Andanças

Memórias de um tribunal

Geórgia Santos
14 de setembro de 2023

Eu quase não acreditei quando entrei no táxi e li, no Twitter, sobre a uma comissão da Câmara dos Deputados que estava discutindo, naquela semana, proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Apenas duas horas antes, eu tinha ouvido do Doutor Juca: ”Hoje já está consolidado.”


Eu não conhecia o Doutor Juca, era a primeira vez que nos encontrávamos. Mas estávamos em contato havia alguns meses, graças à recomendação de um amigo atento. Em abril, quando esse amigo soube que eu faria uma longa viagem pelo estado em uma espécie de missão especial à procura de histórias, não hesitou em recomendar: “em Bagé, fala com o Juca Giorgis”. Obedeci. Já na estrada, a caminho da fronteira, entrei em contato para agendar uma conversa. Preferi enviar uma mensagem, com receio de atrapalhar caso telefonasse. Eu já sabia que eu estava em contato com um Desembargador aposentado, mas assim que o Google começava a me dar mais detalhes, eu recebi uma ligação do Doutor Juca. 

Muito amável, ele me explicou que vive em Porto Alegre. Eu me senti uma tola, naturalmente, mas nem por isso a conversa foi menos agradável. Combinamos que ele me guiaria, por telefone, aos lugares de Bagé que guardam História e estórias inimagináveis. E depois, quando eu estivesse de volta à capital, nos encontraríamos para um café. 

O tempo foi passando e, por esses atropelos da vida, fomos adiando a conversa. Ansiosa por tirar do papel as histórias com as quais deparei ao longo de mais de dois mil quilômetros, retomei o contato com o Doutor Juca. Afinal, Bagé guardava mais do que eu poderia ter imaginado e tinha certeza de que ele abriria um belíssimo gabinete de curiosidades. Ele estava a convalescer de uma cirurgia e sugeriu que nos encontrássemos pouco antes do sete de setembro, dali a uma semana. Eu concordei, é claro, e aproveitei para voltar ao Google e chegar preparada para a entrevista. Assim que agendamos o encontro para a tarde do dia seis, digitei no buscador: Juca Giorgis. Enter. 

Eu já sabia que ele era o diretor do Memorial do Judiciário do RS, mas foi só naquele momento que eu entendi que me reuniria com o Desembargador, agora aposentado, José Carlos Teixeira Giorgis, relator do processo 70001388982, cujo voto, em 2001, reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar no Brasil e, em decisão pioneira, abriu precedente para outros tribunais do país.

[00:00]

Geórgia: Doutor, antes de vir, eu pesquisei sobre a sua história e vi que o senhor foi relator de um dos julgamentos mais importantes dos últimos tempos do Tribunal de Justiça. 

Desembargador Juca Giorgis: É, fui relator. 

G: Então se o senhor não se importa, antes de viajarmos nas histórias de Bagé, eu gostaria de falar sobre isso também. O que o senhor lembra daquele caso? 

J: Eu lembro de tudo.

O Doutor Juca – como todos o chamam – me recebeu em seu apartamento no bairro Independência, em Porto Alegre, na véspera do feriado que dá nome aos arredores. A esposa dele, muito gentil, serviu água e café ao longo da tarde e, nas quase duas horas de conversa, participou do papo eventualmente. Os dois são muito amistosos, bem-humorados e têm uma memória impressionante. Ele realmente não estava brincando quando disse que lembra de tudo. 

[01:01]

G: Em 2001 a sociedade não discutia tanto muito as questões? 

J: A história é o seguinte, as relações informais eram chamadas de concubinato antes de 1988 – da Constituição de 1988. Aliás, se olharmos para a História, era algo até mais amplo. Desde a antiguidade, o concubinato era um sistema adotado por determinados povos que aceitavam a poligamia.  Havia povos do Eufrates, por exemplo, em que o convidado era recebido e podia ficar com a mulher do dono da casa. Era o tipo de um amor livre. Até que no Código Napoleônico (1804) se estabeleceu que aquela relação seria chamada de sociedade de fato.

[02:06]

G: Então, qual seria a diferença entre uma sociedade de fato e, hoje, uma união estável?

