washington DC – um governador poderia fazer coisas para proteger a ordem pública que o prefeito não poderia;

Talvez haja um pouco mais de suporte para uma modesta regulamentação de armas – dependendo do que acontecer a seguir;

Estamos vivendo um capítulo estranho e perturbador da história Americana. Eu ficaria bem em pular as últimas páginas e chegar a algo diferente.


Originalmente publicado no site Politics of Protest, sob o título (More) conservative protest in the pre-post-Trump era: storming the Capitol.

*David S. Meyer
Autor de The Politics of Protest: Social Movements in America
Professor de Sociologia e Ciência Política na Universidade da Califórnia, Irvine

 

Reportagens Especiais

Epidemia de empobrecimento . Fim do auxílio emergencial deve recolocar milhões em situação de pobreza

Geórgia Santos
31 de dezembro de 2020

Por Flávia Cunha, Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol

“Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do que manteiga? Ela não responde. — E o gelo?… pra que é que se precisava de gelo?… Faz-se uma pausa. Ele continua: — Gelo… manteiga… Quanta bobice inútil e dispendiosa… — Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o leite? — Por que não? — Com o leite?! Ele desvia a cara de novo. — Não digo com o leite — acrescenta depois — mas há muito esbanjamento. — Aponta o esbanjamento. — Olha, Adelaide (ele se coloca decisivo na frente dela), tu queres que eu te diga? Outros na nossa situação já teriam suspendido o leite mesmo. Ela começa a choramingar: — Pobre do meu filho… — O nosso filho não haveria de morrer por tão pouco. Eu não morri, e muita vez só o que tinha pra tomar era água quente com açúcar. — Mas, Naziazeno… (A mulher ergue-lhe uma cara branca, redonda, de criança grande chorosa)… tu não vês que uma criança não pode passar sem leite?”

Em “Os Ratos”, Dyonélio Machado apresenta o protagonista Naziazeno durante o que o autor chama de “pega” com o leiteiro, que exige pagamento pelo leite de todo dia. Naziazeno contemporiza e tenta se convencer de que leite não é importante, de que não é necessário, mas ele sabe que não é assim que a banda toca. Ele precisa dar um jeito. A situação de Naziazeno em 1935 se repete, hoje, com milhões de brasileiros que foram beneficiados com o programa de auxílio emergencial criado pelo governo federal para ajudar as famílias mais vulneráveis durante a pandemia do novo coronavírus, que chegou ao Brasil em março.

De abril a dezembro, foram repassados cerca de R$ 322 bilhões em parcelas iniciais de R$ 600 e pagamentos “extras” de R$300. Estima-se que 70 milhões de pessoas receberam pelo menos um pagamento..

“Era um dinheirinho que dava para fazer algumas coisinhas, né? Não muito, mas ajudava.” A diarista Denise Basílio da Costa, de 30 anos, foi aprovada para receber o auxílio emergencial no início da pandemia. O valor mensal era destinado principalmente à compra de itens de alimentação para os filhos Vitória, de 10 anos, Vitor, 6 anos, e Lucas, de 4. Ela o marido, Cristiano, de 24 anos, ainda contaram com eventuais doações de cestas básicas ao longo dos últimos meses. “Meu marido faz bicos, como limpeza de pátios. A gente vai se virando, mas não sei como vai ser agora”, lamenta. Ela reconhece que não sabe como ficará o sustento da família com o fim do auxílio emergencial. “Esse dinheiro vai fazer falta, vai mesmo”.

Inúmeros fatores contribuem para a incerteza e ansiedade sobre o desempenho da economia, e o impacto na vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. O fim do auxílio ocorre em um momento em que o desemprego atinge mais de 14 milhões de brasileiros, um índice de 14,3%, provocado, principalmente, pela gradual busca por vagas no mercado por trabalhadores que não estavam procurando. O desempenho da criação de vagas, no entanto, ainda depende da confiança do empresário, algo que não está acontecendo, em meio a indefinições sobre vacina e políticas fiscais. O Índice de Confiança do Empresário do Comércio fechou o ano de 2020 na menor pontuação desde 2017 (102 pontos).

