Raquel Grabauska

Conselho tutelar não é bicho-papão

Raquel Grabauska
29 de setembro de 2023

Quando comecei a ouvir sobre a eleição para o Conselho Tutelar esse ano, morri de vergonha. Eu nunca votei! Com a voz fraca, tímida, fui contando para as pessoas com quem eu ia conversando. E fui vendo as caras de espanto quando elas, constrangidas, também assumiam que nunca tinham votado. Nós, progressistas, pessoas de esquerda, empenhadas na luta por um mundo mais justo, lutando contra o fascismo, racismo, machismo e tantas outras lutas que nem sei dizer, nunca votamos para o Conselho Tutelar. Nós, classe média, nunca votamos. 

Acontece que quem vota no Conselho Tutelar são as pessoas das comunidades da periferia. São as pessoas que mais precisam. Elas enfrentam evasão escolar, denúncia de maus-tratos, abuso sexual e acionar o CT é a única maneira que elas tem de protegerem suas crianças e adolescentes. Essas coisas não acontecem só na periferia, a gente sabe que não. Mas a classe média tem psicólogo, psicopedagoga, psiquiatra e acesso a inúmeras alternativas de proteção. Tem convênio. 

Mas eu não quero que seja bom só para mim ou para os meus filhos. Nem só para ti ou para os teus. Porque enquanto não for bom para a maioria, não será para nenhum de nós que acreditamos nessa luta. E a gente pode, nesse domingo, mudar a vida de muitas crianças e adolescentes votando em conselheiros tutelares que sejam comprometidos com os direitos dessas pessoas. 

Segundo dados do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil deste ano, divulgado pela Fundação Abrinq, mais de dez milhões de crianças entre 0 e 14 anos vivem na extrema pobreza. O mesmo estudo mostra que 75% das notificaçoes de violência e exploração sexuais são contra menores de 19 anos. Em 2021, foram 20.774 notificações em todo o Brasil. Além disso, mais de 17 mil adolescentes menores de 14 anos deram à luz em 2021. Oito dessas meninas tinham menos de dez anos de idade. Imagine, mãe aos oito anos. 

O Conselho Tutelar não é o bicho-papão, como muitos fazem crer. Ele existe para proteger e precisa ser fortalecido com a nossa participação. A extrema-direita se organiza há anos e, há anos, consegue ocupar esses espaços que devem ser de pluralidade e acolhimento incondicional. Por isso, não podemos nos omitir. Participar da votação é a única maneira de garantirmos proteção às crianças e adolescente.

As listas com os nomes dos candidatos e seus respectivos números para votação podem ser consultadas nos sites das prefeituras de cada município. Assim como os locais de votação.

Foto de capa: Fernando Frazão / Agência Brasil

Raquel Grabauska

Praga de filho!

Raquel Grabauska
25 de agosto de 2023

Dias desses comentei com o namorado de um amigo que já tem filhos grandes sobre o sono que estava sentindo. Contei que meus filhos acordaram váááááááááááárias vezes durante a noite, fazendo com que eu me tornasse um zumbi matinal. Foi quando ele me disse: “Filhos pequenos dão trabalho. Filhos grandes dão dor de cabeça”. Nunca mais parei de pensar nisso. Resolvi aproveitar para me divertir um pouco com o trabalho que os filhos pequenos nos dão.

Às 10h da manhã, o filho menor pede colo para o pai. O objetivo é ver o que tem no armário das comidas. Descobriu um pirulito que jazia escondido. Começa a negociação. O pai não cede. Filho frustrado. Manha, fúria, desgosto. Por fim, desabafo: “Se eu fosse adulto, eu faria o que queria”. Certamente o primeiro ato da sua vida adulta será comer um pirulito às 10h da manhã de um feriado.

Por aqui, quando não deixamos fazer alguma coisa que querem muito, ouvimos coisas terríveis:

– Não vou te convidar pro meu aniversário!

– Não vou te emprestar os meus brinquedos!

– Não gosto mais de ti, só do papai!

– Não gosto mais de ti, só da mamãe!

– Ninguém me entende!

Nada de amor!

Essas duras palavras duram em torno de doze segundos. Daí vem o melhor abraço do mundo. Sempre. E somos novamente convidados para o aniversário. E podemos brincar com seus brinquedos. E eles ficam sabendo que os amamos.

