Andanças

A mesa vazia de João

Geórgia Santos
31 de julho de 2023

Em uma festa de São João com 1500 pessoas, me vejo sozinha. Não fica triste, eu não estou. É puramente circunstancial. Minha mãe está ocupada vendendo crepes, as crianças estão correndo feito maníacas, os amigos próximos já foram embora e eu resolvi ficar em solidariedade à matriarca trabalhadora. Mas não é fácil.

De início, fiquei meio sem jeito e decidi me empenhar em parecer estar fazendo algo com propósito: resolvi comer amendoim.  A concentração em quebrar a casca é aparência de ocupação o suficiente para dar a sensação de tudo está sob controle, de que eu estou perfeitamente confortável na posição de guardadora de casacos e tênis e brindes da pesca. Mas os amendoins acabaram mais rápido do que eu havia previsto e, de repente, eu me transformei em uma estranha olhando para os lados.

A essa altura você já deve estar se perguntando onde estava meu celular, lógico. Pois eu respondo: sem sinal. E eu sou daquelas pessoas que se levam muito a sério e não tem nenhum joguinho instalado pra curtir offline. Meu guilty pleasure é um entediante sudoku que eu acesso na página do NYT – sim, eu sei, que preguiça. Mesmo assim, resolvi tentar a sorte com o Kindle. E dei sorte, de fato, uma sorte que eu jamais tive na pesca das festinhas desta escola. Estava à minha disposição a biografia do Jô Soares. Então, troquei o amendoim pelo livro e comecei a ler, super compenetrada, parecendo uma pessoa detestável que não consegue se divertir ou se conectar com outras pessoas em uma festa de São João.

Em minha defesa, neste tipo de evento as pessoas andam em duplas ou bandos fechados. É uma verdade universal, mas especialmente verdade em uma cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul. Isso significa que se a gente já não conhece um dos membros do grupo, a associação não é recomendável. E o fato de eu estar sem óculos impede uma busca ativa, afinal, não posso deixar meu posto de chapeleira. Portanto, sim, ler me parece a melhor opção para não parecer uma coitada. Tarde demais?

Na segunda página da noite, uma letrinha do Jô: “Um escritor se forma não só lendo bastante, mas prestando muita atenção nas pessoas, na experiência que elas transmitem, naquilo que viveram.” Fiquei com vergonha. Era isso que eu deveria estar fazendo. Observando, tentando entender. Sou jornalista e cientista política, meu Deus. No meu diploma tá lá um doutorado em ciências sociais.

Eu esqueci, por um segundo, iludida pela cosmovisão do Jô Soares, que não se fica olhando para as pessoas em festa de cidade pequena.

Jô era um homem viajado e o conselho dele é o mesmo de qualquer escritor, jornalista ou alguém que se preste a observar o cotidiano. Ele não está errado. Mas em cidade pequena, não se observa as pessoas assim, de forma escancarada. O correto é elas costas e, de preferencia, com o o objetivo final de alimentar alguma fofoca.  Se eu guardar meu telefone e simplesmente ficar observando as pessoas em plena luz da lâmpada é possível que eu vá parar na cadeia. E não a da festa. Meu marido conta de uma das primeiras vezes em que ele foi caminhar pela cidade, as pessoas foram tao hostis a presença de uma pessoa desconhecida que ele ficou com medo de ser denunciado por algo horrível, algo muito pior que caminhar de camiseta laranja. Por isso eu resolvi comprar o terceiro quentão e mais amendoim. Mas acabou o amendoim, então só bebi o quentão.

E como tudo sempre pode piorar, as pessoas que ocupavam a mesma mesa que eu se retiram e vão embora. E ninguém ocupa seis lugares, que agora são onze. Isso significa que eu agora estou sentada à ponta da única mesa que não está cheia. Afinal, eu não já não estava chamando atenção o suficiente. Uma mulher sozinha, bebendo quentão, cuidando para que casacos de crianças nao sejam roubados, junto de uma bolsinha rosa e lilás, dois pares de tênis pequenos, um par de meias sujas e dois cartuchos de amendoim açucarado.  E escrevendo loucamente em um celular como se fosse uma máquina de escrever. Preciso de uma água, não sei se pelo calor do quentão ou da vergonha.

Quando eu chego no bar, o Júnior, um amigo, brinca: água, Geórgia? Não vai beber vinho?

E assim, num passe de mágica, entendi o furo da minha tese mal acabada. O problema não é a cosmovisão do Jô ou mesmo a minha, o problema é aqui eu posso até parecer uma solitária misteriosa, mas eu não sou. Se eu espichar o olhar, encontro o Pônei, um ex-policial supostamente envolvido em atividades ilícitas. “Sempre aquela”, me diz uma. “Nossa, que diferente que tu tá”, me diz outra. Na cozinha, tem as profes que me deram aula me abraçando carinhosamente, as tias da merenda me atirando beijo – as que não se aposentaram pois não mais criança. Eu conheço o cara de boné, só não lembro o nome dele. Ali tá o advogado da minha tia, casado com minha ex-professora de História. Lembrei, o cara de boné é o irmão da Juliane e da Jucilene. Acho que esse que passou de cachecol é pai de um menino com quem eu já fiquei em 1912. Putz, era o irmão dele também. Corei.

Do nada, um casal sentou à minha frente. Ele estava muito bêbado. Ela era tímida e obviamente submissa. Ele perguntou se eu sou de Paraí e eu disse que sim. Ele respondeu que não, que eu nao sou de Paraí. Então ele perguntou de novo, e eu, de novo, disse que sim, que eu sou Paraí. Ele indagou há quanto tempo me mudei e eu expliquei que nasci aqui. Ele duvidou, dizendo que mora aqui há 40 anos e não sabe quem eu sou. Eu expliquei que moro em Porto Alegre. “Logo vi que tu era de Porto Alegre.” Mas eu nao sou de Porto Alegre, sou daqui. Nao sou uma estranha misteriosa. 