Sem auxílio e com retomada mais lenta do que o necessário, o brasileiro ainda lida com inflação em alta em setores prioritários. No caso dos alimentos, a alta é de 17,46% – a maior desde outubro de 2003, em parte pela favorabilidade para exportações e, em outra, pelo aumento do consumo. E os mais pobres sofrem mais. Estudo do Banco Central (BC) divulgado em dezembro (17) mostrou justamente o impacto do auxílio emergencial na inflação dos mais pobres. A pesquisa mostrou que o benefício concedido pelo governo em razão da pandemia da Covid-19 elevou os preços da cesta de alimentos de quem ganha entre um e três salários mínimos.

O economista Ely José Mattos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que o auxílio causou um impacto considerável do ponto de vista do consumo.  “Por exemplo, se a gente olhar carne de primeira e carne de segunda. Quando a gente pensa no movimento inflacionário da carne, por exemplo, esse dois tipos de carne tendem a caminhar mais ou menos juntos. Agora não aconteceu isso. A carne de segunda teve uma elevação relativamente mais acentuada que a carne de primeira. Ou seja, a gente teve uma pressão que é oriunda, sim, do aumento do consumo das famílias em função da renda. Cabe lembrar que os R$600 mensais, para muitas famílias, foi uma renda maior do que elas costumava receber regularmente antes da pandemia. São famílias que tem poder de poupança muito baixo, elas gastam esse dinheiro, afinal de contas, são famílias mais pobres e precisam usar esse dinheiro. Só que com a chegada desagrada extra, isso levou a uma pressão inflacionária.”

Além do reflexo no preço dos alimentos, o índice usado para reajustar aluguéis já passa de 23% ao ano. Para piorar, a inflação para classe de renda muito baixa – a mesma que não terá mais acesso ao benefício do governo – é quase três vezes a de renda alta, segundo dados do Ipea divulgados em novembro. Uma equação de difícil solução, sobretudo em meio a aumento do número de mortes e endividamento em alta.

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O IMPACTO DA PANDEMIA
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Pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do C6 Bank mostrou o quanto os brasileiros foram afetados pela pandemia sob o ponto de vista financeiro. O estudo mostra, ainda, que os brasileiros foram afetados de maneira desigual –  segundo os dados da pesquisa, as classes C, D, e E foram as mais atingidas.

Para a maioria dos brasileiros, mais especificamente para 67% dos entrevistados, a questão financeira foi motivo de estresse e ansiedade desde o início da pandemia. A maior parte dos brasileiros com mais de 16 anos precisou cortar gastos pessoais e com a família e 58% afirmam que a renda familiar diminuiu. Quase a metade da população precisou adiar despesas. E entre os integrantes das classes C, D e E, os impactos financeiros foram mais comuns do que nas classes AB.

A suspensão dos contratos de trabalho atingiu 20% da população, impactando tanto assalariados como profissionais autônomos e free-lancers. Foi o caso do Tiago Rosa, de 34 anos, que é autônomo e não conseguiu manter o ritmo do trabalho. “Eu e minha esposa, Julia, conseguimos o auxílio. O valor até foi suficiente para pagar as contas e a alimentação nossa e do Caio (11) e da Elisa (5)”, pondera. Antes da pandemia, ele tinha o próprio negócio, uma empresa de transporte de bandas para shows e eventos. “Levava músicos para shows em Porto Alegre, região metropolitana e às vezes até para outros Estados. Com a pandemia, meu negócio parou. Até consegui fazer alguns trabalhos em lives, mas não tem como comparar com os ganhos que eu tinha antes”, comenta. O projeto para 2021 é voltar a ser motorista de aplicativo, uma ocupação que havia abandonado principalmente pelo medo de assaltos e por ter investido em sua empresa. “Mas é o jeito agora,” resume.

