Andanças

A mesa vazia de João

Geórgia Santos
31 de julho de 2023

Em uma festa de São João com 1500 pessoas, me vejo sozinha. Não fica triste, eu não estou. É puramente circunstancial. Minha mãe está ocupada vendendo crepes, as crianças estão correndo feito maníacas, os amigos próximos já foram embora e eu resolvi ficar em solidariedade à matriarca trabalhadora. Mas não é fácil.

De início, fiquei meio sem jeito e decidi me empenhar em parecer estar fazendo algo com propósito: resolvi comer amendoim.  A concentração em quebrar a casca é aparência de ocupação o suficiente para dar a sensação de tudo está sob controle, de que eu estou perfeitamente confortável na posição de guardadora de casacos e tênis e brindes da pesca. Mas os amendoins acabaram mais rápido do que eu havia previsto e, de repente, eu me transformei em uma estranha olhando para os lados.

A essa altura você já deve estar se perguntando onde estava meu celular, lógico. Pois eu respondo: sem sinal. E eu sou daquelas pessoas que se levam muito a sério e não tem nenhum joguinho instalado pra curtir offline. Meu guilty pleasure é um entediante sudoku que eu acesso na página do NYT – sim, eu sei, que preguiça. Mesmo assim, resolvi tentar a sorte com o Kindle. E dei sorte, de fato, uma sorte que eu jamais tive na pesca das festinhas desta escola. Estava à minha disposição a biografia do Jô Soares. Então, troquei o amendoim pelo livro e comecei a ler, super compenetrada, parecendo uma pessoa detestável que não consegue se divertir ou se conectar com outras pessoas em uma festa de São João.

Em minha defesa, neste tipo de evento as pessoas andam em duplas ou bandos fechados. É uma verdade universal, mas especialmente verdade em uma cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul. Isso significa que se a gente já não conhece um dos membros do grupo, a associação não é recomendável. E o fato de eu estar sem óculos impede uma busca ativa, afinal, não posso deixar meu posto de chapeleira. Portanto, sim, ler me parece a melhor opção para não parecer uma coitada. Tarde demais?

Na segunda página da noite, uma letrinha do Jô: “Um escritor se forma não só lendo bastante, mas prestando muita atenção nas pessoas, na experiência que elas transmitem, naquilo que viveram.” Fiquei com vergonha. Era isso que eu deveria estar fazendo. Observando, tentando entender. Sou jornalista e cientista política, meu Deus. No meu diploma tá lá um doutorado em ciências sociais.

Eu esqueci, por um segundo, iludida pela cosmovisão do Jô Soares, que não se fica olhando para as pessoas em festa de cidade pequena.

Jô era um homem viajado e o conselho dele é o mesmo de qualquer escritor, jornalista ou alguém que se preste a observar o cotidiano. Ele não está errado. Mas em cidade pequena, não se observa as pessoas assim, de forma escancarada. O correto é elas costas e, de preferencia, com o o objetivo final de alimentar alguma fofoca.  Se eu guardar meu telefone e simplesmente ficar observando as pessoas em plena luz da lâmpada é possível que eu vá parar na cadeia. E não a da festa. Meu marido conta de uma das primeiras vezes em que ele foi caminhar pela cidade, as pessoas foram tao hostis a presença de uma pessoa desconhecida que ele ficou com medo de ser denunciado por algo horrível, algo muito pior que caminhar de camiseta laranja. Por isso eu resolvi comprar o terceiro quentão e mais amendoim. Mas acabou o amendoim, então só bebi o quentão.

E como tudo sempre pode piorar, as pessoas que ocupavam a mesma mesa que eu se retiram e vão embora. E ninguém ocupa seis lugares, que agora são onze. Isso significa que eu agora estou sentada à ponta da única mesa que não está cheia. Afinal, eu não já não estava chamando atenção o suficiente. Uma mulher sozinha, bebendo quentão, cuidando para que casacos de crianças nao sejam roubados, junto de uma bolsinha rosa e lilás, dois pares de tênis pequenos, um par de meias sujas e dois cartuchos de amendoim açucarado.  E escrevendo loucamente em um celular como se fosse uma máquina de escrever. Preciso de uma água, não sei se pelo calor do quentão ou da vergonha.

Quando eu chego no bar, o Júnior, um amigo, brinca: água, Geórgia? Não vai beber vinho?

E assim, num passe de mágica, entendi o furo da minha tese mal acabada. O problema não é a cosmovisão do Jô ou mesmo a minha, o problema é aqui eu posso até parecer uma solitária misteriosa, mas eu não sou. Se eu espichar o olhar, encontro o Pônei, um ex-policial supostamente envolvido em atividades ilícitas. “Sempre aquela”, me diz uma. “Nossa, que diferente que tu tá”, me diz outra. Na cozinha, tem as profes que me deram aula me abraçando carinhosamente, as tias da merenda me atirando beijo – as que não se aposentaram pois não mais criança. Eu conheço o cara de boné, só não lembro o nome dele. Ali tá o advogado da minha tia, casado com minha ex-professora de História. Lembrei, o cara de boné é o irmão da Juliane e da Jucilene. Acho que esse que passou de cachecol é pai de um menino com quem eu já fiquei em 1912. Putz, era o irmão dele também. Corei.

