Reportagens Especiais

A Filha Perdida

Colaborador Vós
18 de janeiro de 2022

Por Tatiane de Sousa*

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O filme A Filha Perdida, adaptação de Maggie Gyllenhaal do romance homônimo de Elena Ferrante e disponível na Netflix desde o final do dezembro, aborda de modo nada sutil a intensidade da relação entre mães e filhas, uma pedida a reflexão sobre essa ligação tão arrebatadora, transformadora e indelével. A proposta não serve apenas para quem passa pela maternidade como para todas as mulheres como filhas. 

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Na trama, a protagonista Leda relembra as emoções vividas com as filhas quando ainda eram pequenas a partir da observação de uma jovem às voltas com sua pequena durante o veraneio. As cenas observadas mostram uma mãe sufocada pela necessidade de atenção permanente da criança. Diante dos cuidados, a personagem acaba por anular seus desejos enquanto espera por dias mais tranquilos. Apesar do amor que sente pela criança, parece que não há espaço para o desempenho do papel materno com satisfação. Os flashbacks de Leda mostram igualmente uma mãe oprimida e dividida entre as possibilidades profissionais e os desejos como mulher, e as obrigações maternas.

A personagem principal da trama está em férias, sozinha e conversa eventualmente com as filhas de 23 e 25 anos pelo telefone. Apesar de os diálogos aparentarem uma relação normal, de cumplicidade e preocupação mútua, Leda se prende à culpa de não ter sido mais presente na infância das meninas. O título “A Filha Perdida”, aponta mais na direção do rompimento que se dá na relação da mãe com as filhas do que na perda física da coadjuvante com a criança que acontece durante determinado ponto da trama.

Para entender um pouco mais sobre essa relação, vale lembrar o livro A Relação Mãe e Filha, (Ed. Campus), da psicanalista Malvine Zalcberg. A autora aponta que, mesmo quando há a intervenção paterna constituída no Complexo de Édipo, as dificuldades da filha de separar-se da mãe existem. Principalmente quando a mãe confunde os cuidados com o dom do seu amor e oferece à filha algo sufocante, alimentando-a em demasia, impedindo que a filha chegue a formular uma demanda em função de alguma falta ressentida. Sem falta, não há como fazer emergir um desejo próprio. O livro interpreta estas dificuldades que expressam uma ligação profunda entre mãe e filha e têm como efeito o ressentimento e a ambivalência da filha em relação à figura materna, conjuntura emocional já constatada e balizada por Lacan com o neologismo “hainamoration”, isto é, haine (ódio) énamoration (enamoramento) para demonstrar o que se passa em uma menina que ama e odeia sua mãe: um processo catastrófico e devastador.

No filme o sofrimento mostrado está todo na mãe responsável pelo rompimento. Mas o telefonema no final a uma das filhas mostra que, afinal, apesar das culpas, tudo ficou bem. A culpa materna não se justifica com filhas felizes e capazes de construir suas vidas.

Em dado momento da trama, Leda, que se dedica à carreira e impõe-se a separação das filhas, diz ao marido ser uma ameaça falar que deixará as crianças com sua progenitora caso ela não volte. Para o pediatra e psicanalista Donald Woods Winnicott, “para toda mulher, há sempre três mulheres: ela mesma, sua mãe e a mãe de sua mãe” (WINNICOTT apud ZALCBERG, p. 6). É nas dificuldades dessa relação – da “catástrofe” e da “devastação à mascarada” – que cada menina construirá o seu caminho como mulher, em um processo de invenção e criação da feminilidade. De qualquer modo, a construção de uma mãe satisfeita é fundamental para a construção de uma filha capaz de criar sua individualidade e feminilidade. O rompimento no entanto, não precisa ser dramático como em um filme para apresentar um final esperançoso ou feliz, digno de um romance.

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Parafraseando a própria personagem , “não são apenas as coisas inefáveis a que me refiro, mas as inesperadas.”

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*Jornalista, pós graduada em comunicação e marketing pela Unisinos. Profissional inquieta sempre aberta a novos desafios na reportagem, produção e assessoria de comunicação. Atualmente, consultora de comunicação no Tesouro do Estado. Na vida, mãe de adolescentes full time. Para descontrair, brinco de escrever e cozinhar.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #46 Parasita

Geórgia Santos
10 de fevereiro de 2020

No episódio de hoje, o assunto é Parasita. Sim, o filme vencedor do Oscar é pauta do nosso podcast de política, mas somente porque o ministro Paulo Guedes resolveu introduzir o termo na política nacional. Durante palestra na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, ele defendeu a necessidade de uma reforma administrativa para resolver a situação de estados que gastam mais do que arrecadam.