Imagem de Rudy and Peter Skitterians por Pixabay

Raquel Grabauska

Meu colar está inteiro

Raquel Grabauska
4 de agosto de 2023

Quem anda perto de mim sabe que eu adoro um colar no pescoço. Quem anda perto sabe que quando as coisas estão pesadas, meus colares caem. Meus colares quebram. Não tem cola pra colar colar. Quando quebra, deixo ir. Um dia alguém me disse: foi um encanto que se quebrou. Haja colar.

Fui fazer um pudim. Adoro fazer pudim. Adoro fazer pudim pra quem amo. Açúcar pra calda, pra caramelizar a forma. Peguei o pote de vidro e ele achou que estava numa Olimpíada, deu um salto triplo, voou lindamente pelo ar e se espatifou por completo no chão da cozinha.

No impulso de parar a dor da queda do outro – que pretensão essa minha – coloquei o pé para impedir o contato brusco com o chão. Eu estava com uma botina que ganhei de uma amiga, por sorte. Muita sorte. Foi vidro pra todos os lados. Açúcar para todos os lados.

Meu colar está inteiro. Meu pé está inteiro. Eu estou aprendendo ficar inteira. Tem açúcar para todo lado. Dizem que derrubar sal dá azar. Tem açúcar para todo lado.

Imagem: Raquel Grabauska / Arquivo Pessoal

Geórgia Santos

Vão-se os fascistas, fica a pasta

Geórgia Santos
25 de julho de 2023

O 25 de julho é celebrado na Itália como o dia que representa a queda do fascismo. Há exatos 80 anos, o ditador Benito Mussolini foi deposto e preso. Centenas de milhares de italianos se renderam à desforra pelas ruas e praças das cidades, gritando e cantando de alegria, destruindo bustos de Il Duce e cuspindo em retratos daquele homem atarracado. Os ativistas também libertaram os presos políticos naquele dia, os antifascistas.

É verdade que se cometeu o erro de acreditar que a guerra havia acabado e talvez esse erro tenha sido repetido muitas e muitas vezes, em muitos e muitos lugares, mesmo no Brasil de 2022. Mas a realidade que desse as caras em outro momento, aquele era o dia de uma celebração muito aguardada.

.

Tanto que os italianos comemoraram comendo pasta. Muita pasta. E não qualquer pasta

.

Eu não sabia da existência da Pasta Antifascista até deparar com o texto da newsletter da Emiko Davies, uma fotógrafa e culinarista que vive em Florença. A Emiko contou que depois de duas décadas de ditadura fascista e cinco anos de guerra, a Itália estava derrotada, a população faminta e ingredientes simples como sal, farinha, arroz, carne e azeite foram racionados até se tornarem virtualmente inexistentes. Consequentemente, já não havia pão ou pasta disponíveis para o povo. E os fazendeiros eram obrigados ou a ceder a terra às necessidades do exército nazista – de quem a Itália era aliada – ou a enviar a maior parte da produção de grãos, carne e leite para a Alemanha.

Reprodução Newsletter Emiko Davies

Como se não bastasse, a boa e velha massa era demonizada pelos fascistas e pelo futuristas. O Futurismo foi um movimento artístico e literário que rejeitava, é claro, o passado. As obras se apoiavam fortemente na velocidade e desenvolvimento tecnológico do final do século 19 e, inclusive, exaltavam a guerra e a violência. Filippo Tommaso Marinetti foi o fundador do movimento e, pasmem, escreveu um manifesto contra a pastasciutta. No livro “La Cucina Futurista”, de 1932, ele dizia que essa “religião gastronômica absurda” deixa as pessoas “pesadas”, “lentas” e “pessimistas”.

Os italianos do sul não gostaram nada dessa bobajada e algumas donas de casa de Puglia, que fica bem no salto da bota, escreveram uma carta em protesto ao manifesto anti-pasta. O prefeito de Nápoles respondeu de maneira inefável: “Os anjos no céu não comem nada além de vermicelli com molho de tomate.” Vermicelli é o que a gente conhece por cabelinho de anjo. Obviamente.

Mussolini apoiou o manifesto do amigo Marinetti porque a ideia cabia perfeitamente na agenda fascista que pretendia tornar a Itália uma nação auto-suficiente. Para se ter uma ideia da dimensão do absurdo, o governo dizia que comer pasta não era patriótico porque o país dependia – e ainda depende – de trigo importado para produzir aquela massinha. Então, em 1925 ele lançou a Batalha pelo Trigo ou Batalha pelo Grão, uma política econômica que tinha o objetivo de “libertar” a Itália da dependência estrangeira. Não deu certo. A inflação aumentou e os estoques diminuíram enquanto os fascistas sugeriam que se comesse arroz.