J: É a maneira do livro do código onde se encaixa. A união estável é na Vara de Família e a Sociedade de Fato decidia as questões como se fosse Direito Obrigacional, como se fosse uma simples sociedade, uma uma sociedade comercial. Então, até 1988 essas questões relativas às relações homoafetivas, como discussão de testamento, partilha de bens, tudo era resolvido como Sociedade de Fato. Mas as pessoas dificilmente entravam em juízo.

[02:58]

G: Quando o senhor entrou no Tribunal?

J: Eu entrei no tribunal em 1992.

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O DESEMBARGADOR

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Foto: Marcelo Bertani | Agência ALRS

O Doutor Juca é natural de Bagé e só se mudou para Porto Alegre depois do convite do então governador Alceu Collares, conterrâneo e correligionário, para assumir a subchefia da Casa Civil na ocasião. Em 1992, já na capital, ele se candidatou a uma vaga de desembargador no Tribunal de Justiça por meio do Quinto Constitucional. 

O artigo 94 da Constituição Federal estabelece que um quinto dos lugares dos Tribunais brasileiros devem ser compostos por membros do Ministério Público, desde que tenham mais de 10 anos de carreira, e de Advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, também com mais de 10 anos de atividade profissional. Os nomes são apresentados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Com os nomes dos indicados em mãos, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça, formado por 25 Desembargadores, escolhe três candidatos, que formam uma lista tríplice remetida ao Chefe do Poder Executivo para nomeação de um deles.

O nome do Doutor Juca, foi, então, remetido ao governador do Estado, que só precisava referendar a escolha. Mas isso não aconteceu no primeiro dia, nem no segundo, nem no terceiro. Quando confrontou Collares sobre a escolha do novo desembargador – de maneira gentil, é claro -, ouviu que havia empecilhos. “O partido não te quer”, disse. O presidente do PDT à época, Carlos Araújo, era contra a indicação dele. Disse que nunca tinha ouvido falar no tal de “José Carlos Teixeira Giorgis”. O Doutor Juca ficou perplexo. Como era possível, se eles se conheciam há tanto tempo? O governador, a essa altura, já não estava entendendo nada e pediu à secretária que chamasse Araújo até sua sala. Ele foi atendido prontamente e os três ficaram frente a frente. Araújo fez uma festa e abraçou o Doutor Juca, entusiasmado, o que só aumentou o estranhamento da coisa toda. 

Foi então que o então governador, com o jeitão peculiar dele, disse algo como: “Araújo, porque é que tu é contra o Juca no Tribunal de Justiça?” E o Araújo respondeu falando algo parecido com: “Como assim? Ele nem está na lista.” Acontece que o Araújo conhecia o Doutor Juca, não conhecia o José Carlos Teixeira Giorgis. Eles riram e, desfeito o mal entendido, ele foi nomeado pelo governador e assumiu uma vaga na 7º Camara Cível do TJRS, 

[03:04]

Então até ali, as discussões que envolviam direitos de casais homossexuais eram muito tênues. E havia muito poucas decisões. Existe uma escritora francesa bem conhecida, já veio duas vezes aqui nesse negócio do Pensamento – o Fronteiras do Pensamento -, chamada Elisabeth Roudinesco. Ela diz que a homoafetividade passou por dois momentos, por exemplo, tomando como base a França. Num primeiro momento, os homossexuais – ou a comunidade LGBT – procuravam criar um nicho escondido, não queriam aparecer. Era naquele tempo do [poeta Marcel]Proust. Eles não eram de aparecer e levavam uma vida reservada. Mas isso porque era estigmatizado, era uma relação estigmatizada.

[04:08]

Então, principalmente a partir dos anos 1990, os homossexuais resolveram, como eu digo, vir à frente do palco e reivindicar os mesmos direitos civis que havia para os casais heterossexuais. Ou seja, adoção de filho, partilha de bens, essas coisas todas. Então daí surgiram diversos movimentos. Aqui em Porto Alegre surgiu o movimento Themis, o Nuances e uma série de grupos de proteção que passaram a vir disputar no âmbito judiciário. 