Em situação similar à do Tiago, a pesquisa do C6Bank e Datafolha indica que cerca de um terço da população economicamente ativa e assalariada afirma que teve redução de salário durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, o que representa 9% da população brasileira com 16 anos ou mais. Além disso, 43% dos entrevistados desempregados informaram que perderam o emprego durante a pandemia do Coronavírus.

Os números mostram a relevância do auxílio emergencial para a população mais vulnerável. Ainda, de acordo o economista Ely José Mattos, mostram a importância do benefício para o desempenho da economia brasileira em 2020. “O Banco Central projeta uma queda de PIB entre 4,5 e 5% pra 2020. Lá em junho nós apostávamos em quedas de 7%, porque o cenário era muito preocupante. O auxilio emergencial robusto, sem dúvida, ajudou a manter a dinâmica do varejo, do consumo básico. A gente teve, de fato, um componente de dinamismo econômico muito significativo. E foi fundamental pra manter as pessoas distantes de situações de muita necessidade e muita vulnerabilidade nesse período incerto e de tanto deslocamento das atividades econômicas. Tanto do ponto de vista do emprego quanto do ponto de vista de dinâmica. Então o auxilio emergencial foi fundamental.”

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DESIGUALDADE
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O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) divulgou um estudo chamado “Covid, Classes Econômicas e o Caminho do Meio: Crônica da Crise até Agosto de 2020”, que mostra que, em meio à pandemia de covid-19, o auxílio emergencial contribuiu para a queda temporária da pobreza no país. Segundo a FGV, a pobreza é caracterizada pela renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo (R$522,50). A comparação feita com os dados fechados de 2019 aponta que 15 milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza até agosto, uma queda de 23,7%. Mesmo havendo 50 milhões de pobres após a queda, foi o nível mais baixo de toda a série estatística. Com isso, de acordo com reportagem da jornalista Cássia Almeida publicada no jornal O Globo a partir de cálculo inédito do sociólogo Rogério Barbosa, a desigualdade brasileira chegou no menor nível histórico.

A questão é que a desigualdade no Brasil vinha aumentando desde 2016, e o fim do auxílio emergencial pode levar a desigualdade de volta ao patamar da década de 1980. Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, o índice de pobreza – neste caso caracterizada por uma renda de até um terço do salário mínimo (R$348) – caiu de 18,7% em 2019 para 11% em 2020. Mas sem o benefício do governo, de acordo com o sociólogo Rogério Barbosa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esse indicador pode chegar a 24%. Isso coloca quase um quarto de toda a população brasileira em situação de pobreza.

Apesar de se ventilar a ideia de um reforço do Bolsa Família, o economista Ely José Matos não enxerga a possibilidade de o governo federal financiar um novo auxílio.

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“Não consigo enxergar uma repetição do que aconteceu esse ano, nós não temos caixa pra isso. Mas se não tiver nada, a gente vai ver a volta de um percentual significativo da população de baixa renda para patamares abaixo da linha de pobreza, o que é terrível.”
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E essa discussão, segundo ele, maquia a realidade. “Porque quando a gente discute pobreza no brasil, a gente fala em pobreza crônica, não pobreza transiente, que é quando se entra na momento de crise e depois sai. Aqui está acontecendo o inverso. A gente tem uma situação de pobreza crônica, o auxílio emergencial resgatou, e assim que acabar, as pessoas voltam”, explica.

A perspectiva traçada pelo economista mostra um cenário dramático para 2021. Ainda mais dramático. Com uma taxa de desemprego alta, uma recuperação incerta. “Para se ter uma ideia, o (ministro da economia) Paulo Guedes declarou que aconselharia não dar o 13º do Bolsa Família pela questão fiscal. A gente vai precisar de algo mais criativo”, diz o professor Ely Mattos.