Do nada, um casal sentou à minha frente. Ele estava muito bêbado. Ela era tímida e obviamente submissa. Ele perguntou se eu sou de Paraí e eu disse que sim. Ele respondeu que não, que eu nao sou de Paraí. Então ele perguntou de novo, e eu, de novo, disse que sim, que eu sou Paraí. Ele indagou há quanto tempo me mudei e eu expliquei que nasci aqui. Ele duvidou, dizendo que mora aqui há 40 anos e não sabe quem eu sou. Eu expliquei que moro em Porto Alegre. “Logo vi que tu era de Porto Alegre.” Mas eu nao sou de Porto Alegre, sou daqui. Nao sou uma estranha misteriosa. 

Ele não gostou do meu nome, e disse  o dele era mais bonito. Ele ficou gesticulando e eu notei que alguém achou engraçado que ele tenha sentado à mesa comigo. Um casal riu, cochichou, ele não entendeu. Nisso, o Pônei se levantou e cochichou ao ouvido do casal. Riu também. Eu me constrangi, baixei a cabeça  e voltei e digitar este  texto. Nesse meio tempo, Vilmar do nome bonito fez uma espécie de mímica para os amigos, que riram. Notei que ele derrubou água ou cerveja nos meus amendoins. Que ódio, eles estão ensopados. Ele levantou da mesa e saiu sem se despedir. A namoradinha coitadinha fez o mesmo. Ele havia se sentado para comer amendoins sequinhos, mas talvez o fato de eu ter me fechado o tenha constrangido. Virou um concurso de constrangimento, aparentemente. Agora ele emporcalha o chão com cascas de amendoim como se fosse normal, como se não houvesse saquinhos, como se não houvesse latas de lixo, como se a culpa fosse minha, como se a mesa não fosse gigante, como se não tivesse sido escolha dele sair dali.

Mas lá se vai mais uma tese mal acabada na noite. A segunda em um texto só. Eu ia dizer que um jornalista pode e deve observar, mesmo em cidade pequena. Porque o problema nao é o tamanho do lugar, o problema é o pertencimento. O problema é fazer isso na nossa cidade pequena. Mas eu estou aqui observando e observando e contando pra vocês ao mesmo tempo em que tento manter a pose de uma Hemingway torta e nada misteriosa que trocou o gin por quentão e Paris por Paraí.


E é isso que eu vou fazer nesse espaço, contar pra vocês o que eu vejo por aí. O que não estava na pauta, o que não estava previsto, o que apareceu pelo meu caminho sem que eu estivesse preparada. Vou compartilhar com vocês minhas andanças. Ou, no caso da festa de São João em Paraí, minhas paranças.

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Bendita Sois Vós #79 O novo velho normal

Tércio Saccol
17 de novembro de 2022

Nesta semana, o governo do Brasil. O novo normal – ou o velho normal. E ainda, o futuro dos movimentos golpistas.

Pouco mais de duas semanas desde o resultado da eleição, o incumbente Jair Bolsonaro segue desaparecidos. Há relatos de que estaria com uma infecção na perna e mesmo deprimido. Fato é que não atua como presidente do Brasil desde o dia 30 de outubro. Mas não há vácuo no poder, não. Já temos um novo governo Lula.

A transição comandada por Geraldo Alckmin é entediante como deve ser e um excelente retorno à normalidade. Sem agressividade, ofensas ou abusos, sem misoginia, homofobia ou pura e simples grosseria. Há problemas a se apontar? Sim. Problemas normais, uma lufada de ar fresco.

Quanto à Lula, é a estrela da COP-27, no Egito. Não que o presidente eleito já não esteja envolvido em polêmicas, está. Alguns questionamentos são válidos, como a carona em avião de empresário. Outros, como o custo da roupa de Janja, apenas um indicativo de que vida de Lula não será moleza daqui para frente. Ainda assim, estamos aqui discutindo a sugestão do novo presidente de a COP de 2025 ser realizada na Amazônia, e não a recomendação de se fazer cocô dia sim, dia não.

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

 

Vós Pessoas no Plural · Bendita Sois Vós #79 O novo normal
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Bendita Sois Vós #71 Mente que nem sente

Geórgia Santos
24 de agosto de 2022

Você, ouvinte assíduo do Bendita Sois Vós, já sabe do quê e de quem estamos falando. Mas aposto que você que está chegando ao Bendita pela primeira vez também tem uma ideia do que se trata: a entrevista de Jair Bolsonaro (PL) ao Jornal Nacional, da Rede Globo.

O telejornal mais importante da TV brasileira começou uma série de entrevistas com os candidatos à presidência e a estreia foi com o incumbente. O principal adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), será entrevistado na quinta-feira. E a estreia começou como se esperava.

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Durante os 40 minutos em que William Bonner e Renata Vasconcelos entrevistaram Bolsonaro, ele mentiu consistentemente

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Os jornalistas colocaram o dedo na ferida em diversas questões como eventual golpe, compromisso com eleições, corrupção e ainda a péssima atuação de Bolsonaro durante a pandemia. Ele mentiu, tergiversou, mas não se comprometeu a respeitar o resultado das eleições e disse que não teve nada de errado com o comportamento dele, que é politicamente incorreto.

Bonner e Renata contestaram algumas das mentiras, o que foi bastante importante, especialmente depois do fiasco do Kit Gay em 2018. Para uma parte do público, os jornalistas foram adequados, para outra parte, eles falharam.

