Pedro Henrique Gomes

No luxo dos veludos

Pedro Henrique Gomes
31 de maio de 2020

Um mar amorfo de bestialidades quase neutraliza a discussão sobre outras coisas nos tempos que correm. O governo Bolsonaro é desprezível, autoritário e corrupto. Precisa acabar. Seus séquitos apoiadores financeiros vivem muito bem no luxo dos veludos. Mas a crueldade dos monstros sanguessugas não pode paralisar-nos e é preciso reagir. Uma forma imprescindível de reação é a manutenção da quarentena para quem tem condições e pode mantê-la. No momento, a quarentena é a luta armada de 2020.

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Em meio a tudo isso, os filmes me aquecem. Certamente a sessão mais memorável deste maio que está prestes a se esgotar, levando com ele a vida de muita gente, espalhadas nos muitos brasis que temos no Brasil, ao descompasso do desprezível conjunto de abomináveis senhores da morte que dizem nos governar, enfim, eu dizia que a sessão mais marcante dessa quarentena, até aqui, foi a de A Casa e o Mundo (Índia, 1984), de Satyajit Ray. Curioso que, como em boa parte da obra cinematográfica do cineasta indiano, a casa, isto é, o espaço interior (ambiente dos dramas corriqueiros e cotidianos, mas também espaço para onde converge uma série de problemas do mundo, pois indissociáveis) existe pois há um fora dele, o exterior. Os espaços em Ray têm contornos e, ao mesmo tempo, respeitam aqui a intimidade da câmera clássica. Ele tem, no entanto, a malícia que faz do seu cinema uma viagem atenta ao conjunto de valores em vigor no espaço do qual ele fazia parte.

A história de A Casa e o Mundo é uma história conjugal, passada em Calcutá, e ela toma forma inteiramente no espaço doméstico. Estrutura dramática habitual em Ray, é possível conhecer o mundo com aquilo que ele nos dá a ver por meio de suas imagens e é necessário se inserir nesse mundo a partir de uma série de decisões (morais, absolutamente).

Bimala é casada com um homem intelectual, rico e liberal, e se vê encantada pelo amigo do marido que ele próprio insiste em lhe apresentar, contrariando a tradição. A tensão que se cria é exatamente resultado disso, consequência de crises constantes da tríade de personagens protagonistas, e comporta todos os conflitos, hesitações e vacilos possíveis naquele registro. Não há existência passiva no conjunto de ações assumidas pelos três, e suas decisões movem a trama. O narrador não deseja esconder as pistas, os motivos dos seus personagens. Ao contrário, ele espera que o espectador os decodifique. Nesse sentido, a razão de Ray opera de modo distinto a de um Bergman, Ozu ou de Fellini, por exemplo, que operam mais no mistério.

Satyajit Ray era um observador engenhoso e responsável. Audacioso, em A Casa e o Mundo ele não só “comenta” a cultura oficial, mas a interpreta compreendendo suas verdades mais íntimas – e suas falsidades também, seus vespeiros e suas contradições. Parece ser a melhor forma de fazer cinema político.

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Vale acompanhar as redes da Mostra de Cinemas Africanos. A Mostra coordena o Cine África, que está promovendo debates também com uma galera muito qualificada para falar sobre os filmes africanos. Espia a programação aqui. Além do Cine África, segue até o dia o 7 de junho o We Are One – A Global Film Festival, e o pessoal da Mostra publicou uma página com as exibições dos filmes africanos que integram a programação do festival, que são disponibilizados no YouTube.

Pedro Henrique Gomes

Festivais de cinema liberam catálogos e exibições inéditas online

Pedro Henrique Gomes
24 de abril de 2020

Há um mundo de alternativas aos serviços de streaming que dominam o mercado. E com filmes melhores. Enquanto o isolamento social segue uma necessidade fundamental para conter a disseminação novo coronavírus, vários festivais, cineastas e mostras estão liberando filmes de seus catálogos online, com acesso gratuito. Filmes raros, estreias, descobertas, enfim, outros mundos a explorar.

No Bazofi, por exemplo, os filmes têm horários de exibição no canal do festival no YouTube, aqui. A programação sai todos os dias na página do Facebook, aqui. Vai até o dia 3 de maio.

O Festival Internacional de Cinema de Brasília também está com programação online e gratuita. Além de uma retrospectiva Kirk Douglas, com 5 filmes do ator, tem o novo filme do Albert Serra, Liberté (que, por sinal, fica em exibição apenas até o 25 à noite). O Festival termina no domingo, 26. Para assistir aos filmes, basta fazer um cadastro rápido na Locke, também gratuito. Acesso aqui.

O Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre está com uma programação online com algumas dezenas de filmes disponíveis no Fantaspoa at home. Após perder patrocinadores, o Festival está buscando condições de produção de sua próxima edição. Há uma campanha de financiamento coletivo em curso até o dia 28 de abril.

O Instituto Goethe, em parceria com a Filmgalerie 451, manterá uma seleção de filmes online até o final de junho. Para ver a lista de filmes disponíveis no Goethe on demand, eis o link.

O catálogo online do Arsenal Institut liberou dezenas de filmes, com incentivo e apoio dos cineastas. Tem coisa fina por lá.

O MyFrenchFilmFestival liberou cerca de 70 curtas-metragens. Para assistir, o site também pede um cadastro rápido. Os filmes ficam abertos até o final do mês, neste link.