Mas se não se pode contar com o auxílio, se não se pode contar com o governo, o brasileiro vai precisar se virar. Não que seja novidade, a criatividade no povo do Brasil é famosa. Mas nao tem nada de bonito ou romântico nisso. É cruel. Porque mais do que nunca o brasileiro vê a necessidade de tirar leite de pedra, como Naziazeno. A educação financeira é um caminho – talvez o único caminho – além da solidariedade.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA
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É preciso cuidado para falar sobre educação financeira diante do fim do auxílio emergencial. Porque para quem está abaixo da linha da pobreza, parece uma brincadeira de mau gosto discutir prioridades, orçamento familiar ou planilhas de gastos. Tanto é assim que o presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, alerta para o fato de que a teoria pode não ajudar, por exemplo, quem passa fome. “A teoria é muito bonita, diz que para aumentar a renda tem que aumentar as horas de trabalho e se qualificar. E do lado da despesa, trabalhar o orçamento. Mas para esse público, essas teorias tem valor próximo de zero. Porque eles tem extrema dificuldade de melhorar qualificação, e mesmo que conseguissem, demoraria um tempo razoável e, é claro, custaria mais dinheiro. E fazer orçamento para se gastar R$300 por mês? Tudo é prioridade.”

A questão é quando a gente pensa em educação financeira, logo imagina pessoas com muito dinheiro e investimentos. Mas a educadora financeira Cíntia Senna, ensina que ela pode ser aplicada também em famílias mais vulneráveis e de baixa renda. “Todos precisamos desse conhecimento, independente de quanto a gente ganha, escolaridade ou qualquer questão externa.”

Segundo Cíntia, diante do fim do auxílio emergencial e a falta de perspectiva de um novo benefício ou mesmo uma melhora na economia, a primeira coisa a se fazer é olhar ao redor, para a própria comunidade, vizinhos e amigos. “A gente tem que começar a observar o que é possível ser feito diante da realidade de cada um. E se perguntar, como está a minha comunidade, meu bairro, o que se pode fazer em conjunto. Pode ser importante olhar pra dentro da comunidade e observar quais as necessidades e ver o que cada um pode contribuir.  E em troca disso receber um recurso financeiro ou até encontrar novas possibilidades.”

O músico e cozinheiro Felipe Santos de Souza, de 44 anos, reativou o trabalho com gastronomia para conseguir pagar as contas depois de o setor de entretenimento começar a sofrer os impactos da pandemia, especialmente com o cancelamento de shows. Apesar de ter sido aprovado para receber o auxílio emergencial, o valor não foi suficiente para manter as contas da família em dia. “Resolvi vender comida congelada como uma forma de complementar a renda para além do auxílio”, conta. Mais recentemente, começou a trabalhar pintando apartamentos. E é com essa ocupação que pretende se sustentar no ano que vem. “Também pretendo enxugar mais ainda os gastos. Mas, certamente, é um dinheiro que fará falta, já que os shows, que eram minha principal fonte de renda, não têm data para serem retomados no Rio Grande do Sul.”

Mas nem todo mundo consegue encontrar novas possibilidades e pagar as despesas básicas se torna motivo de uma angústia profunda. Naziazeno não conseguia comprar leite. A Denise, que aparece no início da reportagem, agora não sabe se vai conseguir comprar comida.

Cíntia explica que o supermercado é responsável por 60% das despesas das famílias brasileiras. Ou seja, em média, 60% da renda, independente de qual seja, é utilizada para a compra de alimentos que, como mostra o início da reportagem, é fortemente impactada pela inflação. Mas mesmo assim, mesmo nessas condições, a educação financeira pode ajudar. “Além de olhar marcas e pesquisar preços, a gente precisa sempre olhar o que tem dentro de casa e ir até o supermercado com uma lista pronta e ciente da quantidade se precisa. Também é importante estabelecer um limite de gastos e observar o que eu preciso para a semana, e não para o mês. Porque pode haver diferença de preços em determinados produtos que, ao final de 30 dias, podem impactar consideravelmente o orçamento da casa”, explica. Mas essas são medidas convencionais, que se aplicam a famílias que tem o orçamento apertado mas que, apesar da dificuldade, tem condições de se organizar sem passar necessidade ou fome.