Os primeiros casos que nós julgávamos eram casos até bem desagradáveis, porque às vezes era um casal que estava junto há um bom tempo e o companheiro inclusive era bem tratado pela família do outro. Mas bastava um deles morrer para, na hora de de partilhar a herança, começarem aquelas brigas.

[05:21]

Então se resolvia como Sociedade de Fato. Ou seja, para fazer a partilha de um bem, vamos ver com o que cada um contribuiu e se mensurava o dinheiro. “Eu dei tanto, tu deste tanto etc.” Até ali o Brasil continuava ainda decidido como sociedade é fato. Até que, durante as discussões do novo Código Civil, que foi aprovado em 2002, me caiu um caso aqui de Porto Alegre, lá da Restinga, que era a união entre dois homens. E acho que realmente eu dei sorte. 

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O CASO

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O processo 70001388982 tratava da história de um casal de Porto Alegre que vivia junto há mais de 20 anos. Um deles era o que podemos chamar de provedor da casa – os nomes dos dois foram protegidos. O outro se aposentou um tempo depois de iniciarem a relação e, ultimamente, ocupava-se das tarefas domésticas. Em determinado momento, o casal decidiu adotar uma filha. Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) permite que casais do mesmo sexo adotem crianças, embora ainda haja muitos empecilhos, mas antes disso a criança só podia ser registrada em nome de um dos pais. Então um adotava a criança e o outro ratificava depois, tornando-se o que se chama de pai afetivo. E foi o que aconteceu com esse casal. Oficialmente, o pai da menina era aquele que ficava em casa na lide doméstica.

Como é comum em muitos casamentos, o provedor repassava boa parte do dinheiro do trabalho ao companheiro e também optava por comprar os bens em nome do parceiro, mesmo que não houvesse um papel dizendo que ele era, de fato, o marido. Isso nunca foi problema, até o momento em que o marido faleceu. A filha do casal, já adulta, ajuizou o inventário se colocando como única herdeira do pai, alijando o pai afetivo. Desenganado, o remanescente ajuizou uma ação de dissolução de Sociedade de Fato. 

À época, no início dos anos 2000, a literatura que tratava dos direitos civis da comunidade LGBTQIA+ ainda era escassa, por incrível que pareça. Segundo o Doutor Juca, era uma comunidade que estava estrategicamente situada em “nichos de esquecimento”. E mesmo que ele não soubesse que o caso entraria para a história do judiciário brasileiro, ele sabia que era chegado o momento de superar idiossincrasias, formação ideológica e religiosas e entender o contexto social e histórico, a Constituição e as leis. “Entendi de avançar”, me disse. 

[09:28]

E aí tocou para mim, então. O processo foi distribuído para mim, de maneira imparcial, a partir do sistema de computador. E eu fiquei preocupado, porque era muita responsabilidade, não tinha nenhuma jurisprudência ainda. Eu tive que estudar bastante para me preparar, estudei bastante a Constituição, enfim. E revi muita coisa. Eu tinha minhas convicções religiosas, sou católico, conservador em alguma medida. Vem aquela coisa toda. Mas eu fui por um caminho. 

[10:31]

Existe no Direito um instituto chamado “analogia”. Eu não podia dizer que era união estável, porque na Constituição diz que união estável entre homem e mulher. Eu não podia dizer que era união estável porque o Código Civil dizia que era entre homem e mulher. Eu não podia dizer que era casamento, porque casamento é um pacto escrito, é um contrato. Então restou comparar tudo isso. Na chamada analogia, tu comparas aquela situação com outra vigente. Eu vou ver todos os institutos de relacionamento e analisar qual que mais se parece com o objeto do processo. E o que mais se parecia era a união estável. Era uma união livre, havia notoriedade, havia publicidade, intenção de comunhão de vida, todas aquelas características da união estável.  