A programação virtual da Cinemateca Capitólio está publicando, diariamente, links para diversos filmes no Facebook e no Instagram. Todo dia, às 18h, um filme novo é colocado por lá. Além dos filmes, a Cinemateca está publicando as seções “Histórias do Cinema Gaúcho” e “Cartazes do Cinema Gaúcho”, que resgata o trabalho dos profissionais da Cinemateca na preservação da memória do cinema gaúcho. Vale acompanhar.

Bônus: os curtas dos cineastas da produtora mineira Filmes de Plástico já estavam disponíveis no canal do YouTube, mas fica a recomendação extra. Os filmes são incríveis. São da Filmes de Plástico dois dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, No Coração do Mundo, do Gabriel Martins e do Maurilio Martins, e Temporada, do André Novais Oliveira.

Pedro Henrique Gomes

Cinemateca Capitólio nas garras da ambição

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2020

Está marcado para fevereiro a abertura de um edital da Prefeitura de Porto Alegre para terceirizar a administração da Cinemateca Capitólio.

A defesa do processo licitatório, evidentemente, coincide com a justificativa de que a mudança melhoraria a gestão da Cinemateca. Os argumentos são insuficientes. O que está embutido nesse processo é a ideia de redução do risco: a principal variável capaz de mobilizar as forças da política institucional nos tempos que correm, haja vista a obscena e brutal intencionalidade da atual administração municipal em deslegitimar um espaço cultural como a Cinemateca. Como o risco é algo a que se pode apenas “mitigar”, jamais eliminar por completo, os projetos de transferência de gestões públicas para gestões privadas podem ser alargados e continuados sempre que couberem no discurso corrente. A gestão ficaria com uma empresa terceirizada, tal como no Auditório Araújo Vianna, que desde então é um lugar insosso e elitizado.

A programação da Cinemateca é de uma riqueza imprescindível, traduzida nas dezenas de mostras, sessões especiais e exibições exclusivas que tiveram lugar na sala de cinema desde sua abertura, em 2015. Além disso, a Cinemateca Capitólio não é apenas um cinema, mas uma biblioteca e um espaço de pesquisa, um acervo cultural e um espaço de formação audiovisual (portanto educacional). Esse espaço não deve ser terceirizado, pois a qualidade de seus serviços é que ficará sob ameaça.

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A ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, da qual faço parte, publicou uma nota sobre essa movimentação que pode fragilizar e precarizar a administração da Cinemateca, caso o processo seja levado a cabo. Transcrevo abaixo.

Desde a sua inauguração, em 2015, a Cinemateca Capitólio se consolida como uma referência em preservação e o lugar por excelência do exercício da cinefilia em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul.

As dificuldades financeiras que afetam equipamentos culturais e a própria produção artística do país inteiro têm sido dribladas, na Capitólio, graças a um trabalho competente que alia a guarda da memória audiovisual com a programação de filmes importantes, das mais variadas épocas e procedências, alguns deles raros e até mesmo inéditos nas salas da cidade, do Estado e do país.

Os projetos implementados incluem iniciativas de formação de plateias, festivais, mostras, cursos e encontros nos quais são debatidas questões prementes da nossa sociedade.

É por isso que a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) se mostra preocupada com o processo de transferência da gestão da cinemateca para uma Organização Social (OS), ou “contratualização”, processo este que tem sido levado a cabo pela prefeitura da capital gaúcha nos últimos meses.

Lembramos que iniciativas semelhantes têm dado resultados negativos do ponto de vista financeiro (como ocorreu com o Museu de Arte do Rio de Janeiro, o MAR) ou de programação (como ocorreu com a Cinemateca Brasileira), o que, caso se repita com a Capitólio, trará consequências desastrosas para a nossa cultura.

Em nome da continuidade de um modelo que mantenha a excelência da cinemateca tal qual ela se apresenta hoje, e vislumbrando o aprimoramento dos resultados conquistados nesses quase cinco anos de atuação, a ACCIRS firma posição contrária às mudanças na forma como elas estão anunciadas e pede que a prefeitura ouça os apelos da comunidade artística e cinéfila gaúcha antes de prosseguir com o projeto nos moldes em que ele está sendo divulgado à sociedade.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Paraíso Deve Ser Aqui

Pedro Henrique Gomes
3 de janeiro de 2020

Em busca de financiamento para seu próximo filme, Elia Suleiman sai da Palestina para Europa e, de lá, para a América tentando viabilizar a produção de seu novo trabalho. Na condição de artista observador interessado nas coisas que correm, Suleiman visita o mundo para voltar, insólito, à sua Terra. O cineasta, personagem (interno) do filme, e o narrador, autor (externo) da obra, deslocam as instâncias da narração para o estudo da própria condição metafórica desses encontros narrativos, e o resultado de suas imagens não preenche os requisitos para um humanismo de fachada. O Paraíso Deve Ser Aqui abre um diálogo e questiona a instituição que expropriou a Palestina dos palestinos em forma de ocupação colonial, rindo com tristeza e duvidando com a esperança de um futuro melhor.