Há quem pense que Bolsonaro saiu enfraquecido, há quem pense que saiu fortalecido. Nas redes sociais, sentiu-se falta de abordar temas como a fome e o orçamento secreto, além de Queiroz e dos cheques de Michelle. Por outro lado, foi possível perceber que muita gente  não sabia que Bolsonaro tinha imitado pessoas com falta de ar durante o auge da pandemia de Covid-19.

A única certeza é que, goste ou não, o Jornal Nacional continua influente. Enquanto a entrevista de Bolsonaro no Flow Podcast, por exemplo, teve 600mil visualizações ao vivo, o JN foi assistido por mais de 6 milhões de pessoas somente em São Paulo. A boa e velha TV ainda tem poder.

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

 

Vós Pessoas no Plural · Bendita Sois Vós #71 Mente que nem sente
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Por uma vacina contra a desinformação

Tércio Saccol
13 de julho de 2022
Campanhas e mentiras ameaçam vacinação infantil

Mentiras e falta de engajamento ameaçam vacinação infantil no país

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Por Flávia Cunha, Geórgia Santos e Tércio Saccol (Última atualização em 15/11/22)

Imagine uma criança com fortes dores de cabeça, fadiga persistente, dores nas articulações, problemas respiratórios de toda a sorte, erupções na pele e palpitações cardíacas. É desesperador. Trata-se de um quadro consistente com os sintomas do que se chama de Covid longa. Cientistas da University College de Londres (UCL), no Reino Unido, foram os primeiros a oferecer uma definição padronizada para esta condição. Segundo ele, é um conjunto de sintomas que prejudicam o bem-estar físico, mental ou social das crianças e persistem por pelo menos 12 semanas após o primeiro teste positivo para covid-19. Algo bastante diferente de um resfriado leve ou gripezinha. E este nem é o pior cenário, afinal, a doença pode matar.

Segundo dados do grupo Observa Infância, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Covid-19 matou duas crianças com menos de cinco anos por dia no país. Ao todo, 599 crianças nessa faixa etária faleceram pela Covid-19 em 2020. E em 2021, quando a letalidade aumentou em toda a população, o número de vítimas infantis saltou para 840. Isso sem contabilizar os dados deste ano.

“Perder uma só criança para uma doença que tem vacina, é uma imensa tragédia”, desabafa Akira Homma, assessor científico sênior de Bio-Manguinhos/Fiocruz. E por essa lógica, sensível e precisa, o Brasil testemunha imensas tragédias todos os dias, porque já há imunizantes disponíveis e, mesmo assim, muitos pais se recusam a vacinar seus filhos. E o problema é ainda maior do que se imagina, porque não é apenas a vacina contra a Covid que vem caindo de popularidade. A cobertura vacinal para doenças já erradicadas cai de maneira expressiva há alguns anos. Os motivos são múltiplos, mas, de acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, a desinformação encabeça a lista.

“A Anvisa, lamentavelmente, aprovou a vacina para crianças entre 5 e 11 anos de idade. A minha opinião que eu quero dar para você aqui: a minha filha de 11 anos não será vacinada. E você vai vacinar teu filho? Contra algo que o jovem, por si só, uma vez pegando o vírus, a possibilidade dele morrer é quase zero? O que que tá por trás disso? Qual é o interesse da Anvisa por trás disso daí? Qual o interesse daquelas pessoas taradas por vacina, é pela sua vida?”

Jair Bolsonaro, 2022

Desde que o debate sobre a vacinação infantil contra a Covid começou, o governo federal manifestou ressalvas e críticas ao imunizante para crianças. Mesmo seis meses depois da imunização de crianças de 5 a 11 anos contra a Covid ter sido aprovada pela ANVISA, quase 40% deste público não tomou sequer a primeira dose. Isso de acordo com os dados do próprio Ministério daSaúde. “Quando uma autoridade também fala sobre o problema de vacinação, quando uma autoridade da República fala que quem se vacinar vai virar crocodilo, tem uma população que segue a liderança. É um prejuízo à saúde pública enorme”, ressalta Akira Homma.

O presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações e membro do Comitê de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, Juarez Cunha, analisa que esses discursos institucionais e o acirramento da polarização contribuem para diminuir a confiança da população nos imunizantes. “A polarização acabou gerando uma desconfiança na ciência. Isso nunca tinha sido visto. Tanto que assim, a cobertura vacinal de primeira dose contra a Covid no Brasil não chega a 65%. Quantos não internaram? Em quantos não foi feito o diagnóstico? O nosso número de óbitos em crianças e adolescente é 15 vezes maior, por Covid, do que as crianças americanas. Uma doença que já é considerada imunoprevenível para formas graves”, diz.

E mesmo que a vacina contra a Covid tenha gerado um debate mais visível, principalmente por causa das mais de 671 mil vidas perdidas, o fenômeno é bem mais amplo.

Há vários elementos que contribuem para aumentar o poder da desinformação para além do emissor, e um deles é a velocidade com que podemos trocar mensagens sem qualquer filtro, turbinando o acesso às versões dos fatos e não aos fatos. É possível que você tenha encontrado mais desinformação especificamente sobre vacinação infantil do que sobre própria vacinação em geral. A publicitária Clarissa Barreto, de 43 anos deparou com muitas mentiras nas redes sociais. Mas a mãe do Rafael, que tem oito anos, se assustou mais com o que ouviu pessoalmente. “Eu acho que na primeira vez que eu ouvi falar que alguém era anti-vacina, o meu filho tinha a mesma idade do filho dessa pessoa e ela não era “anti” todas as vacinas, ela era contra algumas vacinas específicas, porque rolava uma Fake News de que causava autismo, enfim. E eu não sabia que ela era anti-vacina e ela me pediu uma indicação de pediatra. Eu passei para minha pediatra e daí a minha pediatra atendeu ela e no final a pessoa disse que não queria vacinar o filho com algumas vacinas. Eu lembro que a minha pediatra disse que deveria existir o nome de “filicídio” para isso. Porque tu não querer vacinar o teu filho é tu expor o teu filho à morte”, disse.