[11:31]

Só que eu não disse claramente – e o Supremo depois, da mesma forma, não diria que é união estável -, é um instituto de uma entidade familiar análoga à união estável. Porque lá na parte da família, no Artigo 226 da Constituição, no parágrafo quarto, fala em entidade familiar. A Constituição criou a chamada entidade familiar. Então ela disse que há três entidades familiares: o casamento, a união estável e a união monoparental, que são os casais constituídos pelo homem e filhos ou pela mulher e filhos. Então eu tinha que comparar com esses três institutos. Casamento não era, monoparental também não era. O mais parecido era união estável. Aí, no meu voto, eu troquei o nome do processo. Em vez de “dissolução de sociedade de fato” passei a chamar de “dissolução de união estável” e determinei uma partilha de bens igualitária.

[13:23]

Então, a minha emenda até saiu bastante bonita. 

G: Arrisca lembrar do texto?

J: “Não é mais possível adotar o farisaísmo de esconder as coisas”, algo assim. [risos]

Eu fui atrás do texto que o relator apresentou à  7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e comprovei a boa a memória do Doutor Juca. “Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar”, escreveu. E em 14 de março de 2001, por maioria, fez-se a história. Pela primeira vez no Brasil o Judiciário reconhecia a união homoafetiva como entidade familiar e, assim, abria a porta para o fortalecimento dos direitos civis da comunidade LGBTQIA+.

A decisão foi referendada em 2011 pelo STF, quando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4277) foi julgada para reconhecer, por unanimidade, a constitucionalidade da união estável entre casais homoafetivos. Dois anos depois, uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez com que os cartórios fossem obrigados a aceitar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Naquele ano, em 2013, já foram registrados 3,7 mil casamentos homoafetivos; no ano seguinte, 4,8 mil. Mais recentemente, a média, por ano, tem sido em torno de 9 mil. 

[00:38]

J: Hoje está consolidado. Porque anos depois o Supremo decidiu e, de certa forma, ratificou tudo aquilo que a gente já tinha decidido naquele momento.

Quando o Doutor Juca me disse isso, o gravador estava ligado havia 38 segundos. E mesmo não sendo grande entendedora que questões jurídicas, na minha cabeça, já era uma questão de senso comum. Mas a vida real é rápida em lembrar que nenhum direito está dado. 

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A COMISSÃO

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A véspera do feriado de sete setembro em Porto Alegre foi um dia de muito vento, o Estado havia sido assolado por um ciclone extratropical alguns dias antes. Ameaçava chover novamente e eu tinha algo como 4% de bateria no meu celular. Eu sabia que chamar um Uber ia consumir tudo isso e, considerando que era horário de pico, ia demorar uma vida até algum motorista aceitar minha solicitação. Foi quando eu avistei um táxi estacionar do outro lado da rua. O taxista desceu para ajudar uma senhora a carregar as compras do supermercado e eu fiquei observando de longe, esperando para fazer a pergunta que decidiria minha sorte: “Aceita pix?” “Claro.” E lá fui eu para o táxi. 

Eu esqueci que ia precisar daqueles 4% de bateria para pagar pela corrida e, como uma viciada em adrenalina, abri o Twitter – já fazia três horas. A primeira coisa que leio é que uma comissão da Câmara dos Deputados estudava proibir o casamento homoafetivo. Aos 38 segundos de entrevista, o Doutor Juca me diz que está consolidado. Aos 38 segundos de Twitter, leio em um perfil que, confesso, não recordo era, que isso pode acabar assim, em uma votação em uma comissão.

No dia 05 de setembro, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara retomou as discussões sobre o Projeto de Lei 580/2007, que, hoje, visa a impedir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O texto original, apresentado em 2007 pelo então deputado Clodovil Hernandes (PTC-SP), que faleceu em 2009,  propunha a inclusão no Código Civil da “possibilidade de que duas pessoas do mesmo sexo possam constituir união homoafetiva por meio de contrato em que disponham sobre suas relações patrimoniais”. Algo parecido ao que foi decidido pelo TJRS e depois pelo STF. Designado como relator da proposta, o deputado Pastor Eurico (PL-PE) inverteu o vetor do texto e propôs a rejeição do projeto de Clodovil e a aprovação de outro, anexo, que proíbe as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. Se essa ideia for aprovada, o Código Civil passará a dizer que “nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar.” 