Em alguns momentos, o filme me remeteu a uma sequência de Week-end à Francesa (1967), de Godard, no qual um homem pergunta a outro, no meio da estrada, se ele está em um filme ou na realidade? Em Godard, a resposta está na condição claramente cinematográfica das imagens. Para Suleiman, cuja narrativa explora os requisitos de um cinema de humor sofisticado, a resposta, de forma semelhante, consiste em oferecer uma observação do mundo a partir de um olhar em trânsito entre o universo do real e o da ficção de modo didático e frontal, postos como questões para o cineasta e seus motivos cinematográficos. Este seu mais recente filme faz exatamente esse exercício, não se baseando no mundo, mas sendo o mundo.

Como em Godard, o exagero não é caricatura, mas observação e análise do conjunto de um repertório historicamente construído, inclusive e precisamente por meio das imagens que circulam, tencionam e codificam o mundo contemporâneo. Em um mundo assim, nem há necessidade de guerras com canhões, snipers e foguetes para sua horripilância se manifestar. Suleiman recorre, claro, a uma encenação hiperbólica de aspectos que caracterizam as culturas por onde o seu personagem-cineasta passa, como Paris e Nova Yorque. O militarismo surdo, expresso didaticamente, inviabiliza a promoção do diálogo na megalópole americana, individualizando o tecido social. Ricardo Piglia escreveu, em seu O Caminho de Ida, cujo narrador-personagem não é senão um grande observador, assim como o Suleiman de O Paraíso Deve Ser Aqui, que é por isso que, não conseguindo recorrer aos colegas de trabalho (possibilidade de uma organização coletiva via sindicato), um trabalhador bem resolve subir no alto de um prédio e atirar contra seus compatriotas para apurar suas angústias individuais (que, todavia, certamente não são só as suas).

Quando as pessoas ocupam as ruas, o que ocorre é confusão, atropelo e fúria. Na Paris encontrada pelo cineasta, do alto da janela de onde está abrigado, localiza um imenso vazio nas ruas e que em todos os lugares é decodificado por uma série de episódios burlescos, capilarizados pela presença interventora do Estado, mediado pelas forças policiais e ironizado sem dó pelo filme. A polícia parisiense frontalmente ignora a presença de um Palestino num café quando precisa realizar sua inspeção; por outro lado, a norte-americana aprofunda a paranoia terrorista desconfiando de qualquer um.

Não raro, os fragmentos que lidam mais diretamente com a noção de identidade e nacionalidade são os mais cômicos, talvez justo pela insatisfação com a forma como acontecem: nunca há respostas, apenas moderadas reações faciais diante de mundos que lhes são estranhos e hostis. O debate com os estudantes de cinema, em Nova Yorque, por exemplo, e a cena em que uma produtora diz a ele que “seu filme não é suficientemente Palestino”. A noção de identidade é trazida didaticamente, inclusive, pela voz do próprio personagem: “Eu sou palestino”, diz a um taxista empolgado com o encontro. Evocando aquilo que Machado de Assis chamou de “certo instinto de nacionalidade”, a tarefa do autor, tomada pelos chifres por Suleiman, consiste em estudar o mundo em que vive e as implicações de cada ação individual no conjunto da sociedade, provocando tensões, colocando as contradições em cena.

Consciente de que essa representação não se dá sem uma outra tensão, imanente,  o cineasta sabe que, da América Latina e de Cuba ao cinema do continente africano, entre outros, a possibilidade de imagens de fora do eixo narrarem por dentro do eixo a partir da condição do estrangeiro sempre espantou o olhar Ocidental, ansioso em conhecer como o terceiro-mundismo via e vê a si mesmo. Suas imagens mostram isso. Ciente dessa tensão,  Elia Suleiman se encarrega de dar ao espectador um retrato surreal daquilo que a realidade é incapaz de cativar.

It Must Be Heaven, de Elia Suleiman (Palestina/Alemanha/Catar, 2019). Com Elia Suleiman, Gael García Bernal, Tarik Kopty, Kareem Ghneim.

Pedro Henrique Gomes

2019 em 11 filmes

Pedro Henrique Gomes
20 de dezembro de 2019

O ano foi interessante. Mesmo tendo visto menos filmes em comparação com os últimos anos, foi mais difícil formar a lista, deixando bons títulos fora dela. Mas toda lista é uma definição de critérios, de algum rigor, de uma possibilidade de identificar um conjunto representativo de filmes. Não é trivial o fato de que, com a exceção de dois ou três, os demais explicitem politicamente as tensões e as contradições que suas imagens fazem circular, ecoando – com licença – uma “relação espiritual” entre eles. A contragolpe da amargurada reversão nas políticas culturais (e em todas as outras) que este ano experimentou, principalmente o cinema brasileiro mostrou fôlego e renovação. Parece-me desleixada uma lista que se esqueça de pelo menos um filme nacional lançado em 2019. Sem ir muito além disso, digo logo que os meus filmes favoritos, neste ano, são estes:

  1. O Irlandês, de Martin Scorsese (EUA)
  2. Parasita, de Bong Joon-Ho (Coréia do Sul)
  3. Imagem e Palavra, de Jean-Luc Godard (França)
  4. Bacurau, de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho (Brasil)
  5. No Coração do Mundo, de Gabriel Martins e Maurilio Martins (Brasil)
  6. Synonymes, de Nadav Lapid (Israel/França)
  7. Vidro, M. Night Shyamalan (EUA)
  8. Nós, de Jordan Peele (EUA)
  9. Temporada, de André Novais (Brasil)
  10. Era uma vez em… Hollywood, de Quentin Tarantino (EUA)
  11. Santiago, Itália, de Nanni Moretti (Itália)
Pedro Henrique Gomes