Pois o termo filicídio existe e se refere justamente ao pai ou mãe que mata o próprio filho ou ao ato em si. Mas pode parecer uma expressão forte demais para quem não percebe a gravidade do problema. Certamente soa como injusta aos pais que são levados a crer que estão protegendo os seus filhos.

A reportagem conversou com alguns pais e mães que não quiseram vacinar os próprios filhos em off, por isso eles não serão identificados, mas a resposta mais comum é que os filhos não serão cobaias de imunizantes experimentais, embora não seja o caso da vacina contra a Covid, que já passou dessa fase e foi aprovada pelos órgãos competentes. Outro argumento é uma espécie de pesagem de prós e contras. Esses pais entendem que os riscos da vacinação são maiores que os riscos da doença, ignorando o fato de que milhares de crianças já morreram em função do coronavírus e nenhuma faleceu em decorrência da vacinação.

No caso específico da Covid, na avaliação do médico Fabrizio Mota, que atua como supervisor médico do Controle de Infecção e Infectologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre, há um erro estratégico na comunicação. “Acho que na pediatria, o primeiro aspecto é que foi feito uma análise incorreta do impacto da doença nas crianças. Sempre, desde o início da pandemia, olhava-se os números das crianças proporcionalmente a dos adultos e idosos. E a gente não pode fazer isso, é um erro de análise muito grave. E todos nós fizemos. A gente deveria olhar a mortalidade infantil pela Covid não comparando com idoso, mas sim mortalidade infantil causada pelo vírus da influenza, pelo adenovírus, pelos outros vírus respiratórios ou outras doenças infecciosas em pediatria. E quando a gente olha esses números, eu comparei os números da Covid em crianças abaixo de 5 anos no ano passado, 2021, com a média de óbitos que a gente tinha por influenza e eu vi que a gente tinha em média três a cinco óbitos anuais no Estado do Rio Grande do Sul, abaixo de cinco anos. E quando a gente olha a Covid em 2021, a gente teve em torno de 14 óbitos nessa faixa etária.”

E essa ameaça, esse senso de que a doença pode efetivamente afetar a nossa vida é algo importante para nos manter mobilizados. Se por um lado a Covid se manteve como uma pauta ativa nos noticiários, outras doenças ficaram um pouco de lado. Além disso, tem o valor investido na comunicação. Um dado levantado pelo site Repórter Brasil junto ao governo mostrou que em 2021 o governo gastou 52% a menos nas campanhas da gripe e multivacinação do que no ano anterior. “As campanhas de vacinação não tem sido apoiadas por campanhas de informação que sejam suficientemente agressivas. Eu não sei se a palavra agressiva é muito forte, mas suficientemente fortes e específicas a convencer a população para se vacinar”, diz o Dr. Akira Homma.

Mas tem mais. Constância é uma variável enorme para a efetividade dessas campanhas, como lembra Patrícia Blanco, Presidente do Instituto Palavra Aberta, que busca promover educação midiática e acesso a informação. Segundo ela, novos pais, com novas visões de educação, surgem a cada momento. Ou seja, as conquistas de informação não estão simplesmente dadas. “Comunicação é constância”, pontua Patrícia, indicando que quando o assunto é comunicação de interesse público, não se pode considerar que o problema está resolvido.

“Todo dia nascem novas pessoas, todo dia a gente tem novas gerações de pais de mães que chegam e que começam a se questionar. E a gente baixou a guarda no momento em que não poderia baixar, porque a gente via crescer o número de movimentos anti-vacina”, explicou. Baixou-se a guarda a partir de uma ideia de que a população brasileira já tinha uma cultura vacinal apropriada, propícia para receber esse processo de vacinação, que aceitava a vacinação como sendo mandatória, mas era uma ilusão. Segundo o Dr. Akira Homma, a cobertura vacinal vem caindo no Brasil há anos. “A queda da vacinação já estava acontecendo há uns cinco anos. A pandemia só acentuou essa queda.” Ou seja, a Covid não é o nascedouro dessa queda dos dados, é só mais um contexto modificador.

O movimento de desinformação acentua uma queda já verificada nos últimos anos nos índices vacinais entre crianças

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Juarez Cunha, que atua na Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul e na Sociedade Brasileira de Imunizações explica alguns fatores que são fundamentais para consolidar esse contexto. São chamados de os três Cês: Complacência, Conveniência e Confiança

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Complacência se refere às doenças que as pessoas não conhecem, não viram, justamente porque foram vacinadas e daí elas acham que não precisam se vacinar ou vacinar seus filhos. Então esse é um exemplo da pólio e do sarampo, que acabou voltando pelas baixas coberturas vacinais. Conveniência é mais relacionado com a estrutura física da nossa rede, dos nossos quase 40 mil postos de vacinação, salas de vacinação que a gente chama no Brasil. Estrutura física, horário de atendimento e Recursos Humanos. Então, a gente teve uma desvalorização dos nossos profissionais da rede. A pandemia deu uma segurada nisso porque a tendência é que com certeza seria mais desvalorizada e mais sucateado, o nosso SUS e o nosso PNI. E a Confiança passa muito pelo produto. Então tu tem que ter confiança na eficácia e na segurança. E tu tem que saber explicar isso. Agora, a confiança, no meu ponto de vista, dos três cês, é o que mais se abalou com tudo isso. Porque, infelizmente, de 2019 para cá, não interessa mais a posição da ciência. Ou tu é a favor ou tu é contra, dependendo do que que tu acredita em termos políticos, em termos de polarização.”