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Mas, ao criticar os reajustes automáticos de salários de funcionários públicos, ele errou a mão e comparou esses servidores a parasitas
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Depois de gerar uma repercussão negativa, o ministro da economia do governo de Jair Bolsonaro lamentou ter tido a fala tirada do contexto. Segundo nota divulgada na sexta-feira, dia 7, ele se referiu a situações específicas de estados e municípios que tem despesas comprometidas.

Mas mesmo que Guedes queira esquecer do episódio, isso não vai acontecer tão cedo. Porque na noite de ontem, o grande vencedor do Oscar de 2020 foi o filme… Parasita. A obra do sul-coreano Bong Joon-Ho propõe uma trama entre duas classes antagônicas e irreconciliáveis, como diz o nosso colunista de cinema, Pedro Henrique Gomes.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

Do seu gênero

Oscar 2019 . “todos homens”

Évelin Argenta
23 de janeiro de 2019

Que a desigualdade de gênero está presente na política, na economia e no mercado de trabalho, você já está cansada de saber. Mas já parou para pensar como ela se manifesta nas artes? Na mais popular delas, o cinema, as mulheres ainda estão longe de conquistar um espaço igualitário em cargos de direção, por exemplo. No Oscar 2019, que teve os seus indicados revelados para todo o mundo nesta terça-feira (22), NENHUMA mulher foi indicada à estatueta de melhor direção.

E o roteiro não é novo. Nos 91 anos de existência da premiação, apenas CINCO mulheres foram indicadas ao prêmio. Apenas UMA ganhou. Quer mais? Das cinco diretoras indicadas, nenhuma é negra ou latino-americana. Só queria deixar registrado aqui que o nosso amigo word sublinhou a palavra DIRETORAS por considerar pouco usual.

Em 2018, na entrega do Globo de Ouro, ainda na esteira das manifestações do movimento #MeToo, a fala da atriz Natalie Portman ao anunciar os indicados a melhor diretor deixou bastante claro o que acontece na indústria do cinema. Natalie frisou que os indicados eram “todos homens”. A frase causou desconforto na plateia e acendeu a esperança de que ta   vez o reconhecimento ao trabalho das mulheres pudesse ter vez no Oscar daquele ano ou, quem sabe, no ano seguinte (mais conhecido como agora).

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Pois não foi o que aconteceu
Em 2019, assim como em 2009 (#10yearchallenge) temos novamente um total de ZERO diretoras indicadas

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O cenário é bastante cinzento para as mulheres na indústria cinematográfica. É o que mostra um estudo da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. A pesquisa analisou uma base de dados de 1.100 filmes populares produzidos de 2007 a 2017. Dos 1.223 diretores envolvidos nesses projetos, apenas 4% são mulheres. São 43 diretoras em mais de MIL produções.

Nesse período, a maior porcentagem de diretoras mulheres foi registrada em 2008 (8%) e a menor em 2013 e 2014 (1,9%). A pesquisa descobriu que a situação é ainda mais grave em relação à continuidade de oportunidades para as diretoras. A maioria delas trabalha em apenas um filme: 84%. Entre os homens, esse número é muito menor: 55%.

Um das autoras da pesquisa, Katherine Pieper, escreveu: “Se você está tentando ter uma família ou trilhar um caminho em Hollywood, ter uma oportunidade a cada década não vai adiantar”. Katherine foi uma das cinco autoras da pesquisa Desigualdade em 1100 filmes populares: Examinando Retratos de Gênero, Raça / Etnia, LGBT e Deficiência de 2007 a 2017, publicada em julho do ano passado. O trabalho completo você pode acessar aí em cima, mas destacamos alguns pontos:

  • Nos 100 maiores filmes de 2017, há 4.554 personagens com fala. Só 31% eram mulheres. A proporção na tela é: 2,15 homens para cada mulher;
  • Apenas 4, dos 100 filmes mais populares de 2017, foram dirigidos por uma mulher não-branca;
  • Apenas cinco dos 100 filmes mais populares de 2017 tinham mulheres com 45 anos ou mais entre os protagonistas. Quando falamos de homens, esse número salta para 30;
  • Somente UM dos 100 filmes mais populares de 2017 tinha uma mulher negra com mais de 45 anos ocupando um papel de protagonista;
  • Nos filmes de ação/aventura menos de um quarto (24,5%) de todos os papéis com fala foram preenchidos por mulheres;
    Apenas 30,7% de todos os personagens de filmes de animação foram compostos por mulheres/meninas em 2017;
  • Comédia foi o gênero mais amigável para as mulheres em 2017. Naquele ano, 42,9% de todos os papéis foram preenchidos por alguém do gênero feminino;