Crítica – Parasita

Pedro Henrique Gomes
6 de dezembro de 2019

Do filme policial ao drama familiar, de monstros urbanos ao futuro distópico, as histórias narradas por Bong Joon-ho nunca renunciaram ao espetáculo de gêneros tal como proposto pelo cineasta em Parasita. Não é uma novidade, portanto, que, neste seu mais recente filme, uma sequência seja ao mesmo tempo repleta de violência graficamente explícita e, num golpe súbito, vire a chave para se desdobrar no mais sutil diálogo bem humorado, calibrado por um domínio das tensões que circulam em cena. O cineasta sul-coreano bem sabe como se movimentar entre as sensibilidades do espectador neste filme que, assim como o anterior, O Expresso do Amanhã (2013), propõe uma trama entre duas classes antagônicas e inconciliáveis. Cada personagem que aparece em cena provoca uma mudança de tom, embaralhando as ações. Parasita talvez seja o ápice dessa brincadeira – com Memórias de um Assassino (2003), talvez o seu melhor filme.

Esse conjunto de formas de expressão, de modulações da representação, mediado pelo trânsito entre diversos gêneros cinematográficos, no entanto, está organizado com a seriedade de quem compreende a dificuldade em estabelecer um registro tão político sem a gritaria do filme militante, muito satisfeito com suas certezas éticas.

No filme, Kim Ki-taek (Kang-ho Song) e sua família articulam modos de conseguir penetrar o universo de Park, cujo patriarca é um famoso arquiteto cheio de posses e poderes. Os Ki-taek moram num porão apertado. Aos poucos, Kim, sua esposa e seus filhos passam a trabalhar para a família Park. O aspecto aparentemente caricatural dessa oposição de classes se configura num jogo em que “os de baixo” tentam uma inserção forçada no universo “dos de cima”, que eles mesmos reconhecem como falso e careta. Mas embora a tentação da análise tenha instigado a crítica a buscar um sentido político na “luta de classes”, como se fosse apenas uma questão de opor os donos dos meios de produção contra a classe trabalhadora (e não é), o arquétipo da representação de Parasita parece interessado nos aspectos da sujeição que essa diferença social produz (e aquilo que os sujeitos produzem nela): os modos de (vi)ver a vida são exatamente outros e estarão sempre em rota de colisão – e, por isso, também as reações a eles, como o final do filme parece querer deixar evidente.

Curiosa articulação, pois os conflitos físicos do filme se estabelecem, praticamente todos, entre os mais humildes: com o homem que esbanja seu alcoolismo regularmente em frente a janela da casa da família Ki-taek até ser reprimido pelos moradores, justamente indignados, e entre a antiga funcionária e a própria família Ki-taek durante a segunda metade do filme. Em Parasita, a única conciliação possível entre ricos e pobres é, talvez ironicamente como na vida, um laço sexual, de paixão. Esse laço, ao contrário de todos os outros, nunca é rompido no filme. Nunca é rompido pois, no âmbito dos humildes, são as mulheres que tramam e indicam as decisões, seguram a barra (e se sacrificam, se sujam, se expõem…). Embora os gestos de violência física sejam iniciados e nutridos com gosto pelos homens, a maquinação dos planos, as melhores ideias, as defesas dos pontos de vista, ficam com as mulheres, isto é, a tapeçaria intelectual é fruto da imaginação feminina, enquanto a operação dessa organização mental é corporificada pelo masculino.

Diante desse conjunto de elementos e motivos cinematográficos que se desenredam de modo rocambolesco, a trajetória narrativa de Parasita comporta vários momentos que funcionam como clímax e estes ganham força pois a câmera de Bong Joon-Ho não tolera excessos. À primeira vista simples, sua mise en scène é determinada na busca por ângulos e enquadramentos precisos, fixos apenas no movimento do equipamento, pois a dinâmica interna das cenas são de uma força visual abundante. Joon-Ho quer enquadrar os rostos a uma distância segura, nem muito perto (em close), nem muito distante (em plano americano), preferindo planos médios para, com a força de seu elenco, dar a força expressiva ao filme. Essa construção dos elementos visuais do filme, que são tanto seus cenários quanto sua encenação e seus aspectos de representação, são as matérias do cineasta que, combinadas ao primoroso conjunto do elenco, reforçam a tensão do filme, que é constante. A esta obscenidade moral e estética que é a desigualdade social, o filme de Bong Joon-ho responde com uma combinação elegante de golpes que, como em quase toda boa história, sabe como gozar seu fim. É um dos melhores do ano.

Parasite, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul, 2019). Com Kang-Ho Song, Woo-sik Choi, Park So-Dam, Chang Hyae Jin, Sun-Kyun Lee, Cho Yeo-jeong, Myeong-hoon Park.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Irlandês

Pedro Henrique Gomes
22 de novembro de 2019

Só o narrador compreende (quase) tudo de antemão em O Irlandês. Quem narra, dentro do filme, é o personagem de Robert De Niro, cujas ações enformam a trama. Por isso, a trajetória da vida de Frank Sheeran é o fio condutor de todos os acontecimentos do filme. Não é pouco, pois o recorte vai da Segunda Guerra Mundial, passa pela Revolução Cubana, pelo assassinato de Kennedy e pela Guerra do Vietnã, por Watergate, pela Guerra do Kosovo e invade o novo milênio. Mas a monumentalidade do filme de Martin Scorsese não é explicada por sua duração ou por seu plano de fundo histórico, mas pelo aproveitamento preciso de seus elementos dramáticos e pelas instâncias de sua narração. Em uma história atravessada por incontáveis formas de violência, tanto aquela que envolve a trama quanto a que lhe serve de subtexto (a “História”), O Irlandês está configurado, também ritmicamente, não para surpreender o espectador ou aprisioná-lo na espera pelo grand finale, mas para contorcer e explorar cada uma de suas sequências em igual medida de grandeza.