João Henrique Rafael é analista de comunicação do Instituto de Estudos Avançados da USP Ribeirão Preto. Ele coordena a União Pró-Vacina, que é um grupo que articula governos, órgãos da sociedade civil e institutos para pensar atividades justamente para combater a desinformação sobre vacinas. Embora o grupo tenha sido criado em 2019, as análises sobre grupos que espalhavam desinformação sobre a vacina se potencializaram mais durante a pandemia. João Henrique nos lembra que há diferentes eixos que nortearam esse grupo e sustentaram o alcance dessas mensagens, alcançando pais e educadores e afetando as vacinas para crianças. O Facebook e os grupos foram o principal locus de desinformação, uma espécie de polo de monitoramento.

“O primeiro eixo a gente chamou de ideológico, que foi fomentado com esse novo movimento anti-vacina inglês, que é a questão de associar a vacina com autismo, de vacinas com doença. Então tem um grupo de pessoas na internet que acreditam e eles não se importam com evidência, eles têm para eles que a verdade é essa. E aí você tem todo um leque de eixos de informação, até que a vacina é um agente para diminuir população. Então você começa a misturar outras narrativas e desinformação conspiracionista. Ou até a parte mais prática, que é aquela das Big Pharmas que querem lucrar, então a vacina deixaria as pessoas doente para depois vender. Mas são pessoas que o interesse delas é esse, elas foram convencidas e começam a entrar numa espiral e cada vez mais consumir nesse tipo de conteúdo e vão reforçando as suas crenças e querem convencer os outros, como se fossem salvadores. Só eles conhecem essa grande verdade. Eles precisam libertar. Algo quase religioso e fundamentalista.”

Mas nem tudo é paixão ideológica. Há também um eixo comercial. “São aqueles sites e aquele pessoal que sabe que o jogo da internet é baseado em clique. Então se tem pessoas que consomem conteúdo anti-vacina, eu fabrico. O cara entra no meu site, clica e eu vendo anúncios. Eu ganho com anúncios. Então junto com o eixo ideológico vem esse eixo muito forte comercial em sites como Natural News, coisas assim. Onde você já tem as versões americanas e o pessoal estava tentando emplacar no Brasil”, explica João Henrique.

Mas o eixo ideológico é o principal motivador de consumo, pelo menos. É evidente que o aspecto “político” passou a guiar o debate sobre os ditos efeitos da vacina, primeiro entre adultos e depois para crianças. “A pandemia foi politizada. A ciência acabou sendo politizada nesse sentido de você ter lados”, disse ele. “A gente ficou muito preocupado, porque se as plataformas não tomassem nenhuma medida, se nada ocorresse, na hora que as vacinas estivessem prontas, a percepção da população sobre ela seria muito ruim.” E foi.

Esse cenário investigado pela União Pró-Vacina sofreu uma transformação, sobretudo diante da extinção de grupos e vídeos considerados inadequados ou propagadores de mentiras por plataformas de redes sociais. Isso mais recentemente. Só que o estrago feito, ainda tem eco. Um estudo de 2019 da Sociedade Brasileira de Imunizações e da Avaaz mostrou que dois em cada três brasileiros acreditam em pelo menos uma afirmação imprecisa sobre vacinação.

Pesquisa Avaaz /SBim mostra que mais de dois terços dos adultos já acreditaram em alguma desinformação sobre a vacina

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Quando falamos de vacinação infantil, a ressalva cresce ainda mais, já que os apelos emocionais buscam sensibilizar pais e responsáveis semeando dúvidas e conspirações

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Um dos pais que conversou com a reportagem, mas pediu para não ser identificado se refere justamente a esse apelo emocional. Apoiador do presidente Jair Bolsonaro, ele passou a consumir conteúdo online que lança dúvidas sobre a segurança da vacina. “Essa vacina é experimental e os riscos são muito grandes, eu não sei o que pode acontecer com ela no futuro. Eu ali coisas que falam até em infertilidade”. A filha dele já contraiu o novo coronavírus pelo menos duas vezes e apresenta alguns sintomas de Covid longa.

O historiador João de Los Santos, de 46 anos, é pai da Bibiana, de seis, e não entende quem aposta com a vida dos filhos dessa maneira. “Infelizmente, o que eu vejo é que muitas pessoas, mesmo pessoas de classe média, como eu, com acesso a todos os recursos, duvidam. E eu tive inclusive o relato de uma mãe de um ex-colega da minha filha que estava na dúvida se o filho ia ser vacinado ou não. Isso que minha filha já estava prestes a tomar a segunda dose. Isso acaba me espantando muito, porque a gente chegou num nível de ignorância que está botando a nossa saúde em risco”, desabafa. E isso é verdade não apenas para a Covid, mas para uma série de outras doenças.