Esses números se refletem em toda a indústria do cinema, de acordo com pesquisa feita pelo Centro de Estudos sobre a “Mulher na Televisão e no Cinema”, da Universidade de San Diego, também nos Estados Unidos. Em 2016, as mulheres representaram apenas 17% de todos os diretores, roteiristas, produtores, editores e cineastas nos 250 filmes americanos de maior sucesso.

O artigo, chamado “Novo estudo revela menos mulheres trabalhando nos bastidores de Hollywood” foi publicado em janeiro de 2017 e pode ser acessado na íntegra aí em cima. Aliás, o Centro de Estudos sobre Mulher na Televisão e no Cinema de San Diego tem estatísticas bem legais e recentes sobre a presença feminina na mídia. Fica a dica!

Para não falarmos somente de números e de estatísticas negativas, trago pra vocês um pouco mais da história das únicas mulheres que foram indicadas ao Oscar de melhor direção em NOVENTA E UM ANOS de premiação. E você querida leitora/leitor poderia justificar toda essa minha trabalheira e ver hoje um filme dirigido por uma mulher. Que tal?

Lina Wertmüller, por Pasqualino Sete Belezas (1975)
Quarenta e oito edições do Oscar se passaram até que a primeira mulher fosse indicada ao prêmio de direção, em 1977. Coube à diretora italiana Lina Wertmüller entrar para a história da premiação com seu Pasqualino Sete Belezas, que mistura drama e humor para contar a história de um desertor italiano que é capturado por soldados alemães durante a Segunda Guerra (1939-1945). O vencedor daquele ano foi John G. Avildsen, por Rocky: Um Lutador. Lina nunca mais foi indicada. E olha que ela dirigiu outros cinco filmes depois desse.

Jane Campion, por O Piano (1993)
Mais 17 anos se passaram até que outra mulher Mesmo depois de Wertmüller quebrar o tabu, ainda se passaram 17 anos até que uma segunda mulher fosse indicada ao Oscar de direção. No caso, a neozelandesa Jane Campion, que disputou em 1994 com O Piano, a história de uma mulher muda que nos anos 1850 é enviada à Nova Zelândia para um casamento arranjado. Campion não ganhou o troféu de direção, que ficou para Steven Spielberg, por A Lista de Schindler. Jane Campion dirigiu outros cinco filmes depois, mas nunca mais foi indicada à premiação.

Sofia Coppola, por Encontros e Desencontros (2003)
Dez anos depois de Campion, em 2004, a americana Sofia Coppola tornou-se a terceira mulher a concorrer ao Oscar de direção. Ela foi indicada por seu segundo longa-metragem, Encontros e Desencontros, estrelado por Bill Murray e Scarlett Johansson. No filme, dois americanos solitários e entediados – um homem de meia-idade e uma jovem mulher – veem seus caminhos se cruzarem durante uma viagem a Tóquio. Coppola não ganhou o Oscar de direção, que ficou para Peter Jackson, por O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei.

Kathryn Bigelow, por Guerra ao Terror (2008)
Foi apenas em 2010, na 82ª edição do Oscar, que o prêmio de direção finalmente foi entregue a uma mulher.Kathryn Bigelow fez história com Guerra ao Terror, que tornou-se O PRIMEIRO E ÚNICO longa-metragem dirigido por mulher a ganhar a estatueta de melhor filme. Guerra ao Terror acompanha três soldados americanos que têm a missão de desarmar bombas durante a Guerra do Iraque. Na categoria de direção, Bigelow, que é americana e tem 66 anos, concorreu com James Cameron, por Avatar; Lee Daniels, por Preciosa; Jason Reitman, por Amor Sem Escalas; e Quentin Tarantino, por Bastardos Inglórios.