É precisamente nesse espaço mediado pela força que o personagem de Robert De Niro transita ao longo de todo o filme, e o faz com capricho. Cindido entre a necessidade de “ganhar a vida” e a procura por algo maior e mais virtuoso, Sheeran se insere num espaço que a princípio não é seu. Nunca poderia ser. Nascido logo após o fim da Primeira Grande Guerra, ele se tornou um veterano da Segunda. Lá aprendeu a ser impiedoso. De motorista de caminhão convertido em líder sindical e braço de direito de mafiosos, Sheeran constroi a sua trajetória de vida encurtando a vida de outros. A encenação de Scorsese lhe dá o tempo e o espaço necessários para que suas contradições e ambiguidades apareçam, saltando entre os vários tempos narrativos, pausando e acelerando os desdobramentos e incorporando os eventos externos ao próprio mal-estar e forma de consciência do protagonista-narrador, o narrador que confessa, que relata a sua vida de crimes que não comporta grandes ambições ou remorsos: remorso é ser preso ou morto (a figura cinematográfica histórica do gângster sempre causou um borramento nas fronteiras da justiça, instituição que é, grosso modo, a única a tomar corpo no filme como mediadora dos conflitos que, paradoxal que seja, geralmente se dão entre os próprios conglomerados mafiosos).

Apesar do tom melancólico que ecoa aqui e ali a partir de uma espécie de abandono que muitos dos travellings que o filme opera indicam, inclusive em seus planos iniciais e finais, o abrigo que Frank Sheeran encontra não está exatamente nos laços de sangue, mas nos laços do crime, que, como se sabe, não são sólidos. É também a esta ambiguidade das relações (mais que na “complexidade” dos personagens) de família e poder que Scorsese deposita o esforço dramático do filme.

O modelo narrativo de O Irlandês alterna tempos como que para reforçar a ideia de que o passado e o futuro são reféns do presente e se confundem nele e, embora siga a cartilha cronológica clássica, em que um acontecimento prepara o terreno para outro, também a subverte. Essa manipulação temporal da ação lhe confere uma medida de grandeza incomum, pois seria fácil se perder em meio a tantas entradas e saídas de personagens, tantos elementos para aguçar a dispersão do foco narrativo. Scorsese é fiel ao passo macabro que seu protagonista realiza e raramente sai dele para dar movimento à trama do filme – e o faz com a calma do monge e a sabedoria do xamã. Lá onde Os Bons Companheiros e Cassino investiam na tradição, vá lá, épica da máfia (as drogas, o sexo, a sede juvenil da conquista do poder), O Irlandês se assenta na sobriedade da luz, nos pensamentos já corroídos pelas dúvidas e vacilos contaminados pelo tempo e a experiência, o que faz dele um filme mais nublado e disposto a fazer circular as suas contradições – e as de seus personagens que envelhecem. É asfixiante.

Essa obsessão pelos detalhes da representação não é arbitrária e o panorama que ela forma é inseparável da brutalidade da encenação. Se todo o ideário do American Dream estava florescendo “lá fora”, se a política externa do país, por meio das guerras, confirmava sua sanha conquistadora, O Irlandês não se mantém alheio a isso, mas lhe reserva pouca comoção. Baseado no livro de I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, em que os relatos de Sheeran confessam as suas práticas, o filme de Scorsese, assim como O Lobo de Wall Street, é fiel na medida certa aos seus contornos e contextos e não sucumbe a sociologismos para justificar as ações daquilo que deseja representar. Scorsese é um grande narrador criado ao modo dos clássicos: não se trata somente de “filmar o real” passivamente, mas de transformá-lo em criação própria, dar-lhe uma forma nova e revigorada.

Se a mirada de Scorsese aponta agora para o fim de um ciclo particular de representação (que a sua geração já apresentara modificada em relação aos cineastas das gerações anteriores), coisa que o faz com elegância, existem sempre inúmeras formas de recuperar os seus motivos. A tarefa só fica um pouco mais árdua para os cineastas que se empenharão nela.

The Irishman, de Martin Scorsese (EUA, 2019). Com Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Harvey Keitel, Anna Paquin, Ray Romano, Bobby Cannavale.

Pedro Henrique Gomes

2018 em 11 filmes

Pedro Henrique Gomes
31 de dezembro de 2018

A elaboração de uma lista de melhores filmes do ano é sempre um processo que evidencia os critérios de quem a elabora, isto é, diz menos sobre os filmes do que sobre sua própria construção. Ao fazê-la, o espectador/o crítico se encontra num beco sem saída ao expor uma relação que é absolutamente pessoal. A contradição não é apenas aparente, mas concreta. Resta então costurar uma relação entre os filmes, sem a forçar, para lhe empregar algum sentido.