Brasília (DF) 19/09/2023 A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família durante votação do projeto sobre o contrato civil de união homoafetiva. Foto Lula Marques/ Agência Brasil

Pastor Eurico afirma no relatório que casamento é entendido como um pacto que surge da relação conjugal e que não cabe a interferência do poder público, já que o casamento entre pessoas do mesmo sexo “é contrário à verdade do ser humano”.

“Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas”, escreveu o Doutor Juca no voto de 2001. Se você chegou até aqui e está se perguntando o que é farisaísmo, citado pelo Doutor Juca no voto de 2001, eu explico: é hipocrisia. 

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GUARDIÃO DAS MEMÓRIAS DE UM TRIBUNAL

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[16:06]

G: Quando aconteceu esse caso, o senhor tinha dimensão de que talvez entrasse para a História, assim, dessa forma? 

J: Sinceramente, não. Eu queria dar uma decisão que fosse consonante com as minhas convicções e com o sentimento que havia nos outros colegas. A maioria dos desembargadores da Família eram favoráveis, porque a gente avançou muito, né? A nossa Câmara, ela se tornou famosa no Brasil. Porque as grandes propostas de alteração, coisas bem revolucionárias, saíram daqui do Rio Grande do Sul. Na Vara de Família nós estávamos cem anos na frente de todo o Brasil.

[17:06]

G: Em quais assuntos, por exemplo?

J: Assuntos, por exemplo, de adoção mesmo, que veio logo depois, né? Eu fiquei lisonejado, mas não me interessava isso. Só fiz o meu trabalho. Mas o pessoal reconhece, os livros falam. Que esse voto foi pioneiro. Eu fico satisfeito porque, afinal, é uma situação social. Que existia, existe e que tem que resolver. Porque como eu digo, o Judiciário, ele é inerte. O Judiciário age quando provocado. Então ele não pode voluntariamente criar um troço, ele só pode reagir dentro do processo. Tem que ser provocado por um processo. 

Eu fiquei intrigada com relação aos cem anos de vantagem do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e resolvi pesquisar para além da minha conversa com o Doutor Juca. E me surpreendeu que, mesmo antes do julgamento desse caso em específico, havia um histórico de decisões revolucionárias associado à atuação do Judiciário gaúcho. As principais inovações vieram acontecendo na área de família – corroborando a percepção do entrevistado – e na criminal. 

Por exemplo, foi aqui a primeira decisão reconhecendo direitos das relações extra-matrimonais, em 1964. Aliás, do período em que vigorava a Ditadura Militar até a promulgação da Constituição, em 1988, o TJ-RS proferiu outras decisões que beneficiaram pessoas que moravam juntas sem ter casado no papel, como conceder pensão alimentícia à concubina – lembra do concubinato? – e à amante. As decisões foram tão importantes que influenciaram a Assembleia Constituinte, que acabou por reconhecer a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, abrindo a possibilidade de proteção jurídica a quem não casou no papel. 

No final dos anos 1990, tribunal gaúcho também reconheceu a união entre lésbicas; autorizou a mudança de nome e de sexo no documento de uma pessoa transexual; e determinou que as disputas judiciais entre casais gays fossem resolvidas nas varas especializadas em assuntos de família. O caminho foi sendo pavimentado para se reconhecer a relação entre casais homoafetivos como uma entidade familiar.

Os processos podem ser consultados in loco e alguns estão digitalizados. Há inclusive a exposição virtual “Arquivos do Judiciário: Processos Impactantes”, que mostra casos que marcaram a história do TJ-RS. Os processos foram selecionados a partir do “Fundo Impactante” do acervo do memorial, que que reúne histórias que tiveram “grande repercussão na mídia, causaram comoção e interesse social, seja pela violência que os caracterizam, tragédias coletivas, marcas de momentos histórico e políticos.” E não é surpreendente que os 150 anos de história do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sejam guardados justamente pelo Doutor Juca, que é o diretor do Memorial do Judiciário.

[18:03]

G: Desde quando?

J: Estou à frente do memorial desde 2010, há 13 anos. 

[19:31]

No caso do memorial, nós só levamos para lá os chamados processos impactantes, aqueles que tiveram grandes repercussão. E esse meu processo está lá. 