“Isso é muito ruim para a população porque aumenta a população suscetível e aumenta a possibilidade de ter de volta outras doenças imunopreveníveis. Muitas delas causam mortes, causam mortes de crianças. Quando não causa morte, causa sequelas. Causa dor, causa sofrimento, causa custo. Então é uma situação que nós estamos vivendo, de baixa cobertura vacinal que a gente tem que trabalhar, toda sociedade tem que ser trabalhada pra reverter”, explica o Dr. Akira Homma. Para se ter uma ideia, no ano passado só 60% das crianças foram vacinadas contra a Hepatite B, Tétano, Difteria e Coqueluche. Contra o Sarampo, Caxumba e Rubéola o índice foi menor que 75%. E a meta, nesses casos, é de mais de 90%.

Segundo o Dr. Akira Homma, além da desinformação, há outro elemento para essa baixa. “A vacinação vem caindo de popularidade, ou de importância no contexto da vida brasileira porque o povo não vê mais doença”, diz. O médico infectologista Pediátrico Fabrizio Mota, que também é membro da Sociedade Rio-Grandenses de Infectologia e da Sociedade de Pediatria do Rio Grande Do Sul concorda. “A gente que vive hoje nos anos 2020 não conviveu com varíola, com surtos absurdos de meningite no final da décadas de 70, a gente não conviveu com poliomielite causando sequelas nas pessoas, a gente não conviveu com sarampo causando óbito em crianças. Quem hoje tem seus 30, 40 anos e preza de uma boa saúde é porque já pegou um calendário vacinal extenso. E quem nasce hoje, o calendário que é feito nos postos de saúde é extremamente privilegiado. Então essa falsa impressão de que não existe o risco porque a gente vê poucos casos começa a fazer com que as pessoas procurem menos a vacinação, porque elas não têm risco.”

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Mas há risco. O fato é que os antígenos bacterianos, virais que causam doenças continuam circulando. “Então você deixa de vacinar e está criando população desprotegida. E nós estamos sob ameaça da volta de doenças imunopreveníveis”, alerta o Dr. Akira Homma

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O infectopediatria Fabrizio Mota, traz uma perspectiva importante para começar a mudar o cenário. “Toda vez que algo começa, as pessoas vem: não é para entrar em Pânico. Mas eu acho que já desmobiliza. Como não entrar em pânico? Nós temos que ter um certo pânico porque vai fazer a gente prestar atenção, para nos organizarmos para suspeitar rapidamente de um caso. Os hospitais já tem que ter um fluxo. Não pode esperar chegar o primeiro caso suspeito para alguém ligar às 10:00 da noite para um infectologista. Eu acho que essa falta de pânico, essa falta de medo de sarampo, por exemplo, a gente tem 70% de cobertura vacinal. É um piscar de olhos pra gente ter um grande surto no país.”

O presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações e membro do Comitê De Infectologia Da Sociedade De Pediatria, Juarez Cunha concorda que sim, a comunicação precisa melhorar, mas a polarização é que é um risco perene. “A perspectiva, a curto e médio prazo, é de um alerta muito importante. O Brasil atualmente é considerado um dos países de altíssimo risco para retorno de pólio. E nós estamos com um risco muito elevado porque as nossas coberturas vacinais estão baixas. Então, apesar dos esforços que a gente tá fazendo, a gente tá em reuniões quase que permanentes com o próprio Ministério da Saúde, sociedades científicas, Organização Mundial de Saúde, todo mundo tá discutindo isso porque a gente precisa reverter. Nós temos um projeto agora junto com Fiocruz que é a reconquista das coberturas vacinais.

Patricia Blanco, que preside o Instituto Palavra Aberta, lembra que nas campanhas e ações, a organização já tem adotado estratégias para driblar essa visão polarizada, que por vezes promove a desinformação contra a vacina infantil antes mesmo da análise de informações existentes. “É um desafio, porque na sociedade polarizada, colocar rótulos é para você inibir o debate. Então quando você rotula determinadas instituições como sendo o direito de esquerda ou comunista ou conservadora ou capitalista, você acaba inibindo o debate. E o que a gente tenta é trazer a discussão para fora do ambiente partidarizado. Os fatos são deixados de lado por crenças e ideologias. E o que a gente tem que trazer é o seguinte, olha vamos analisar a questão factual.

Além das campanhas institucionais, no entanto, é reforçada a importância de estimular a comunicação sobre o assunto não apenas por especialistas, mas influenciadores, artistas e comunicadores que sejam capazes de combater desinformação. Isso porque parte dos jovens não consome mais veículos de comunicação tradicionais, tampouco se interessa por meios convencionais de conscientização. Quem fez esse exemplo foi uma associação chamada Mães E Pais Pela Democracia, que vinha percebendo, entre outras coisas, o avanço do discurso anti-ciência e o risco para as crianças. Aline Kerber, que integra o grupo, lembra inclusive de um movimento de desinformação em uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre. “Em Novo Hamburgo, tinha carro andando com com Fake News, dizendo que a vacina era experimental e que os filhos seriam cobaias, que não deixassem fazer. Então a gente explicita a problemática. E, sinceramente, nunca vi algo tão contundente, que tenha dado tão “certo”, com tantos danos causados, como foi a questão da vacinação infantil da Covid.”