Minha eleição pessoal, tradicionalmente em 11 filmes, o leitor acompanha abaixo com breves comentários.

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  1. Trama Fantasma, de Paul Thomas Anderson (Estados Unidos)

É melhor dizer logo de cara que Trama Fantasma é o filme de melhor execução que Paul Thomas Anderson já realizou. A confusão de valores narrativos e temáticos que antes lhe afetavam, neste filme o enriquecem. Em primeiro lugar, Trama Fantasma assume os monstros de sua ficção ao abraçar de vez o realismo em um sentido muito evidente, qual seja, o de capturar e sublinhar certas características do tempo e do espaço sem as decorações narrativas que estavam lá em Magnólia, Embriagado de Amor, Sangue Negro e outros de seus filmes. (texto completo no link)

  1. As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra (Brasil)

As Boas Maneiras, nova parceria de Juliana Rojas e Marco Dutra, assume a roupagem do filme de fantasia dark, repleto de motivos visuais fabulares, de imaginações que se tornam carne e sangue, de sonhos que são também outra coisa, de clara aposta estética em uma estrutura de resgate a partir de várias referências matriciais que percorrem e marcam a história das imagens (da pintura, do cinema: da luz). É precisamente, paradoxal que seja, por se movimentar entre gêneros que o filme corrige sua postura narrativa com o contrapeso que um exige do outro, deslocando as sensibilidades do espectador para o interior de seu tecido narrativo. (texto completo no link)

  1. Antes que Tudo Desapareça, de Kiyoshi Kurosawa (Japão)

Antes do mundo vir a acabar, que é o que menos importa, ele deixa seus habitantes em estado de completo aniquilamento emocional. Kurosawa domina em absoluto a arte de perverter as expectativas do espectador. Filme pensado politicamente, como sempre, no limiar entre a identificação emocional e a ironia. Provavelmente a cena final mais bela de todo o cinema no ano está aqui.

  1. A Câmera de Claire, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul/França)

É preciso ter humildade para fazer um filme, diz uma personagem. A conversa é a matéria-prima eterna de Hong Sang-soo e o que torna seus pequenos filmes em grandes histórias. O encontro, o desencontro. Cada diálogo é uma descoberta não só da trama que vai se descortinando sutilmente, mas da própria essência de um cinema movido mais pela escuta que pela observação.

  1. 120 Batimentos por Minuto, de Robin Campillo (França)

A força do filme de Robin Campillo não é sua sensibilidade narrativa, questão de tratamento do tema. Não estamos falando de um filme que deseja partilhar a culpa com o espectador, fazê-lo simplesmente lamentar a dor do outro. Poderia ter sido diferente, como pensamento reativo, não é uma possibilidade colocada por Campillo. O problema do HIV que o filme expõe não é uma disputa sobre a direção da luta, mas sobre a canalização da energia. É preciso seguir em frente.

  1. Amante por um Dia, de Philippe Garrel (França)

Eis que Garrel, mago das relações conjugais, homem que filma no ritmo em que a vida acontece, cometeu mais um grande filme cheio de nuances que tornam a compreensão das soluções narrativas muito incertas. Isso pois ele não faz julgamentos morais. Ele mira o vacilo, a dúvida, o processo de tomada de decisão, a impostura romântica e os pensamentos avoados. É de sair perplexo após cada encontro com um de seus filmes.

  1. Uma Temporada na França, de Mahamat-Saleh Haroun (França/Chade)

As filmografias diaspóricas dos cineastas africanos, principalmente os residentes na França, têm em Mahamat-Saleh Haroun o seu expoente mais conhecido. Não é por acaso. Haroun – com Grigris (2013) e agora com este novo filme – tem a sensibilidade medida pela observação cotidiana, com um cinema dedicado aos dilemas contemporâneos dos imigrantes africanos na Europa.

  1. O Dia Depois, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul)

A ideia de “evolução” qualitativa na obra de um artista é geralmente mal aplicada pela crítica de arte, principalmente a contemporânea. Ao analisar o cinema de Sang-soo o seu uso deveria ser ainda mais tímido, quando não simplesmente convidado a se retirar do repertório crítico. Pegue um de seus filmes e assista, embaralhe a lista e pegue outro, e assim por diante. A experiência será sempre demolidora e, sem paradoxo aqui, misteriosamente diferenciada. A razão é que Sang-soo conhece os seus motivos cinematográficos como poucos cineastas de nosso tempo – neste ano, tanto O Dia Depois quanto A Câmera de Claire deixam isso bem claro. E isso não o aprisiona, mas o liberta. Questão de critério e método.

  1. Em Chamas, de Lee Chang-dong (Coréia do Sul)

Talvez o melhor filme de Chang-dong, Em Chamas tem uma paciência insuspeita para introduzir o espectador ao mundo de seus personagens, contar de onde eles são, o que fazem, quais suas ambições e desejos. É o aspecto que mais me encanta no filme, a forma não só de usar a duração (prolongando os diálogos, segurando o corte), mas de expressá-la, fazer sentir o tempo. O seu conteúdo transborda por aí. O objetivo, claro, é chamar o espectador para aquele universo, sob o signo da dúvida, sem mastigar para ele os desdobramentos. Western, o filme seguinte desta lista (assim como Trama Fantasma, aliás), também me remete a esse controle do “peso do tempo” em cada cena. As forças não se dissipam, mas se modificam e explodem. Aí é com o espectador.