Depois de tanto tempo e de tantas decisões revolucionárias, espera-se que o processo 70001388982, esse processo do Doutor Juca, não vire apenas uma entre tantas peças de memórias de um tribunal.

Andanças

A mesa vazia de João

Geórgia Santos
31 de julho de 2023

Em uma festa de São João com 1500 pessoas, me vejo sozinha. Não fica triste, eu não estou. É puramente circunstancial. Minha mãe está ocupada vendendo crepes, as crianças estão correndo feito maníacas, os amigos próximos já foram embora e eu resolvi ficar em solidariedade à matriarca trabalhadora. Mas não é fácil.

De início, fiquei meio sem jeito e decidi me empenhar em parecer estar fazendo algo com propósito: resolvi comer amendoim.  A concentração em quebrar a casca é aparência de ocupação o suficiente para dar a sensação de tudo está sob controle, de que eu estou perfeitamente confortável na posição de guardadora de casacos e tênis e brindes da pesca. Mas os amendoins acabaram mais rápido do que eu havia previsto e, de repente, eu me transformei em uma estranha olhando para os lados.

A essa altura você já deve estar se perguntando onde estava meu celular, lógico. Pois eu respondo: sem sinal. E eu sou daquelas pessoas que se levam muito a sério e não tem nenhum joguinho instalado pra curtir offline. Meu guilty pleasure é um entediante sudoku que eu acesso na página do NYT – sim, eu sei, que preguiça. Mesmo assim, resolvi tentar a sorte com o Kindle. E dei sorte, de fato, uma sorte que eu jamais tive na pesca das festinhas desta escola. Estava à minha disposição a biografia do Jô Soares. Então, troquei o amendoim pelo livro e comecei a ler, super compenetrada, parecendo uma pessoa detestável que não consegue se divertir ou se conectar com outras pessoas em uma festa de São João.

Em minha defesa, neste tipo de evento as pessoas andam em duplas ou bandos fechados. É uma verdade universal, mas especialmente verdade em uma cidade pequena do interior do Rio Grande do Sul. Isso significa que se a gente já não conhece um dos membros do grupo, a associação não é recomendável. E o fato de eu estar sem óculos impede uma busca ativa, afinal, não posso deixar meu posto de chapeleira. Portanto, sim, ler me parece a melhor opção para não parecer uma coitada. Tarde demais?

Na segunda página da noite, uma letrinha do Jô: “Um escritor se forma não só lendo bastante, mas prestando muita atenção nas pessoas, na experiência que elas transmitem, naquilo que viveram.” Fiquei com vergonha. Era isso que eu deveria estar fazendo. Observando, tentando entender. Sou jornalista e cientista política, meu Deus. No meu diploma tá lá um doutorado em ciências sociais.

Eu esqueci, por um segundo, iludida pela cosmovisão do Jô Soares, que não se fica olhando para as pessoas em festa de cidade pequena.

Jô era um homem viajado e o conselho dele é o mesmo de qualquer escritor, jornalista ou alguém que se preste a observar o cotidiano. Ele não está errado. Mas em cidade pequena, não se observa as pessoas assim, de forma escancarada. O correto é elas costas e, de preferencia, com o o objetivo final de alimentar alguma fofoca.  Se eu guardar meu telefone e simplesmente ficar observando as pessoas em plena luz da lâmpada é possível que eu vá parar na cadeia. E não a da festa. Meu marido conta de uma das primeiras vezes em que ele foi caminhar pela cidade, as pessoas foram tao hostis a presença de uma pessoa desconhecida que ele ficou com medo de ser denunciado por algo horrível, algo muito pior que caminhar de camiseta laranja. Por isso eu resolvi comprar o terceiro quentão e mais amendoim. Mas acabou o amendoim, então só bebi o quentão.