Peça de propaganda fascista onde se lê: “Coma arroz. O arroz é saúde.” / Reprodução Newsletter Emiko Davies

Então, se massa é algo que os fascistas desprezavam, o amor pela pasta era automaticamente antifascista, lembra Emiko. E os membros da família Cervi, formada por Genoveffa e Alcide e seus sete filhos, levaram isso ao pé da letra.

Eles eram agricultores e também eram partisans – ou partigianos. Ou seja, apoiavam a luta antifascista. Por isso, quando souberam da prisão de Mussolini, montaram uma operação sem precedentes na cidade de Campegine, na Emilia-Romanha.  Eles ofereceram 370 quilos de massa para todos que quisessem celebrar a queda do regime. A pasta foi temperada com manteiga e queijo parmesão, ingredientes que hoje parecem simples, mas que naquele momento foram degustados como o que de mais caro havia. Era um momento em que os italianos viviam sob a brutalidade do fascismo, estavam exaustos, famintos, com os corpos e as almas quebrados. E a família Cervi ofereceu pasta, sim, mas também afeto, generosidade, acolhimento, alegria. Esperança. A polícia tentou dispersar os grupos porque ajuntamentos de mais de três pessoas eram proibidos desde 1931, mas nem os oficiais conseguiram resistir a um prato de euforia, a uma garfada de normalidade.

.

E assim, em meio a guerra, a pasta com manteiga e queijo parmesão se tornou um símbolo de liberdade e resistência

.

O jantar foi em 27 de julho de 1943, mas a Pasta Antifascista é celebrada hoje, dia 25, a data oficial do fim do Fascismo na Itália. Pelo menos até aquele momento. 

Retra
Retrato da família Cervi / Reprodução Newsletter Emiko Davies

Infelizmente, a história da Família Cervi não acabou em boa nota como essa história belíssima poderia indicar. Pouco mais de um mês depois do jantar, a Itália anunciou que não lutaria mais ao lado dos nazistas e Hitler ordenou uma caça aos “traidores” ao mesmo tempo em que eclodia uma guerra civil entre os Fascistas e os Partigianos. Alcide e os sete filhos foram presos em novembro daquele ano. Os irmãos foram executados um mês depois. O pai conseguiu escapar e só soube do destino dos rebentos quando chegou em casa. Em 1955, ele publicou um livro chamado “I miei sete figli”, em tradução livre, “Os meus sete filhos”. A história virou um filme de Gianni Puccini em 1968 chamado I sette fratelli Cervi.

Eu, que agora faço gosto em comer picanha e gosto menos de leite condensado, que na pressa do dia-a-dia já fiz muita massa puxada na manteiga com queijo parmesão, não conhecia o peso dessa receita. Mas que bom. Vão-se os fascistas e fica a pasta.

Raquel Grabauska

Por cem anos

Raquel Grabauska
21 de julho de 2023

Eu acredito num amor que dure cem anos – pelo menos cem. Acredito em dormir abraçado, acordar junto. Acredito em café na cama. Carinhos, muitos carinhos. Em bons assuntos. Cuidados. Delicadezas.

Acredito em verdades e em saber dizer as verdades. Não as do outro, as do outro a gente ouve. As nossas verdades. Sinceridade, com carinho, mas sinceridade. Acredito em dizer o que quero e o que sinto. Porque o outro não tem como me adivinhar. Não tem como e não tem porquê.

Acredito em reapaixonar mil vezes pela mesma pessoa. Pelo sorriso, pelo que fez ou que deixou de fazer. Em saber como foi o dia. Em ter uma comida gostosa pra se deliciar juntos. Com vinho. Carinho e vinho.

Acredito em dançar na sala, na rua. Sem pudor por estar feliz. Rir junto, rir do outro, rir de si.

Não sei como fazer isso por cem anos. Mas adoraria tentar.

 

Imagem por Gerd Altmann from Pixabay

Raquel Grabauska

As laranjas e as despedidas

Raquel Grabauska
14 de julho de 2023

O último pedido do meu irmão mais velho antes de morrer foi que eu levasse uma laranja para ele no hospital. Ele não chegou a comer e eu demorei muito a fazer as pazes com as laranjas. Agora, de vez em quando tem um dia que me dá uma gana de comer uma, como em homenagem a ele. Saboreio, lembro da nossa vida juntos, do churrasco e das comidas deliciosas que ele fazia, dele cantando comigo ou assobiando do jeito mais bonito e melancólico que já ouvi.