  1. Western, de Valeska Grisebach (Alemanha)

A percepção das modernas relações de classe que Western expõe é evidente: são nelas que se identificam as disputas mais árduas para a classe trabalhadora. Todavia, não se apresse o espectador, não é em Marx que Valeska Grisebach busca a explicação para os conflitos do filme, que tem como ambição colocar em crise o drama muito específico de um grupo de operários, de vários países, em uma cidade búlgara de interior. O western do título alude ao fato de que, como no faroeste clássico, alguém ou um grupo geralmente chega para impor uma transformação, seja a construção de uma ferrovia ou para explorar e dominar um pedaço de terra. Aqui, como lá, essa relação é atravessada pela ambiguidade o tempo inteiro no mesmo ritmo, sem clímax. Não há redenção possível.

  1. Infiltrado na Klan, de Spike Lee (Estados Unidos)

Com o Infiltrado na Klan, Spike Lee não deixa dúvidas: partiu para a luta armada. Para desembrulhar o racismo, o humor não se articula como gatilho retórico, mas como regime de compreensão do absurdo. É uma opção do narrador que qualifica o discurso do filme, além de oferecer dificuldades ao juízo do “filme militante” que não enxerga as tensões que circulam na sociedade para além do seu espaço de ação e luta – o que acontece muitas vezes com Ken Loach e Michael Moore, para citar alguns. Um de seus melhores!

Pedro Henrique Gomes

Supa Modo

Pedro Henrique Gomes
8 de dezembro de 2018

Saio da sessão de abertura da Mostra de Cinemas Africanos e, no percurso de volta pra casa, escrevo este texto mentalmente.

Após a sessão de Supa Modo, de Likarion Wainaina, do Quênia, participei de um debate sobre distribuição e circulação dos filmes africanos com Ana Camila, curadora da Mostra e pesquisadora, e Gabriela Almeida, incansável organizadora da edição de Porto Alegre – a primeira edição ocorreu em Salvador, dias antes. O texto abaixo contém o fluxo do pensamento. Em próximas postagens pretendo voltar ao tema e ao filme com a profundidade que merecem.

A Mostra de Cinemas Africanos, edição de Porto Alegre, segue até dia 16/12, na Cinemateca Capitólio. Programação completa na página do evento e no site da Cinemateca.

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Ainda hoje, quase 60 anos depois da emergência dos cinemas africanos, a grande maioria dos filmes continua invisível. É importante destacar que atualmente são poucos os países africanos que possuem algum tipo de incentivo através de políticas públicas voltadas ao cinema, sendo que, dos que têm, a maioria são os países que já eram independentes antes de 1960, como é o caso do Egito, do Marrocos, ao norte, e da África do Sul.

Os festivais de cinema pioneiros, como a Jornada Cinematográfica de Cartago, na Tunísia (1966), e o Festival Panafricano de Ouagadougou, em Burkina Faso, três anos depois, surgiram com o intuito de colocar o cinema na rota da distribuição e exibição, numa tentativa (bem sucedida) de romper os resquícios da dominação colonial que, é claro, não desaparece imediatamente após as independências.

Essa história, no entanto, não é linear. Em alguns países, as “estruturas de cinema” cresceram e se reduziram de modo muito específico, dadas as condições políticas de cada país. Países diversos ofereceram respostas diversas a esses problemas. Burkina Faso, por exemplo, nacionalizou, nos anos 1970, a cadeia produtiva de cinema, inclusive assumindo o controle das salas de cinema.

A Nigéria formou, nos anos 1990, uma verdadeira indústria do vídeo, com filmes lançados diretamente em DVD se popularizando ano após ano, criando uma regularidade e, a bem dizer, uma atividade participativa na economia nacional. Em quantidade de filmes, Nollywood, como é chamada a indústria nigeriana, é uma das maiores do mundo.

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Supa Modo

(ou “precisamos fazer um filme”)

História de amor e paixão pela criação de imagens, o filme de Likarion Wainaina é o cinema pulsando como energia criativa, como desejo e necessidade por imagens.

Supa Modo tematiza o próprio cinema (e sua condição de produção, circulação e exibição), trazendo-o para dentro da trama. A jovem Jo, vítima de uma doença terminal, crê que possui superpoderes. Sua família e amigos, com exceção da mãe, incentivam a jovem heroína a testar suas forças sobre-humanas constantemente. Seus amigos resolvem fazer um filme sobre isso, tendo Jo, Supa Modo, como protagonista.

Como justificaremos um filme?, pergunta um personagem ao ficar sabendo da ideia de um filme de super-herói na região onde mora. A surpresa é um tanto maior pois, provavelmente, ele deverá participar da produção. A preocupação, no entanto, diz muito sobre as angústias que, desde sempre, marcaram a feitura das cinematografias africanas.

Acreditar no cinema, em sua magia, conhecendo seus fluxos criativos, suas heranças estéticas globais, o seu referencial incontornável e, ao mesmo tempo, amarrar dramaticamente uma situação crítica com humor colocando em cena questões de cinema locais, definitivamente, não é um processo simples.