Greta Gerwig, por Lady Bird: A Hora de Voar (2017)
Não demorou muito para ficar claro que a igualdade de gênero no cinema ainda está longe de ser alcançada. Depois da festa de Kathryn Bigelow, uma nova mulher só foi indicada ao Oscar oito anos depois. A americana Greta Gerwig concorreu com Lady Bird: A Hora de Voar. O filme narra um ano na vida de uma adolescente que, como a própria diretora, cresceu em Sacramento, na Califórnia. O troféu ficou com Guillermo del Toro (A Forma da Água), que ganhou o troféu.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Imagens do Estado Novo 1937-45

Pedro Henrique Gomes
28 de abril de 2018

Imagens do Estado Novo 1937-1945 entra deliberadamente num vespeiro ao vasculhar materiais históricos, tais como imagens, canções populares, discursos radiofônicos, matérias em jornais, livros, filmes e, em essência, o diário mantido pelo próprio presidente Getúlio Vargas no intuito de oferecer sua narração sobre tudo isso.

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As imagens são mesmo abundantes e preenchem todo o filme.  E o off, narrado pelo próprio diretor Eduardo Escorel, acompanha, dando-lhes contexto e, claro, uma leitura particular (a do narrador) responsável por organizar, sistematicamente, todo o período do Estado Novo nas quatro horas de duração do filme.

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Getúlio Vargas, claro, é o personagem central, por onde se embaralham e percorrem todas as intrigas palacianas, tramas políticas, influências familiares, ameaças comunistas, comícios populares, oposições oligárquicas e toda sorte de relações que o seu governo produzia com o estrangeiro.

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Escorel começa, em fato, antes do Estado Novo (1937-45). Começa quando o movimento de 1930 (aka Revolução de 30) depôs Washington Luís da Presidência, dando fim a Primeira República. Ainda que breve, a narrativa inicia, nem que seja para fins contextuais, quando da chegada de Getúlio à presidência, em 1930, e vai terminar, após longos 34 anos, com o golpe de 1964 que depôs o então presidente João Goulart. A narração permite, no entanto, que a história se demonstre invariavelmente interconectada, comportando avanços e recuos no tempo da ação para indagar seja uma formação política, um gesto ou uma reviravolta na trama que conduz o filme. Os fatos não estão dados de antemão para o documentarista e pesquisador que é Escorel, ele irá percorrê-los, questioná-los, desconfiar das imagens que ele próprio mostra. Imagens do Estado Novo é resultado de uma pesquisa de muitos anos e que se traduz, como vemos, num panorama histórico ao qual podemos voltar várias e várias vezes, a depender das instâncias do nosso interesse.

De modo a não perder o movimento dos eventos, Escorel prefere o estilo clássico do documentário, como quem assume que a distinção de seus temas e não permite incorreções derivadas de leituras “emancipadas” da materialidade da história que narra. Apesar do eloquente racionalismo da narração, que busca se esquivar de subjetividades interpretativas, o filme propõe vários caminhos para nos aproximarmos do Brasil varguista e de todas as suas variadas formas e contradições. Seu objetivo, mais do que fazer memória com o processo histórico brasileiro que convulsionou a primeira metade século XX, consistiu precisamente em dar relevo a fragilização institucional do país, sua regular instabilidade política e seu baixo teor de participação democrática, tendo como nervo da ação o presidente Getúlio Vargas.

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Para contar essa história tendo Vargas como eixo é preciso ir longe sem sair do lugar

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As elites oligárquicas nacionais, saudosas do nacionalismo, estão aí desde a gênese do Brasil, maculadas nos sorrisos que desfilam nos banquetes palacianos, nas marchas autoritárias destituidoras e que provocam constantes abalos sísmicos na estrutura das instituições brasileiras. Ora, legitimidade para governar nunca foi permitida por muito tempo neste país que tanta vezes golpeou a si próprio e aos seus. Tomar o risco de buscar capturar as variações e dimensões da trama política nacional é, por si só, um desafio notável. Escorel acredita na força do documento. A natureza imponente da pesquisa contribui para que sua narrativa não disperse o interesse do espectador. A trama é complexa e recheada de contradições.

A simpatia de Vargas pelo nazi-fascismo é motivo de escrutínio por Escorel. A legislação trabalhista inaugurada pelo presidente e cujas fontes de inspiração são conhecidas ganham significativo destaque: tanto o malgrado populismo varguista quanto as suas reformas nos direitos sociais compõem diferentes faces de uma mesma moeda, basta vermos como a progressiva expansão dos direitos sociais não foi acompanhada pela expansão dos direitos políticos, antes pelo contrário. O nacionalismo econômico que sustentou o Estado Novo e rendeu ao governo o apoio dos integralistas liderados por Plínio Salgado – o anticomunismo os unia; da Alemanha hitlerista e de uma população majoritariamente católica, que decerto não podia ouvir falar em comunismo, Mao e União Soviética – foi possível através de uma bem difundida rede de censura da imprensa e das atividades políticas da oposição.