Para famílias mais vulneráveis, Cíntia sugere medidas menos ortodoxas e que, de novo, envolvem a comunidade. “Todas as famílias precisam de comida e precisam fazer as compras. Então, procure fazer algo em conjunto. Organize com os vizinhos um dia para as compras. Os produtos podem ser comprados em conjunto e, assim, é possível negociar com o supermercado para se fazer uma compra única e ter acesso a algum desconto pela quantidade que está sendo comprada. Assim,  é possível dividir e ter um custo bem menor. Isso pode ser feito em atacadões, que tem preços mais em conta. São estratégias que podem ser utilizadas para reduzir o valor da compra.” Segundo Roque Pellizzaro, presidente do SPC, a força das comunidades é muito importante nesse momento. “Esse lado cooperativo é muito nosso, muito do Brasil.”

Em momentos de crise como esse, muitas pessoas recorrem a empréstimos consignados com longos prazos de pagamento. No momento, até pode parecer uma boa ideia, mas o que pode resolver os problemas no curto prazo pode se tornar um problema maior no médio e longo prazo. Por isso, outra lição importante da educação financeira é fugir do crédito fácil. “Nós tínhamos muitas pessoas desbancarizadas no Brasil, fora do sistema financeiro. Por causa do auxilio emergencial, a gente enxergou essas pessoas. Mas nem todas são informadas e isso faz com que a oferta de crédito seja atrativa para esse público. E o aumento no nível de endividamento tem a ver com isso.”

O presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, explica que é importante ter muito  cuidado com qualquer promessa de facilidade exagerada. “Eu sempre me preocupei com essa questão do empréstimo consignado. Em tese, é uma coisa muito boa, porque como ele reduz o risco, ele teria que reduzir o juro. E o consignado nasceu com a ideia de melhorar esse viés do risco e oferecer juros mais atrativos, mas isso foi desvirtuado com o tempo. Tudo em excesso é muito perigoso e essas ofertas de crédito com juro muito alto são muito perigosas.”

Roque explica que o mais importante, em momentos de vulnerabilidade como esse do fim do auxílio emergencial, é não pegar um empréstimo com o único fim de pagar uma dívida antiga. “O empréstimo só vai ser bom se você for gerar uma nova riqueza com ele e, com essa nova riqueza, pagar o empréstimo e ainda sobrar um dinheirinho”, explica.

O recomendável, então, com relação a dívidas antigas,  é renegociar com o credor. “Você vai vai conseguir uma taxa de juro muito mais barata do que tomando um empréstimo. Então, se você tem uma dívida, vá até o credor e diga: “eu não vou poder pagar. Vamos renegociar, eu vou precisar de seis meses, um ano.” O credor vai fazer, porque ele já está sem receber.”

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“Não tenha vergonha de procurar um credor. É melhor para você e paro o seu crédito uma renegociação do que ficar um tempo sem pagar e pagar tudo à vista com dinheiro emprestado.”
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Além de dívidas antigas, porém, há as contas que se acumulam todos os meses. Nesse caso, Pellizzaro sugere estabelecer prioridades. “O que eu preciso consumir todos os dias? Energia, água e alimentos. Ninguém vive sem isso. Essas são as prioridades. Então é importante manter as contas em dia ara não ter corte de luz e água e renegociar outras dívidas eventuais como compras antigas e parceladas. Não se pode pagar conta velha com dinheiro que você tem só pra comida.”


A educação financeira é algo que o brasileiro sempre exerceu muito pouco, de acordo com Roque Pellizzaro.  E ela, sozinha, não resolve a profunda desigualdade à qual o Brasil é submetido desde sempre. Tampouco é capaz de mover famílias que estão abaixo da linha da pobreza para uma situação mais confortável. Mas ela pode auxiliar famílias vulneráveis em momentos de crises mais agudos como o que se avizinha em 2021. Cíntia Senna lembra que, a partir deste ano, a educação financeira deve fazer parte do currículo de todas as escolas. Mas até que exista uma cultura de planejamento nas famílias brasileiras, há recursos que podem ser utilizados.

