Pedro Henrique Gomes

Supa Modo

Pedro Henrique Gomes
8 de dezembro de 2018

Saio da sessão de abertura da Mostra de Cinemas Africanos e, no percurso de volta pra casa, escrevo este texto mentalmente.

Após a sessão de Supa Modo, de Likarion Wainaina, do Quênia, participei de um debate sobre distribuição e circulação dos filmes africanos com Ana Camila, curadora da Mostra e pesquisadora, e Gabriela Almeida, incansável organizadora da edição de Porto Alegre – a primeira edição ocorreu em Salvador, dias antes. O texto abaixo contém o fluxo do pensamento. Em próximas postagens pretendo voltar ao tema e ao filme com a profundidade que merecem.

A Mostra de Cinemas Africanos, edição de Porto Alegre, segue até dia 16/12, na Cinemateca Capitólio. Programação completa na página do evento e no site da Cinemateca.

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Ainda hoje, quase 60 anos depois da emergência dos cinemas africanos, a grande maioria dos filmes continua invisível. É importante destacar que atualmente são poucos os países africanos que possuem algum tipo de incentivo através de políticas públicas voltadas ao cinema, sendo que, dos que têm, a maioria são os países que já eram independentes antes de 1960, como é o caso do Egito, do Marrocos, ao norte, e da África do Sul.

Os festivais de cinema pioneiros, como a Jornada Cinematográfica de Cartago, na Tunísia (1966), e o Festival Panafricano de Ouagadougou, em Burkina Faso, três anos depois, surgiram com o intuito de colocar o cinema na rota da distribuição e exibição, numa tentativa (bem sucedida) de romper os resquícios da dominação colonial que, é claro, não desaparece imediatamente após as independências.

Essa história, no entanto, não é linear. Em alguns países, as “estruturas de cinema” cresceram e se reduziram de modo muito específico, dadas as condições políticas de cada país. Países diversos ofereceram respostas diversas a esses problemas. Burkina Faso, por exemplo, nacionalizou, nos anos 1970, a cadeia produtiva de cinema, inclusive assumindo o controle das salas de cinema.

A Nigéria formou, nos anos 1990, uma verdadeira indústria do vídeo, com filmes lançados diretamente em DVD se popularizando ano após ano, criando uma regularidade e, a bem dizer, uma atividade participativa na economia nacional. Em quantidade de filmes, Nollywood, como é chamada a indústria nigeriana, é uma das maiores do mundo.

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Supa Modo

(ou “precisamos fazer um filme”)

História de amor e paixão pela criação de imagens, o filme de Likarion Wainaina é o cinema pulsando como energia criativa, como desejo e necessidade por imagens.

Supa Modo tematiza o próprio cinema (e sua condição de produção, circulação e exibição), trazendo-o para dentro da trama. A jovem Jo, vítima de uma doença terminal, crê que possui superpoderes. Sua família e amigos, com exceção da mãe, incentivam a jovem heroína a testar suas forças sobre-humanas constantemente. Seus amigos resolvem fazer um filme sobre isso, tendo Jo, Supa Modo, como protagonista.

Como justificaremos um filme?, pergunta um personagem ao ficar sabendo da ideia de um filme de super-herói na região onde mora. A surpresa é um tanto maior pois, provavelmente, ele deverá participar da produção. A preocupação, no entanto, diz muito sobre as angústias que, desde sempre, marcaram a feitura das cinematografias africanas.

Acreditar no cinema, em sua magia, conhecendo seus fluxos criativos, suas heranças estéticas globais, o seu referencial incontornável e, ao mesmo tempo, amarrar dramaticamente uma situação crítica com humor colocando em cena questões de cinema locais, definitivamente, não é um processo simples.

O filme negocia, internamente, esse arranjo dramático: desde o início o espectador entende a gravidade da doença de Jo. No entanto, o filme inteiro é jogado para cima, não só pelo riso, mas pela substância animada de seu espírito (do texto e da maioria das soluções visuais encontradas para resolver as cenas). Nada disso é aleatório ou acidental, pois Supa Modo pensa a encenação com absoluta e rigorosa clareza a partir dos seus temas, dos seus motivos, e não o contrário.

Se a imaginação consegue voar, então, de fato, é possível voar.

Supa Modo, de Likarion Wainaina (Quênia, 2018). Com Stycie Waweru, Marrianne Nungo, Nyawara Ndambia, Johnson Gitau Chege, Humphrey Maina, Joseph Omari.

Pedro Henrique Gomes

Idrissa Ouedraogo: história e memória

Pedro Henrique Gomes
2 de março de 2018

É de uma precisão cortante a obra que nos legou o cineasta Idrissa Ouedraogo, morto em 18 de fevereiro. Nascido em Burkina Faso, Ouedraogo reinventou um cinema que ainda inventava a si próprio. Apesar de Burkina Faso ter iniciado uma política nacional voltada ao desenvolvimento das artes locais que permitiu bom desenvolvimento do cinema em comparação com os demais cinemas africanos, Idrissa Ouedraogo é um dos poucos cineastas do país que conseguiu fazer mais do que um ou dois filmes.

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Nesse cenário, ele teve sólida e reconhecida obra, nacional e internacionalmente, a partir dos anos 1980, quando começa a filmar

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Seus filmes tiveram penetração mundial e, mais importante, visibilidade nos países africanos. Ele instruiu, isto é, filmou a África para os africanos e nela encontrou também as suas obsessões temáticas e estéticas. São as tradições e as transições que a vida coloca diante dos indivíduos as questões que mais lhe interessavam filmar.