.

Esses tempos pude colher laranjas, muitas laranjas, e, nossa, como me fez bem

.

Enquanto colhia, conversava em silêncio com elas. E com ele. Nós nos divertimos muito nessa colheita, eu tinha muita coisa para contar. E as laranjas também gostaram das minhas histórias.

Distribui as laranjas para muitas pessoas queridas. Algumas viraram geleia. Algumas eu comi. Elas entenderam que não era pessoal, a dona laranjeira já deu os frutos que podia me dar esse ano. Ela vai se cuidar, se fortalecer e quando estiver pronta, se estiver pronta, novos frutos virão. Pensando na laranjeira sem laranjas, penso no assobio do meu irmão, mesmo que ele não esteja mais aqui. 

Image by Lakeblog from Pixabay

Raquel Grabauska

A criança no trem

Raquel Grabauska
7 de julho de 2023

Fazia muito tempo que não andava no trem. Remete a minha infância. Quando o Trensurb foi inaugurado, em 1985, meu pai me levou para passear. Anos depois, virou meu transporte até o colégio. Saía de Canoas, descia na rodoviária de Porto Alegre e caminhava até a UFRGS. É um lugar que mexe em lembranças.

Em cada estação entra uma pessoa diferente, vendendo itens diferentes. E claro que lembrei também – tô propensa a lembranças hoje –  da minha mãe. Quando meu pai morreu, ela passou a sustentar a gente vendendo salgados. Fazia um monte, enchia as sacolas e carregava aquele peso imenso. E no outro dia, tudo de novo.

Orgulho dessa mulher, saudade gigante. E, talvez por isso, cada vez que vejo alguém vendendo algo, desejo ter dinheiro para comprar. Aprendi a segurar o ímpeto, mas ainda não consegui modificar o sentimento.

Depois de passar um estudante universitário vendendo carregador de celular, um homem vendendo descascador de verduras lançado pela Ana Maria Braga, outro com bolinhas saltitantes e outros que tentei não olhar, chegou uma senhora bem idosa com uma caixinha de torrone na mão. Caminhava com um passinho calculado, cuidando para andar no momento certo, de acordo com o balanço do trem. 

.

Justo hoje, só tenho 50 centavos. O torrone custa um real

.

Aquele sentimento veio intenso e eu só pensava que queria ter os 20 reais que me dariam o direito de ter aqueles torrones todos. Daí pensei na minha pretensão e na imaturidade por não ter conseguido superar a infância, ainda.  

Alguém perguntou algo e ela: só tem mais seis. Nisso, um senhor perguntou se tinha sabor cebola. Ela deu alguns passinhos para perto dele, tentando entender, e ele repetiu, perguntou se tinha sabor cebola. Ela respondeu pacientemente que não. “É um delicioso torrone, feito de amendoinzinho. Só tem mais seis.” E ficou parada. Ele riu, se achando engraçadíssimo. Ela deu mais alguns passinhos e uma mulher se aproximou e comprou os seis que faltavam. 

Eu deixei de acompanhar os passinhos dela pra ficar olhar pra o idiota da cebola. A cebola me fez chorar. Disfarcei no trem em que eu voltei a ser criança.  

Imagem de Harald Meyer-Kirk por Pixabay

Raquel Grabauska

Os primeiros 50, a gente não esquece 

Raquel Grabauska
29 de junho de 2023

Um dia antes do meu aniversário de 50 anos, acontece o seguinte diálogo:

⁃ O Tigols morreu.

⁃ De novo?

⁃ Dessa vez, em definitivo.

O Tigols morreu. O Tigols IV, na verdade. Tigols é o peixe. Os Tigols I, II e III não tiveram o passamento anunciado, mas uma hora temos que amadurecer e eu consegui contar pra o meu filho que o Tigols morreu – que esse Tigols morreu, omiti os outros porque não temos que amadurecer tanto assim. Seguindo, fui fazer uma ecografia pra ver como estava um caroço no seio que descobri no ano passado, enquanto estava com COVID.