O primeiro passo, para qualquer família, segundo Pellizzaro, é organizar um orçamento familiar. Por menor que seja a renda. Porque isso facilita mover os recursos conforme a necessidade. “Vamos supor que a pessoa reserve R$20 por mês para gastar com remédios. Mas ela ficou doente e precisou gastar R$50. De onde ela vai tirar os outros R$30? Se isso não estiver no papel, fica muito difícil reorganizar o orçamento em situações de crise ou emergência. Eu sei que fica muito difícil para pessoas com baixa escolaridade, mas hoje há aplicativos e outras ferramentas que podem auxiliar.

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CANAIS DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA NO YOUTUBE
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Nath Finanças .  A Nath Finanças se dedica à educação financeira para pessoas pobres e de baixa renda. A proposta do canal é falar sobre o tema de maneira fácil e prática, justamente para quem nunca estudou ou não tem familiaridade com o assunto.

Me poupe – A Nathalia Arcuri explica de forma didática as questões complexas do sistema financeiro e dá dicas para quem, por exemplo, está endividado.

Instituições financeiras – Algumas instituições financeiras, como o C6 e o Itaú, tem canais no Youtube que auxiliam as pessoas que, por exemplo, precisam cortar despesas. E o melhor é que não precisa ser correntista para acessar o conteúdo.

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APLICATIVOS
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Minhas Economias . O aplicativo permite que o usuário organize entradas e saídas por meio de categorias. Assim, é possível controlar receitas e despesas em grupos e controlar o impacto sobre a renda mensal. O aplicativo Minhas Economias pode ser baixado gratuitamente tanto no Google Play quanto na App Store.

Guia Bolso .  É um dos aplicativos de controle financeiro mais utilizados no país. O grande diferencial é a sincronização com a conta bancária do usuário. Ou seja, ele coordena o planejamento de gastos com a movimentação financeira, com as entradas e as saídas de recursos. O GuiaBolso pode ser baixado de graça no Google Play e na App Store.

Organize . É ideal para quem quer monitorar o quanto ganha e o quanto gasta. A ferramenta dispõe de um painel com as principais despesas do usuário e o quanto elas representam no orçamento total. O aplicativo Google Play e na App Store. O serviço também tem versão web.

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PLANILHAS
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Pra quem tem dificuldade com aplicativos, o ideal é apostar em uma planilha, que pode ser feita até em uma folha de caderno. Abaixo estão alguns modelos que facilitam o começo do trabalho.

Nath Finanças . A Nath finanças preparou uma planilha que pode ser acessada aqui e é perfeita para quem está começando a fazer o orçamento da casa.

Google Planilhas . Essa opção é menos intuitiva, mas é bastante eficiente. É similar ao Exel, mas é gratuito e dispoe de modelos prontos para organização financeira.


Segundo Pellizzaro, esse é um momento de transição bastante difícil. “Nós vimos essa dificuldade  já com a redução do auxilio de R$600 para R$300, nos primeiros dois meses houve um impacto especialmente no comércio, no comércio mais popular. A gente deve ter agora, no início de 2021, algo similar. Sé que com impacto ainda maior”, lamenta.  Apesar de 2021 trazer uma expectativa melhor em função da possibilidade de vacina – possibilidade, porque, ao contrário de outros países, até agora, não há um plano concreto de vacinação no Brasil –  não há nenhuma perspectiva de, já no primeiro trimestre, nós teremos uma vida social normal.

Por isso, enquanto ações de educação financeira ainda caminham, a solidariedade segue sendo uma força poderosa em tempos de crise. Não para reduzir desigualdades, mas para ajudar quem precisa. Para matar a fome.

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Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #37 A vida sem auxílio