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O caráter autoritário do Estado Novo era evidente no modo paternalista com que tratava o povo (a ideia de povo, pelo menos).

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Filho do positivismo, não interessava ao governo do “pai dos pobres” ter o povo nas ruas senão como figurantes de seus desfiles e eventos propagandísticos. Ele queria a conciliação do patrão e do empregado. Mas como a política não comporta sentimentalismos, Vargas seria eleito pelo voto em 1950, mesmo após ter sido golpeado e apeado do poder pelos militares em 1945, quando se encerrava, tradicionalmente pela força, o Estado Novo.

Imagens do  Estado Novo conecta várias pontas dessa trama, deixa pontos de fuga e desafios reflexivos para o espectador realizar. Afora sua grandiosa empreitada intelectual, de estudo e pesquisa, há um caráter de exegese de certa sensação de democracia que o Brasil poucas vezes teve ou teve com baixa intensidade. A experiência de um golpe militar, tão recorrente na história brasileira, é ainda muito viva. Escorel faz jorrar a sangria para explorar, nos detalhes, as tensões do Estado Novo e o quanto ele ainda pode ser representativo para pensarmos os desdobramentos da política atual pela via da construção de discursos, tal como o seu próprio.

Pedro Henrique Gomes

15h17 – Trem para Paris

Pedro Henrique Gomes
30 de março de 2018

Uma sensação de estranhamento percorre o filme, contorna grande parte de suas cenas. 15h17 – Trem para Paris tem lá sua radicalidade, que não é, para evitar desentendimentos, uma radicalidade narrativa. Clint Eastwood entende a psique americana com precisão e coloca, tanto neste filme como em Sniper Americano, o militarismo, o valor das armas como símbolos de autonomia, liberdade e segurança contra ameaças externas, a constituição da fé e o cristianismo obstinado que se conecta a isso tudo de maneira natural e autoevidente.

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Ele está seguro de que, se há uma maneira de filmar histórias de vidas comuns que presenciam e atuam em grandes acontecimentos, é imperativo que se abrace seus personagens sem tantas certezas morais. Se ele as mantêm, o filme as coloca em conflito.

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O exemplo é, novamente (assim como em Sniper Americano), o papel do narrador na condução das possibilidades de leitura que o filme faz abrir. Os filmes de Clint, como a sociedade americana, só parecem simples. O espectador é convocado a partilhar o mundo e toda a sujeira que o sustenta a partir da convocação de estereótipos e clichês. É uma posição paradoxal e instigante esta que sua obra evidencia: Clint não faz um cinema político puro padrão, conciliador de boas intenções e de seguranças intelectuais. A vitória dos bons e a punição dos maus, lógica do faroeste de herança fordiana, comporta também alguma contradição (inclusive emocional), pois o justiçamento nem sempre determina moralmente seus filmes (ao contrário de John Ford), deixando que a consciência espectatorial elabora seus sentidos.

O republicanismo de Clint se costuma somar ao argumento na esperança de resolver a moral formal que circunda seu cinema: ele é um reacionário, até um fascista, disseram por ocasião de alguns de seus filmes, mais recentemente (de novo) sobre Sniper Americano. Se por um lado isso não parece ser algo relevante para o entendimento do filme ou para a discussão crítica, todavia chama atenção para algo que é, no ponto de vista que articulo aqui, a ambiguidade sedutora da obra recente Eastwood. É notável inclusive como o cineasta percebe que a construção do imaginário do herói, materializado na figura de Spencer Stone, é um processo que passa também por aqueles que criam imagens: a televisão e o cinema, claramente. Clint tem culpa no cartório e explicita isso, pois entre os cartazes de filmes que Stone guarda em seu quarto quando jovem há um de Cartas de Iwo Jima.

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Assim como Sniper Americano, Trem para Paris não é um filme preocupado em contextualizar “o outro lado da história”. Ao contrário, o terrorismo aparece apenas como ameaça e como ponte para a jornada de salvação da qual os três jovens americanos serão protagonistas.

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Ao filme interessa os procedimentos internos, a consagração moral de seus três personagens centrais. Por outro lado, desde a infância o aparato bélico-religioso se manifesta exigente na educação dos meninos, moldando suas personalidades, motivando-os a buscar em certos mitos de origem (o exército e Deus, nas armas e na fé cristã) o combustível para negarem certas regras comuns, seja na escola, seja em casa, seja na rua. O filme sublinha essa ambiguidade – até com certa redundância, com certo exagero visual e textual.