Eis um cineasta que vislumbrou uma linguagem particularmente africana (um debate frequente), diante de todas as dificuldades que atravessavam e persistem nas periferias cinematográficas no mundo. A África ocidental francófona subsaariana é, como foi sempre, um território em disputa pelos imaginários, pelas identidades nacionais, os processos de descolonização que explodiram nos anos 1960 e, finalmente, o neocolonialismo. Uma vez livres da invasão colonialista formal, era preciso reconstruir a memória, traçar uma história da memória.

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Idrissa as filmou (suas memórias pessoais) ao mesmo tempo em que fornecia as bases para a consolidação de outras, engendrou uma experiência visual que não se acomodou em ser simplesmente política como muitas vezes se exigiu dos cineastas e demais artistas africanos

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Ele reconheceu, eu diria até de forma pioneira, que a luta pela restituição das identidades nacionais, para além dos esforços de independência econômica, política e cultural, é travada também por imagens e por palavras, pois é preciso discutir a questão das línguas africanas por meio do cinema. Estas questões são muito bem colocadas pelo escritor queniano Ngugi Wa Thiong’o, em artigo publicado no livro Cinemas no Mundo – África: indústria, política e mercado, organizado pela Alessandro Meleiro (Ed. Escrituras).

Ouedraogo foi um cinéfilo e seus filmes mais conhecidos, Yaaba e Tilaï, são expoentes da coerência de seu estilo: um gosto profundo e um interesse claro por preencher o silêncio com a alma dos indivíduos que filmava. É uma relação espiritual e material, uma conexão entre a terra e os céus, os vivos e os mortos. E que não se acaba.

Neste sábado, 03, a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, programou uma homenagem ao cineasta, às 19h30, onde eu comentarei o legado de Ouedraogo após a exibição de Yaaba (1989), um de seus grandes filmes. Será uma sessão especial!

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu não sou seu negro

Pedro Henrique Gomes
3 de março de 2017

James Baldwin iniciou o projeto de um livro, Remember This House (1979), que não concluiu, no qual pretendia contar a história dos Estados Unidos através da figura de três amigos seus, notadamente Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Em comum, além da militância pelos direitos civis dos negros americanos, Baldwin chama atenção ao fato de que os três, nos anos 1960, foram assassinados antes mesmo dos 40 anos – ele morreria aos 63 anos, na França, para onde se mudou em 1948. Eu não sou seu negro, dirigido por Raoul Peck, é construído inteiramente a partir de fragmentos dos manuscritos deixados por Baldwin.

“Não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram”

Negro, escritor, militante e orador habilidoso. O texto salienta a sofisticação do pensamento do seu pensamento, a poesia crua de sua prosa, expõe suas contradições de jovem, revela as angústias dos anos de maturidade. Baldwin é muito persuasivo e é algo como isto: não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram. O genocídio indígena e a escravidão negra não foram invenções dos negros. O filme chama atenção para as divisões de classe no seio da sociedade americana: “o branco é uma metáfora do poder”.

Peck costura a narração, na voz de Samuel L. Jackson, com imagens de grandes filmes do cinema americano. Baldwin, atento também ao cinema, comenta alguns deles, sua herança, seu imaginário, seus heróis. Não havia representação do negro (nem do índio) no cinema americano senão como elementos de vilania ou a partir de um ponto de vista aristocrático. Não era possível o reconhecimento do negro no cinema. Baldwin cresceu envolvido por essa cultura.

O filme de Raoul Peck é consciente do poderoso material que tem em mãos e não o despeja sobre seus espectadores. Sua narração é pausada, cantada letra por letra em sonoridade irrepreensível, o filme é minucioso nesse sentido puramente estético do rigor documental, tão rigoroso que chega a ser um tanto engessado e apegado ao “televisionismo” da montagem. Ao mesmo tempo, a produção de Baldwin como escritor tratava, não com menor força, de sexualidade, de pressões sociais, em suma, da homossexualidade – Baldwin era homossexual. O filme menciona isso apenas lateralmente através de um relatório do FBI, o que é estranho, pois confiar ao estado policial e racista a descrição de uma particularidade fundamental de seu personagem ameaça (ainda bem que não consegue, graças a ele mesmo) retirar um pedaço dele. Não foi o recorte escolhido pelo cineasta, no entanto.

Outra questão que se imputa negativamente ao filme de Peck, sem surpreender, é um “olhar” semelhante ao que grande parte da crítica (ocidental) despejou (com muita violência, diríamos) sobre os cinemas africanos durante boa parte dos seus anos de formação, a partir de 1960. Em resumo, esperavam que os cineastas dos países africanos “não abandonassem as suas raízes”, que “criticassem o colonialismo” e o seu continuador exatamente perverso, o neocolonialismo pós-independência.

Era preciso ser radical, diziam. O bem aventurado imaginário colonizador (eurocêntrico; nestes casos, em grande parte o francês) pretendia um certo cinema africano: aquele que eles gostariam de ver. Os cineastas africanos queriam outra coisa – ou pelo menos algumas outras coisas, mas não há espaço para remontar este debate agora. É claro que ao salientar isso não se interrompe as críticas ao filme, apenas se questiona uma modalidade específica de juízo valorativo que parece querer um tipo de filme adequado aos seus desejos, esquecendo o filme tal como ele foi concebido.

I am not your negro, de Raoul Peck, França/EUA. Com James Baldwin, Martin Luther King, Malcolm X, Medgar Evers, Dick Cavett, Samuel L. Jackson, Henry Belafonte.