De repente, pensei: “Que que eu tô fazendo, cacilda?  O peixe morreu ontem, justo um dia antes de eu ver como tá o maldito caroço, e o resultado do maldito do caroço vai sair no dia dos meus 50 anos. Emblemático. Será que tudo isso aconteceu pra eu preparar o meu filho para as perdas? Ele estava na minha barriga quando minha mãe morreu e sempre é difícil, pra mim, falar de morte com ele.” Tudo isso meu cérebro pensou e meu corpo sentiu nos minutos em que fiquei deitada, esperando a médica me examinar.

A atendente me instruiu a deitar e esperar. Perguntou: alguém com câncer de mama na família? Eu: sim, minha tia. Morreu aos 36 anos. Ela: ah…parte de pai ou de mãe? Eu: mãe. Ela: ahhhh…

A médica chegou e eu tive vontade de pular no colo dela com um ataque de choro. Em vez disso, fiz um pedido: me dá um presente? Amanhã faço 50 anos. Preciso de uma notícia boa. Ela sorriu. Tenho certeza de que quis me abraçar. Disse: vou te dar, sim. Começou o exame. Com aquele gel gelado que já arrepia a alma, independente de bom ou mau presságio. Ela se demorou no lugar do caroço. Foi e voltou. E foi. E voltou. Parou, me olhou. Eu parei. Parei até de respirar. Ela: o caroço sumiu! Eu não sei se ela queria o abraço, mas abracei. E chorei.

O Tigols morreu e vamos lidar com isso. Amanhã completo 50 anos e vamos lidar com isso. Vivas pra mim! O caroço sumiu!

Imagem: Desenho do Tigols feito pelo Benjamin Gonzaga Grabauska

Geórgia Santos

Uma tentativa vã, mas bonita, de definir Rita Lee

Geórgia Santos
22 de maio de 2023

No dia em que ela morreu, eu retirei aquele livro da laranja da estante em que separo as obras por cor – uma pequena obsessão que não combina em nada com minha falta de organização. Rita Lee, uma autobiografia (2016), é absolutamente deliciosa. Uma ode honestíssima à própria liberdade escrita por uma mulher que foi esplendorosa, cantou demais, foi louca, fez muita merda, compôs lindamente, sofreu bastante, cuidou dos seus, desafiou poderosos, amou e amou e amou.

Recentemente, ela disse que o compêndio de capa cor de laranja era uma despedida da “persona ritalee”. Mas como que para manter a transparência, ela deixou no papel Outra autobiografia. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, diz ela em trecho do livro, divulgado quando anunciou o lançamento da nova obra. Pois o lançamento foi agendado para 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, também conhecido como hoje.

Ainda não li, mas está lá, na caneta da moça, os detalhes do tratamento contra um câncer de pulmão – cujo tumor ela descobriu em 2021, durante a pandemia, e apelidou de Jair – que acabou encurtando a vida da rainha do rock brasileiro.

Eu não sei se gosto desse título ou rótulo, como queiram, de rainha do rock brasileiro, atribuído subjetivamente em manchetes e lides que anunciavam sua morte, em 08 de maio deste ano. Não que ela não mereça o posto, óbvio que merece. Ninguém mais poderia ocupar esse lugar. Mas é que me parece impreciso. Aliás, em uma entrevista à revista Rolling Stone, em novembro de 2022, ela disse que achava cafona.

Imagem: Reprodução

Por isso, decidi me embrenhar em uma empreitada hercúlea e ingrata de tentar definir Rita Lee. Busquei uma resposta a partir do que ela disse sobre si ao longo dos anos. Lógico que falhei em encontrar UMA palavra que fosse suficiente, mas também fui esperta no processo e isso rendeu uma belíssima lista. Procurei em em entrevistas, canções, nos livros e em alguns dos mais engraçados tuítes da história desse país. Sim, tuítes. Como o de primeiro de agosto de 2011:

.

“Já disse e repito: não me levem a sério, sou falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.”

Que figura. Mas não ficaria bem escrever algo como: “Morre Rita Lee, uma falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.” Então continuei.

“E eu lá sou mulher de fazer back-up? Perdi tudo, foda-se eu. Ao atualizar o Iphone eu perdi tudo. Inclusive tudo mesmo. Véia jumenta.”

.