O filme negocia, internamente, esse arranjo dramático: desde o início o espectador entende a gravidade da doença de Jo. No entanto, o filme inteiro é jogado para cima, não só pelo riso, mas pela substância animada de seu espírito (do texto e da maioria das soluções visuais encontradas para resolver as cenas). Nada disso é aleatório ou acidental, pois Supa Modo pensa a encenação com absoluta e rigorosa clareza a partir dos seus temas, dos seus motivos, e não o contrário.

Se a imaginação consegue voar, então, de fato, é possível voar.

Supa Modo, de Likarion Wainaina (Quênia, 2018). Com Stycie Waweru, Marrianne Nungo, Nyawara Ndambia, Johnson Gitau Chege, Humphrey Maina, Joseph Omari.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Doutrinador

Pedro Henrique Gomes
10 de novembro de 2018

A corrupção penetrou, como doença autoimune, todos os departamentos da política nacional. Sua estrutura organizacional está profundamente corrompida, e dela é preciso desconfiar sempre. Saúde e segurança funcionam apenas como estratégias de campanha e retórica política. Os grandes políticos manipulam o sistema, jogam sujo sem pestanejar, como mafiosos. Diante de tal cenário, manifestações eclodem e a sensação de apatia infesta o ambiente, as ruas e as consciências. O sistema político precisa ser corrigido, e ele está por um fio de romper.

Após uma tragédia familiar, o policial Miguel (Kiko Pissolato) decide ser o poder de reação a esse sistema. Ele identifica o descalabro ao ver o governador do Estado, notório corrupto, escapar e, somando isso a dor e o ódio que lhe consomem violentamente, veste a roupagem do justiceiro solitário. Compreendemos seus motivos: uma bala perdida encontrou o peito de sua filha quando eles iam a um jogo de futebol. No hospital, imensas filas e corredores lotados. A criança morre antes de ser atendida. Miguel faz a conexão entre as coisas e percebe que não há outra forma de lutar contra o sistema. A corrupção é a causadora dos problemas sociais.

Esse impulso inicial, que engatilha os desdobramentos do filme dirigido por Gustavo Bonafé, se mostra aos atropelos. É apressada inclusive sua cena mais dramática (a morte da filha), esvaziada diante do esqueleto do roteiro que se faz ver a todo o momento, marcando, grosso modo, todos os pontos de virada do filme. Com essa “construção” do jogo ficcional e fantasioso (Bonafé quer claramente distanciar seu filme do “real”; prefere narrar metaforicamente) é um tanto difícil aderir ao torpor raivoso de Miguel, comprar a sua indignação ao ponto de julgá-la legítima. É respeitável o esforço da produção em buscar “limpar” as motivações ideológicas de seu personagem. Mas não há pureza possível: assassinar políticos (e apenas políticos) para aplicar um corretivo no sistema que eles gerenciam é uma opção determinada por condições materiais e ideológicas, de entendimento da resolução de conflitos que extrapola as motivações individuais do anti-herói.

A cena da morte da filha de Miguel, aliás, depõe contra o filme. Na pressa com que sua ação transcorre, está claro que foi filmada apenas para ser um elemento detonador da história, para garantir as razões do que sucederá e trazer o espectador para o lado do protagonista. Esse é o momento em que o filme de Bonafé assume, mesmo a contragosto, o seu direcionamento reacionário: esvaziar tal tragédia para cumprir uma função narrativa sem dar a ela o seu devido peso é algo para o qual não há desculpa.

São robustas as evidências de que O Doutrinador não desenvolve esforço de compreensão das tensões e dos conflitos no qual meteu os pés. A areia movediça do cinema político quase sempre puxa sem piedade o pensamento que não duvida de si mesmo, que não manifesta suas próprias contradições, bem como do “assunto” que aborda. É inviável fugir com o argumento de que não estamos diante de um filme político, mas de uma aventura brasileira no cinema de ação vertiginoso de inspiração hollywoodiana; ficção despreocupada, metafórica. O Doutrinador pretende oferecer uma representação da cena política brasileira, mas abrevia sua força com a criação de caricaturas. Isto não é trivial.

A decodificação minuciosa dos labirintos da política prescinde que se fale inclusive de “política”. É possível se recusar a preencher os requisitos normativos do cinema e assumir uma consciência criativa operando dentro do “sistema”. Preservadas as devidas proporções, o cinema clássico americano, em especial aquele cultivado pelos cineastas que vieram da Europa e na América fizeram carreira (Fritz Lang, Otto Preminger, Ernst Lubitsch, Alfred Hitchcock etc) é a evidência mais cristalina e bem-sucedida.

Há uma explicação, no entanto. Concebido como filme e como série a partir de obra dos quadrinhos, uma HQ, o filme de Bonafé é engolido pela narrativa seriada, fragmentária e refém, muitas vezes, da estrutura blocada de seus desdobramentos – essa estrutura costura a trama sempre para dar as respostas e nunca para provocar a dúvida, já que esta dura apenas até o próximo episódio. É compreensível que assim seja, todavia haveria espaço, diante de assunto tão candente, para explorar sua narrativa episódica e consequencialista, cujo ponto de virada, isto é, o momento que desperta à vida o anti-herói da história, é bastante grosseiro.

O Doutrinador, de Gustavo Bonafé (Brasil, 2018). Com Kiko Pissolato, Samuel de Assis, Tainá Medina, Marília Gabriela, Eduardo Moscovis, Helena Ranaldi, Natalia Lage, Natallia Rodrigues.