Aline acrescenta que muitas escolas ficaram temerosas de enfrentar a desinformação, isso por conta da polarização. “Muitas escolas foram censuradas, muitos professores censurados por não poder tratar do tema da vacinação, porque virou uma pauta ideológica”, conta.

Fato é que a prevenção de doenças e a proteção conferida pela vacina é de valor inestimável e nós não podemos abrir mão dessa proteção. Doenças como rubéola, varíola, poliomielite e sarampo foram eliminadas há anos, mas a volta dessas doenças tem um potencial muito grande por causa da população suscetível que recusa vacina. E o grupo “Mães e pais pela Democracia” mostrou que dá para fazer mais de onde estamos.

Produção: Geórgia Santos, Flavia Cunha e Tércio Saccol
Roteiro e apresentação: Tércio Saccol
Edição: Tércio Saccol
Trilha sonora original: Gustavo Finkler

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Todo dia Oito #1 Carolina, a escritora que adorava valsas vienenses

Geórgia Santos
8 de março de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No primeiro episódio do podcast, Carolina, a escritora que adorava valsas vienenses. Carolina Maria de Jesus era uma mulher negra, favelada, mãe solo de três, escritora brilhante, publicada e traduzida em 14 idiomas. A mulher alta, de pele escura, sorriso quase desconfiado e lenço na cabeça que ousou revelar a realidade do racismo e da desigualdade no Brasil.

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QUEM FAZ

Pesquisa: Flávia Cunha

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Direção Artística: Raquel Grabauska

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Locução: Andrea Almeida, como Carolina Maria de Jesus;

Raquel Grabauska, como Clarice Lispector;

Participação especial de Cléber Grabauska como Paulo Mendes Campos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

 

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #16 Fake News em tempos de pandemia

Geórgia Santos
9 de julho de 2020

Desde março, os jornalistas do BSV discutem os diversos aspectos da pandemia e da política brasileira. Hoje, eles falam sobre as Fake News, que não só bagunçaram e bagunçam a política como já são um problema para quem quer se informar a respeito do coronavírus.

Uma pesquisa realizada pela Avaaz, uma comunidade de mobilização online que leva a voz da sociedade civil para os espaços de tomada de decisão em todo o mundo, indica que as Fake News sobre a pandemia atingem 110 milhões de pessoas no Brasil.  E o estudo mostra que sete em cada 10 brasileiros acreditam em pelo menos uma notícia falsa sobre o coronavírus.

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E qual a resposta institucional? Aprovar, às escuras e às pressas, o PL das Fake News

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Parece bom, um projeto de lei que visa combater a desinformação, mas o buraco é mais embaixo. Apesar de ter sido submetido a mudanças, o texto aprovador pelo Senado no dia 30 de junho implica em sérios riscos à privacidade, à liberdade de expressão, abre caminho para a autocensura e para a perseguição a jornalistas.

O convidado desta semana é o jornalista Marcelo Trasel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), uma das entidades que mais criticou o fato de o projeto ter sido aprovado sem discussão com a sociedade civil e com sérios problemas. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #16 Fake News em tempos de pandemia
PodCasts

BSV Especial Coronavírus #4 Por que o povo sai de casa?

Geórgia Santos
16 de abril de 2020

Apesar da COVID-19 continuar circulando por aí e a todo vapor, há quem diga que o tal do coronavírus vírus está indo embora do Brasil. Leia-se: Jair Bolsonaro. 

Não podemos afirmar o quanto as manifestações do Presidente da República impactam na tomada de decisão das pessoas que resolvem sair de casa. Mas o fato é que a cada dia que passa, o isolamento diminui. Em Porto Alegre os parques estavam cheios no final de semana e, em São Paulo, epicentro da crise, nova carreata, com direito a manifestação – com meme do caixão e tudo.

As pessoas também podem estar cansadas do isolamento, afinal, é desgastante ficar preso em casa. Esse pode ser um motivo bastante forte para sair por aí. Mas há, ainda uma terceira camada além do presidente e do emocional, a desinformação. Algumas figuras negacionistas que se dizem amparadas pela ciência tem tido cada vez mais espaço para destilar ideias de jerico.

E nós, jornalistas, temos responsabilidade nisso também. Porque mesmo que os riscos da crise sejam amplamente divulgados e mesmo que haja insistência nisso, há quem se dedique a ouvir as vozes contrárias. Dois lados  em uma pandemia era tudo o que a gente precisava.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flavia Cunha, Igor Natusch, Tércio Saccol e o convidado Marcelo Nepomuceno. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #44 Liberdade de imprensa a perigo – de novo

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2020

Neste episódio, os jornalistas do Vós falam sobre liberdade de imprensa no Brasil.Ou melhor, sobre mais uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa no Brasil.

Todos estamos familiarizados com os constantes ataques do presidente da República aos jornalistas e da recusa de Jair Bolsonaro em conceder entrevista ao que ele chama de grande mídia. Agora, no entanto, foi a vez do Ministério Público Federal. O jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, foi denunciado pelo MPF em função da produção das reportagens que ficaram conhecidas como Vazajato, que revelaram a comunicação ilegal entre procuradores do Ministério Público e o então juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato. Glenn e outras seis pessoas foram denunciadas por associação criminosa para invasão de equipamentos de comunicação e interceptação ilegal de comunicações.