Ambiguidade que está carregada na própria fotografia. Pois é curioso como os elementos documentais se misturam ao jogo da ficção proposto por Clint, não apenas pelo uso de imagens de arquivo do então presidente francês François Hollande congratulando os três, mas pela própria materialidade de suas imagens encenadas. O fato dos três interpretarem eles mesmos, não sendo atores profissionais, contribui para a sensação de estranhamento geral que o filme transmite, pois é também a ideia de representação que o filme quer colocar em crise. 

Com o tempo, no contexto da filmografia de Clint Eastwood, Trem para Paris ficará condicionado ao reconhecimento de filme menor. Não sem razão, pois apesar de continuar a tradição da autocrítica recente que o cineasta vem fazendo sobre a representação do heroi clássico americano o filme já não tem a mesma força.

The 15:17 to Paris, de Clint Eastwood, EUA, 2017. Com Spencer Stone, Anthony Sadler, Alek Skarlatos, Jenna Fischer.

Tão série

As piadas de Seth Meyers mostram o que está errado com a indústria do entretenimento

Geórgia Santos
13 de janeiro de 2018

O anfitrião do Globo de Ouro foi extremamente feliz. Seth Meyers tinha a ingrata missão de apresentar a premiação em uma noite dedicada às mulheres – só o fato de ele ser homem já era um problema de sensibilidade. Mas o que poderia ter sido um desastre foi uma aula sobre o que está errado com a indústria do entretenimento.

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Ele foi engraçado, foi sensível e foi certeiro

A gente ri, mas por dentro dá vontade de chorar

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1. Boa noite senhoras e senhores restantes;

2. Feliz Ano Novo, Hollywood. É 2018, a maconha é finalmente permitida e o assédio sexual finalmente não;

3. Uma nova era se inicia, e eu posso dizer isso porque fazia anos que um homem branco não ficava nervoso em Hollywood;

4. Aos homens indicados nesta noite, essa é a primeira vez em três meses que não vai ser assustador ouvir seu nome lido em voz alta;

5. Muitas pessoas pensam que seria mais apropriado se uma mulher apresentasse esta premiação, e eles podem estar certos. Mas se serve de consolo, e eu sou um homem sem absolutamente nenhum poder em Hollywood. Eu sequer sou o Seth mais poderoso desta sala. Aliás, lembram quando ELE (Seth Rogen) era o cara que arrumava confusão com a Coreia do Norte? Tempos mais simples;

6. Associação da Imprensa Estrangeira. Um conjunto de três palavras que não poderia ter sido melhor desenhado para irritar nosso presidente. O único nome que poderia deixá-lo mais irritado é Associação Hillary México Salada;

7. A Forma da Água recebeu mais indicações que qualquer filme neste ano. Um filme incrivelmente lindo, mas eu preciso admitir que quando  eu ouvi falar de um filme em que uma jovem mulher se apaixona por um monstro nojento, eu pensei, “Ah, cara, não outro filme do Woody Allen”;

8. O Globo de Ouro faz 75 anos. Mas a atriz que interpreta sua esposa ainda tem 32;

9. De acordo com um artigo recente, apenas 5% dos papeis de Hollywood são interpretados por atores asiáticos. Mas esses números podem estar errados já que o cálculo foi feito por uma pessoa branca;

10. E agora para apresentar nosso primeiro prêmio… Por favor não sejam dois caras brancos, por favor não sejam dois caras brancos. Oh, graças a Deus. Gal Gadot e Dwayne Johnson, pessoal!

Ah, isso sem falar na maravilhosa letra de Natalie Portman que, adequadamente, anunciou os HOMENS indicados a melhor direção.

 

Foto: Paul Drinkwater/NBCUniversal via Getty Images

Pedro Henrique Gomes

Crítica – No Intenso Agora

Pedro Henrique Gomes
25 de novembro de 2017

Como experiência histórica que reúne vários momentos cruciais em torno do ano de 1968, No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles, traz para o centro de suas questões as próprias condições de produção das imagens registradas na época, no calor dos acontecimentos. Seguindo as informações narrativas que o filme transmite, as imagens evocam expressões de relações de classe, de esperança, de angústia, de desilusão, de reviravoltas no jogo político. O ponto de partida é a imagem. Imagem que virou arquivo. Um filme absolutamente pessoal. No caso, registros da elite brasileira (em que esteve presente Elisa, mãe do cineasta) em visita à China, em 1966, alimentaram nele o desejo do filme.