E como tudo sempre pode piorar, as pessoas que ocupavam a mesma mesa que eu se retiram e vão embora. E ninguém ocupa seis lugares, que agora são onze. Isso significa que eu agora estou sentada à ponta da única mesa que não está cheia. Afinal, eu não já não estava chamando atenção o suficiente. Uma mulher sozinha, bebendo quentão, cuidando para que casacos de crianças nao sejam roubados, junto de uma bolsinha rosa e lilás, dois pares de tênis pequenos, um par de meias sujas e dois cartuchos de amendoim açucarado.  E escrevendo loucamente em um celular como se fosse uma máquina de escrever. Preciso de uma água, não sei se pelo calor do quentão ou da vergonha.

Quando eu chego no bar, o Júnior, um amigo, brinca: água, Geórgia? Não vai beber vinho?

E assim, num passe de mágica, entendi o furo da minha tese mal acabada. O problema não é a cosmovisão do Jô ou mesmo a minha, o problema é aqui eu posso até parecer uma solitária misteriosa, mas eu não sou. Se eu espichar o olhar, encontro o Pônei, um ex-policial supostamente envolvido em atividades ilícitas. “Sempre aquela”, me diz uma. “Nossa, que diferente que tu tá”, me diz outra. Na cozinha, tem as profes que me deram aula me abraçando carinhosamente, as tias da merenda me atirando beijo – as que não se aposentaram pois não mais criança. Eu conheço o cara de boné, só não lembro o nome dele. Ali tá o advogado da minha tia, casado com minha ex-professora de História. Lembrei, o cara de boné é o irmão da Juliane e da Jucilene. Acho que esse que passou de cachecol é pai de um menino com quem eu já fiquei em 1912. Putz, era o irmão dele também. Corei.

Do nada, um casal sentou à minha frente. Ele estava muito bêbado. Ela era tímida e obviamente submissa. Ele perguntou se eu sou de Paraí e eu disse que sim. Ele respondeu que não, que eu nao sou de Paraí. Então ele perguntou de novo, e eu, de novo, disse que sim, que eu sou Paraí. Ele indagou há quanto tempo me mudei e eu expliquei que nasci aqui. Ele duvidou, dizendo que mora aqui há 40 anos e não sabe quem eu sou. Eu expliquei que moro em Porto Alegre. “Logo vi que tu era de Porto Alegre.” Mas eu nao sou de Porto Alegre, sou daqui. Nao sou uma estranha misteriosa. 

Ele não gostou do meu nome, e disse  o dele era mais bonito. Ele ficou gesticulando e eu notei que alguém achou engraçado que ele tenha sentado à mesa comigo. Um casal riu, cochichou, ele não entendeu. Nisso, o Pônei se levantou e cochichou ao ouvido do casal. Riu também. Eu me constrangi, baixei a cabeça  e voltei e digitar este  texto. Nesse meio tempo, Vilmar do nome bonito fez uma espécie de mímica para os amigos, que riram. Notei que ele derrubou água ou cerveja nos meus amendoins. Que ódio, eles estão ensopados. Ele levantou da mesa e saiu sem se despedir. A namoradinha coitadinha fez o mesmo. Ele havia se sentado para comer amendoins sequinhos, mas talvez o fato de eu ter me fechado o tenha constrangido. Virou um concurso de constrangimento, aparentemente. Agora ele emporcalha o chão com cascas de amendoim como se fosse normal, como se não houvesse saquinhos, como se não houvesse latas de lixo, como se a culpa fosse minha, como se a mesa não fosse gigante, como se não tivesse sido escolha dele sair dali.

Mas lá se vai mais uma tese mal acabada na noite. A segunda em um texto só. Eu ia dizer que um jornalista pode e deve observar, mesmo em cidade pequena. Porque o problema nao é o tamanho do lugar, o problema é o pertencimento. O problema é fazer isso na nossa cidade pequena. Mas eu estou aqui observando e observando e contando pra vocês ao mesmo tempo em que tento manter a pose de uma Hemingway torta e nada misteriosa que trocou o gin por quentão e Paris por Paraí.


E é isso que eu vou fazer nesse espaço, contar pra vocês o que eu vejo por aí. O que não estava na pauta, o que não estava previsto, o que apareceu pelo meu caminho sem que eu estivesse preparada. Vou compartilhar com vocês minhas andanças. Ou, no caso da festa de São João em Paraí, minhas paranças.