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Glenn Greenwald não foi investigado, Não foi indiciado, não cometeu qualquer irregularidade

Ele está sendo punido por fazer jornalismo

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Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol conversam com Marcelo Träsel, presidente da Abraji e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #41 O que acontece quando não estamos olhando

Geórgia Santos
16 de dezembro de 2019

O Bendita Sois Vós desta semana trata das coisas que acontecem quando não estamos olhando – e quando estamos olhando também. Com este governo, não podemos piscar.

Porque enquanto Jair Bolsonaro chama Greta de Pirralha, indígenas estão sendo assassinados em suas terras. Enquanto a gente presta atenção ao presidente, o Congresso aprova o pacote anticrime, que de anticrime não tem nada. Enquanto se discute a liberdade de expressão no humor, o prefeito do Rio de Janeiro veta jornalistas da Globo de participarem de coletiva. E um homem veste uma suástica enquanto se distrai em um bar com naturalidade

Com Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

Igor Natusch

A falácia dos extremos e a normalização do absurdo

Igor Natusch
26 de setembro de 2019

Tenho certeza que a maioria de vocês já teve contato com a manifestação asquerosa do comunicador Gustavo Negreiros, então um dos profissionais da rádio 96 FM, do Rio Grande do Norte. Mais um dos muitos homens brancos adultos incomodados com a postura enfática e sem pedidos de desculpa da ativista Greta Thunberg, dedicou-se o jornalista a vomitar infâmias, no ar, contra a sueca – entre elas, dizer que faltava vida sexual a uma adolescente de 16 anos, diagnosticada com síndrome de Asperger.

Alertado por uma participante do programa de que estava se referindo a uma menor de idade, o cidadão não apenas reforçou as barbaridades, como desceu ainda mais o nível, dizendo que Greta deveria limitar-se a ficar fumando maconha em seu país natal. Felizmente, a reação ocorreu: a emissora perdeu patrocínios importantes, Negreiros foi demitido da 96 FM e deve enfrentar ainda alguns (justos) percalços em sua vida profissional.

Mas a fala odiosa do radialista nem foi a coisa mais preocupante, sabe. Referir-se desta forma a uma jovem é evidentemente horrendo, repugnante, vulgar, desolador – mas, infelizmente, não é novidade que muitos pensem de forma igualmente suja sobre mulheres, de qualquer idade, que ousem manifestar o que pensam na esfera pública.

O mais preocupante, para mim, está na voz contemporizadora de algum outro participante do programa, que não consegui identificar.

Diante das tentativas da participante de colocar um freio no chorume verbal de Negreiros, essa pessoa achou que era momento não de dar fim ao espetáculo abjeto, mas de aplicar panos quentes. “Não precisamos levar para os extremos“, disse a voz, ignorada pela metralhadora de lixo do apresentador.

Extremos? Só existe um extremo nessa fala: o extremo de ódio, ignorância, misoginia e pensamento depravado contra uma jovem menor de idade, proferido por um profissional de mídia no microfone de uma importante emissora de rádio local. E esse extremo precisa ser combatido assim que surge, de forma enfática e sem conciliação, exatamente como a mulher presente ao programa se esforçou, sem qualquer auxílio, para fazer.

É possível enxergar, em situações como essa, uma vitória discursiva do reacionarismo moderno: o bom senso e a revolta diante do absurdo viraram coisas “extremadas”.

Se você contesta, por exemplo, o extremo de uma política genocida como a do governador do RJ, Wilson Witzel, você está indo pro “outro extremo”. Se você pede que os detentos nas degradadas penitenciárias brasileiras sejam tratados com o mínimo de dignidade, você é visto quase como um radical, tão “extremado” quanto os que sugerem que ladrões de celular sejam trucidados no meio da rua. Se você diz que Jair Bolsonaro é, na leitura mais generosa possível, um completo despreparado para ser sequer síndico de prédio, que dirá presidente do Brasil, o super-trunfo do “e o Lula? E a Dilma?” virá não apenas do perfil com foto de ovo no Twitter, mas do âncora do telejornal e do colunista de política.

Claro que isso tudo é uma consequência direta da legitimação do grotesco como argumento, do delírio como temática, da infâmia como linha ideológica autorizada a tomar lugar na mesa de debate.

Como permitiu-se que a podridão tivesse voz ao microfone, passa a ser necessário disfarçar de alguma forma o absurdo que é sua presença, como se fingir que a besta não é uma besta fizesse dela menos ameaçadora. E a consequência é tratar o razoável como se extremado também fosse, para construir uma simetria capaz de criar, mesmo que de forma precária, uma ilusão de equilíbrio.

Mas não: contestar um escroto que diz que a revolta de uma adolescente é falta de sexo não é extremado. Trata-se, isso sim, de uma atitude obrigatória para qualquer adulto razoável na sala. E o mesmo cabe quando somos expostos a governadores que acham que “atirar na cabecinha” é política de segurança pública, ministros e candidatos a embaixador que reproduzem infâmias contra líderes políticos estrangeiros, presidentes que publicam vídeos com golden shower e atacam desafetos tripudiando sobre a morte de seus pais.

Em casos assim, não existem “extremos”: existe o absurdo e a necessidade de enfrentá-lo.

Em um mundo onde revoltar-se diante do monstruoso é ser “extremo”, qual será a linha do meio? Ofender só de leve, ser apenas um pouquinho mentiroso, matar só uma ou duas pessoas por semana?

Normalizar o intolerável é perigosíssimo. E impedir que isso ocorra passa por contestar também a ponderação forçada dos que não querem se incomodar.

Foto: 96 FM / YouTube / Reprodução