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Que imagens surgem nos diferentes contextos, questiona Salles, da China maoísta, da França do maio de 68, das greves operárias e das revoltas estudantis, da ditadura militar brasileira e da Tchecoslováquia quando da chegada dos tanques soviéticos que iriam interromper a Primavera de Praga?

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No Intenso Agora ajeita, levanta e corta: o resultado estético dessas imagens carrega, para além do espírito do tempo e da urgência material delas, a estrutura moral e política que permitiu a forma mais ou menos exata com que foram feitas. As imagens respondem a procedimentos dados pelas restrições locais. Segundo o diretor, o filme quer saber quem filma e como filma numa democracia, em uma ditadura ou em um país militarmente ocupado pelo estrangeiro.

A tensão entre o não saber o que se está filmando é a posição por vezes incontornável a quem quer que se aventure com uma câmera (das filmagens amadoras ao documentarista/cineasta que tem no ato de filmar a sua profissão de fé), daí a dificuldade de, muitas vezes, e mesmo que o filme seja também sobre isso, estabelecer conexões entre os registros expostos. Trabalhando com arquivo a partir de longa pesquisa, o filme costura estes acontecimentos para questionar os seus sentidos e significados, as suas expressões e seus gritos. Penso que há inclusive exageros de interpretação (por exemplo, na cena da babá com as crianças), mas eles também corroboram e insistem em escrever os seus sentidos, pois olhar imagens não é outra coisa senão provocar-lhes fissuras no ato mesmo de descrevê-las.

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O filme é seu próprio crítico

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É curioso que somos tentados, decerto exageradamente, a traçar paralelos, também eles, baseados em experiências locais. Junho de 2013, por exemplo, junto de seus desdobramentos, uma vez que a ideia do filme é anterior às manifestações. Este aspecto perfeitamente explícito que o filme possui, seu caráter de análise sistemática dado pelo narrador, permitem também o alargamento dessas relações contextuais. O maio de 68 francês, por seu turno, foi imaginativo e convocou certa potência, mas não conseguiu desestabilizar as superestruturas do poder, sendo inclusive domesticado por ele. O filme comenta isso ao mostrar a lida do governo francês, na figura de Charles de Gaulle, com as manifestações que tomavam Paris: o poder logo sufocou a revolta. João Moreira Salles percebe que falar sobre imagens num filme é também criar outras sobre elas, num processo de autorreflexão visual continuado – e, talvez por isso mesmo, extremamente arriscado e delicado. Seu filme corajosamente toma o risco.

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No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Brasil, 2017).

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Coração de Cachorro

Pedro Henrique Gomes
22 de setembro de 2017

Coração de Cachorro, filme da cineasta americana Laurie Anderson, começa pelo meio: é um ensaio, um floreio pelo pensamento da narradora. Lollabelle, sua cachorra, é a personagem central – ela morreu e o filme é dado em sua memória. A voz da cineasta, que acompanhamos atentos ao longo de todo o filme, parte desse indefinível momento que é a tentativa de descrição de um sonho.

A sua trama, alegórica e filosófica, possui também caráter evidente e autorreferido: é o que nos faz perseguir a leitura do texto, fixar a atenção nas imagens, buscar conexões, entender as sugestões que ela deixa.

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Seus personagens são seres vivos e ficções políticas, além de convenções sociais, objetos dessas convenções, ideias, conceitos, imaginação, sonho e fantasia

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Para ajustar a narratividade do filme, para que sua expressão “vingasse” como pensamento sobre as imagens e sobre o texto, Anderson adotou uma postura de aproximação e distanciamento simultâneos. Isso não neutraliza o impacto emocional do filme (se quiserem, o seu caráter poético) dado que seu texto cria, inventa, conta, recita, canta, sofre e alucina pois é um texto vivo que choca o espectador contra a sua angústia, num movimento de enfretamentamento literal. A cineasta reconhece a tensão entre, por um lado, a proximidade que o relato tem dela mesma e, por outro, o seu aspecto de sugestão, de ligação intersubjetiva.

Penso que o filme está inteligentemente possuído por algumas questões que vão além da narrativa pessoal diante de uma perda (“every love story is a ghost story”). Se há a pretensão de poetizar sobre dor, sofrimento e amor, há também uma ideia de pensamento estético que os envolve. Os elementos que o filme nos entrega pareciam me perguntar o tempo inteiro qual a relação possível que o espectador pode estabelecer com imagens assim. Quais os tipos de questões que o relato, ensaístico que é o deste Coração de Cachorro, pode colocar para qualquer pessoa que não seja a que as vivenciou (a narradora) e, no limite, produzir emoções. Só “afeto” e “discurso poético” não seriam suficientes. Não parecem ser estes, em si, os elementos de encantamento do filme. Sua força está em sua imaginação. O 11 de setembro, Kierkegaard, Wittgenstein, David Foster Wallace, o vigilantismo, eis suas referências.