Ele não gostou do meu nome, e disse  o dele era mais bonito. Ele ficou gesticulando e eu notei que alguém achou engraçado que ele tenha sentado à mesa comigo. Um casal riu, cochichou, ele não entendeu. Nisso, o Pônei se levantou e cochichou ao ouvido do casal. Riu também. Eu me constrangi, baixei a cabeça  e voltei e digitar este  texto. Nesse meio tempo, Vilmar do nome bonito fez uma espécie de mímica para os amigos, que riram. Notei que ele derrubou água ou cerveja nos meus amendoins. Que ódio, eles estão ensopados. Ele levantou da mesa e saiu sem se despedir. A namoradinha coitadinha fez o mesmo. Ele havia se sentado para comer amendoins sequinhos, mas talvez o fato de eu ter me fechado o tenha constrangido. Virou um concurso de constrangimento, aparentemente. Agora ele emporcalha o chão com cascas de amendoim como se fosse normal, como se não houvesse saquinhos, como se não houvesse latas de lixo, como se a culpa fosse minha, como se a mesa não fosse gigante, como se não tivesse sido escolha dele sair dali.

Mas lá se vai mais uma tese mal acabada na noite. A segunda em um texto só. Eu ia dizer que um jornalista pode e deve observar, mesmo em cidade pequena. Porque o problema nao é o tamanho do lugar, o problema é o pertencimento. O problema é fazer isso na nossa cidade pequena. Mas eu estou aqui observando e observando e contando pra vocês ao mesmo tempo em que tento manter a pose de uma Hemingway torta e nada misteriosa que trocou o gin por quentão e Paris por Paraí.


E é isso que eu vou fazer nesse espaço, contar pra vocês o que eu vejo por aí. O que não estava na pauta, o que não estava previsto, o que apareceu pelo meu caminho sem que eu estivesse preparada. Vou compartilhar com vocês minhas andanças. Ou, no caso da festa de São João em Paraí, minhas paranças.

Raquel Grabauska

Por cem anos

Raquel Grabauska
21 de julho de 2023

Eu acredito num amor que dure cem anos – pelo menos cem. Acredito em dormir abraçado, acordar junto. Acredito em café na cama. Carinhos, muitos carinhos. Em bons assuntos. Cuidados. Delicadezas.

Acredito em verdades e em saber dizer as verdades. Não as do outro, as do outro a gente ouve. As nossas verdades. Sinceridade, com carinho, mas sinceridade. Acredito em dizer o que quero e o que sinto. Porque o outro não tem como me adivinhar. Não tem como e não tem porquê.

Acredito em reapaixonar mil vezes pela mesma pessoa. Pelo sorriso, pelo que fez ou que deixou de fazer. Em saber como foi o dia. Em ter uma comida gostosa pra se deliciar juntos. Com vinho. Carinho e vinho.

Acredito em dançar na sala, na rua. Sem pudor por estar feliz. Rir junto, rir do outro, rir de si.

Não sei como fazer isso por cem anos. Mas adoraria tentar.

 

Imagem por Gerd Altmann from Pixabay

Raquel Grabauska

A criança no trem

Raquel Grabauska
7 de julho de 2023

Fazia muito tempo que não andava no trem. Remete a minha infância. Quando o Trensurb foi inaugurado, em 1985, meu pai me levou para passear. Anos depois, virou meu transporte até o colégio. Saía de Canoas, descia na rodoviária de Porto Alegre e caminhava até a UFRGS. É um lugar que mexe em lembranças.

Em cada estação entra uma pessoa diferente, vendendo itens diferentes. E claro que lembrei também – tô propensa a lembranças hoje –  da minha mãe. Quando meu pai morreu, ela passou a sustentar a gente vendendo salgados. Fazia um monte, enchia as sacolas e carregava aquele peso imenso. E no outro dia, tudo de novo.

Orgulho dessa mulher, saudade gigante. E, talvez por isso, cada vez que vejo alguém vendendo algo, desejo ter dinheiro para comprar. Aprendi a segurar o ímpeto, mas ainda não consegui modificar o sentimento.

Depois de passar um estudante universitário vendendo carregador de celular, um homem vendendo descascador de verduras lançado pela Ana Maria Braga, outro com bolinhas saltitantes e outros que tentei não olhar, chegou uma senhora bem idosa com uma caixinha de torrone na mão. Caminhava com um passinho calculado, cuidando para andar no momento certo, de acordo com o balanço do trem. 

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Justo hoje, só tenho 50 centavos. O torrone custa um real

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Aquele sentimento veio intenso e eu só pensava que queria ter os 20 reais que me dariam o direito de ter aqueles torrones todos. Daí pensei na minha pretensão e na imaturidade por não ter conseguido superar a infância, ainda.  

Alguém perguntou algo e ela: só tem mais seis. Nisso, um senhor perguntou se tinha sabor cebola. Ela deu alguns passinhos para perto dele, tentando entender, e ele repetiu, perguntou se tinha sabor cebola. Ela respondeu pacientemente que não. “É um delicioso torrone, feito de amendoinzinho. Só tem mais seis.” E ficou parada. Ele riu, se achando engraçadíssimo. Ela deu mais alguns passinhos e uma mulher se aproximou e comprou os seis que faltavam. 

Eu deixei de acompanhar os passinhos dela pra ficar olhar pra o idiota da cebola. A cebola me fez chorar. Disfarcei no trem em que eu voltei a ser criança.  

Imagem de Harald Meyer-Kirk por Pixabay