Isso também pegaria mal. Mas que é a cara dela, isso é. Alguém que em um belo dia resolveu fazer tudo o que queria fazer, libertando-se de uma vida vulgar e tendo o prazer de ser quem se é. Alguém que era Rita; Rito, o menino baiano; mutante; romântica; menina; mulher; Ritinha; neném que só sossega com beijinho; ovelha negra; baby; erva venenosa; caso sério; ciumenta; guerrilheira; ladra de botas; justiceira; caminhante noturna; ladra de anéis; Gininha; mulher macunaíma; Miss Brasil 2000; luz del fuego; Rita Lica; fruta; Madame Lee; filha; Adelaide Adams; maçã; traficante de colar de LSD; TV Lesão; folclore; irmã; cigarra; Lita Ree; pergunta; ex-AA; fofa; ex-NA; perseguida; licor; ex-presidiária; injustiçada; uma cantora sutil; feminista; feminina; louca; pau pra toda obra; cantora; compositora; instrumentista; vaca; mais macho que muito homem; rainha do próprio tanque; pagu indignada no palanque; porra louca; véia; vaidosa; paulista; paulistana; com nervos de aço; fazedora de barulho; falsa; vovó; Aníbal; corinthiana; chata; viciada em uva-passa; sharon stone; mãe; rolling stone; cabrinha; caprichosa; capricórnia; rainha; esposa; Deus; todas as mulheres do mundo; semente. Semente. Semente.

É realmente difícil definir Rita Lee e, talvez, o prosaico Rainha do Rock atenda melhor às necessidade da mídia tradicional que precisa comunicar ao grande público o tamanho de uma grande mulher. Mas eu não quero desistir, assim como não quero ceder à escolha editorial do G1. Decido, então, recorrer a ele.

.

“O Roberto é a Rita também, a Rita é o Roberto também. Em vida ou em morte, tanto em uma circunstância quanto em outra, eu continuo sendo ela e ela continua sendo eu.”

.

Roberto de Carvalho é o grande amor de Rita Lee e talvez a única pessoa com autoridade para dizer aos brasileiros quem ela é. Em uma entrevista ao Fantástico, no dia seguinte ao enterro da cantora, ele lembrou da parceira como alguém cheia de vida, de criatividade, de alegria. Ele disse que ela era iluminada.

Está dito, então. Rita é luz.

Mas, por via das dúvidas, vou ler o novo livro em busca das outras personas da rainha fragmentada.

_____

Imagem de capa: Reprodução / Instagram

Raquel Grabauska

Pílula de força para uma mãe

Raquel Grabauska
16 de abril de 2023

Tenho me sentido frágil. Por vários motivos, tenho me sentido muito frágil. Mas ontem eu me senti forte e fazia muito tempo que não me sentia assim.

Pois acontece que os guris – Benjamin e o Tom, meus filhos de quase 12 e nove anos respectivamente – tiveram aula o dia todo e os dois estavam muito cansados. O menor me contou que o dia tinha sido ruim, e normalmente gosta dos dias. O ápice da ruindade do dia foi quando o melhor amigo, sem querer, deu uma cotovelada no rosto dele. E o pior, “ele não sabe nem pedir desculpas direito”, me disse.

A coisa já não estava fácil quando a gata se esgueirou para trás dele e, como naqueles dias em que acordamos com o pé esquerdo, o pé esquerdo dele pisou na gata acidentalmente e ela reagiu instintivamente retribuindo a pisada no pé dele. Nem marcou o pé, mas a alma, meus amigos, essa doeu. Ele pediu beijo para curar. Ganhou vários. Curamos.

Depois, os três assistimos a um vídeo de uma bobagem que eles estão vendo só para debochar. Quando me contaram o que era, expliquei que achava perda de tempo ver algo que consideram idiota só pra gozação. Mas o maior me disse que aquilo é tão ruim que chega a ficar bom e eu acabei vendo três episódios com eles e agora estou louca para que chegue o fim do dia de hoje para repetirmos o programa. Riso frouxo cura a alma também. Curamos.

O mais velho estava atirado no sofá. Em nove dias, vira oficialmente adolescente – torçam por mim! -, ainda assim, me disse: tu pode ler uma história pra gente? Eu ri. Quase 12 e ama ler. O de nove correu, acendeu a luz e escolheu um livro: A Menina do Cabelo Vermelho, de Lolita Goldschmidt. Ele comparou com o próprio cabelo e se divertiu. Adormeceram me ouvindo. Que super-poder, esse.

Em tempos de ameaças e atentados em escolas, de bueiros abertos para os fascistas saírem, de ódio disseminado por Fake News, uma boa história para ninar os filhos é uma pílula de sanidade e força para qualquer mãe.

Imagem de capa: Pixabay / Montagem com ilustração de Benjamin Grabauska