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Em uma sociedade que controla (de modo notável, aliás, nos Estados Unidos), que vigia e que direciona culturalmente o pensamento e o imaginário ordenado, como reagir?

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Em tese, o 11 de setembro deu impulso a esse movimento vigilante (o intensificou, numa segunda onda de controle e paranoia; a primeira foi a detonada pela câmera de Abraham Zapruder quando esta filmou o assassinato de Kennedy e desencadeou a ficção paranoica que irrompeu no cinema americano a partir de então) numa sociedade que oferece, paradoxal que seja, liberdade e segurança como nenhum outro lugar no mundo. Essas imagens povoam o filme. Como o cérebro, que procede por livre associação, assim é a liberdade de Coração de Cachorro ao construir as suas ilações.

Heart of a dog, de Laurie Anderson, EUA, 2015. Com Laurie Anderson e Lollabelle.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O que está por vir

Pedro Henrique Gomes
10 de fevereiro de 2017
Divulgação

É sensível o grau de essencialidade que o cinema de Mia Hansen-Love vai assumindo. E não estamos pensando aqui na ideia de progressividade da obra, inclusive pois seu filme anterior, Éden (2014), é talvez o seu mais estridente – e por isso o seu pior. Pensamos na capacidade argumentativa de sua mise en scène. O que está por vir acerta, com um golpe mais certeiro do que o desferido em seus filmes anteriores, o desenlace de sua trama.

Enquanto seus outros filmes (Adeus, Primeiro Amor) parecem deixar os acontecimentos contarem a si mesmos de uma forma muito pouco orgânica, aqui se apresenta mais sóbrio. Os exageros de retórica travados pelos seus personagens, que volta e meia insistem em infantilizar a sua elegância, não lhe tiram lá tanta força, pois o filme vence a polarização. Suas personagens estão sempre debatendo, argumentando, e a cineasta muito habilmente evita a adesão a um corpo pronto de ideias. Seu filme é político, evidentemente, mas o é em função de seu arranjo narrativo e não em virtude de qualquer conteúdo ou discurso.

Uma sinopse bastante simples diria que uma professora de filosofia, interpretada por Isabelle Huppert (seguramente a mais poderosa de todas as atrizes em atividade), passa por uma série de crises íntimas, familiares, profissionais e intelectuais. Ela tenta seguir em frente confrontando cada uma com maturidade, embora com certo desnorteamento diante das situações.

Ela prefere, como boa filósofa, o confronto ético e estético ao político, isto é, abre caminho para que a imagem confesse o seu sentido de acordo com as circunstâncias dadas. Isso fica mais evidente nas cenas em que os estudantes discutem os motivos de uma interrupção das aulas para fortalecer um grupo de protesto contra aquilo que parece ser a reforma da previdência francesa (que fora iniciada pelo “conservador” Sarkozy e depois chancelada, com modificações, pelo “socialista” Hollande). Há quem queira protestar e há quem queira estudar. Discute-se a democracia (que é a vontade da maioria, diz um estudante) e logo depois temos a professora dando uma aula sobre o Contrato Social de Rousseau. Ela tem um ex-aluno anarquista que escreveu um livro sobre a Mínima Moralia de Adorno. Seu marido, também professor, não é senão um conservador de alta estirpe, embebido em receios e ponderações – ele é um formalista: não existe forma que não expresse a sua ideologia.

Para esta amarração, a pergunta: é possível se colocar no lugar do outro? Questão elementar para a relação espectador-filme, a interrogação que aparece logo no início demanda esse esforço de ambos. Em meio aos infortúnios que vão se impondo para a professora (aquilo que iria lhes salvar, isto é, a revolução, não veio a galope, deixando em seu lugar a melancolia e certa desolação; a perda de sua mãe, o marido que a deixou, a editora que sempre a publicou passa a negar os seus projetos e a alterar outros para torná-los mais comerciais), resta então desembaçar a vista para seguir em frente.

Confira o trailer do filme

O que está por vir (L’avenir) de Mia Hansen-Love, França, 2016. Com Isabelle Huppert, André Marcon, Roman Kolinka.