Guia de Viagem

Bendita Sois Vós #74 Golpe não vai ter

Geórgia Santos
11 de janeiro de 2023

Nesta semana, “golpe não vai ter”

No dia oito de janeiro de 2023, os brasileiros assistiram estarrecidos a um espetáculo de barbárie na forma mais pura. A materialização da ignorância se deu em Brasília em um domingo vazio de gente e idéias quando cerca de 6 mil pessoas invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal.

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As sedes dos três poderes foram destruídas por bolsonaristas

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E aqui eu faço questão de ressaltar algo: o bolsonarismo é radical por essência. Bolsonarismo radical, portanto, é redundância. Isso significa que, aqui, pra gente, as pessoas que cometeram toda sorte no final de semana serão chamadas de golpistas.

Os golpistas destruíram muito mais que janelas e cadeiras, a tentativa era desmantelar a materialidade da democracia brasileira. Destruir o parlamento, a réplica da Constituição de 88, rasgar obras de arte, urinar e defecar em objetos da casa povo, tudo isso é uma tentativa de enfraquecer o tecido social e institucional da democracia brasileira. Mas eles fracassaram.

Apesar da conivência do governo do Distrito Federal e da policia militar, os golpistas fracassaram. Ainda no domingo, o presidente Lula decretou intervenção federal e o Ministro Flávio Dino tomou as rédeas da situação. Alexandre de Moraes decretou a prisão do que até aquela tarde era secretário de segurança, Anderson Torres, e o afastamento do governador do DF, Ibaneis Rocha. O presidente se manifestou ainda no domingo deixando claro que todos seriam punidos e dando nome aos bois, com o perdão do trocadilho. Ou não.

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Na segunda-feira, dia 09, Luiz Inácio Lula da Silva disse em alto e bom que golpe não vai ter

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No mesmo dia, reuniu os governadores e representantes dos três poderes para um manifesto em prol da democracia. E todos, de braços dados, se dirigiram ao STF em um recado que é mais que simbólico.

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

 

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Foto: Ricardo Stuckert

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Bendita Sois Vós #70 Passarão, não passarão, ou já passaram?

Geórgia Santos
10 de agosto de 2022

Nesta semana, passarão ou não passarão?

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No último episódio do Bendita, Geórgia Santos ACUSADA pelo povo deste podcast de ATACAR os otimistas e esperançosos quando disse que era uma bobagem falar que “não passarão”, porque, afinal, na opinião da nossa apresentadora, já passaram.

Mas quando acabou o programa, Flávia Cunha e Igor Natusch disseram que não concordam com a afirmação. Que dizer que “não passarão” é uma retórica que tem finalidade. Então, retornamos nesta semana para perguntar: o que você, ouvinte, acha disso? Passarão ou não passarão? Ou já passaram?

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E por falar em passarão, a gente não pode deixar de falar em eleições. Afinal, a temporada da mentira já começou. Passarão?

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A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

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Bendita Sois Vós #69 Eleição cor-de-rosa groselha

Geórgia Santos
3 de agosto de 2022

No episódio de hoje, eleição cor-de-rosa groselha. Nesta eleição de 2022, o protagonismo feminino é, no mínimo, duvidoso. As chapas com chances reais de vitória não incluem mulheres e uma delas é abertamente machista.

Acho que a essa altura não precisamos ficar aqui relembrando o que  Jair Bolsonaro já falou das mulheres. De todo modo, ele tem apelado à esposa. Michelle discursou de maneira emocionada na convenção do PL e fez o marido chorar.  A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves (Republicanos) publicou um vídeo no qual chama Bolsonaro de “presidente mais cor-de-rosa da história”.

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De cor-de-rosa, só uma batida de groselha feita com o que essa senhora fala

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E talvez a tática esteja funcionando. Segundo a mais recente pesquisa Datafolha, Lula tem 18 pontos de vantagem sobre Bolsonaro no primeiro turno, mas o atual presidente tem crescido entre as mulheres.

Ainda há duas chapas formadas apenas por mulheres: Simone Tebet e Mara Gabrilli, do MDB e PSDB respectivamente; e Vera Lúcia e Sofia Manzano, da aliança do PSTU com o PCB. Além disso, pode ser que Luciano Bivar, do União Brasil, desista da corrida e dê lugar à senadora Soraya Thronicke. É histórico, nunca houve tantas mulheres nessas posições, mas será que isso é relevante de verdade quando nenhuma delas é protagonista? Será que é mais uma mostra do retrocesso a que estamos todos submetidos?

Afinal, no início desta semana, houve um recado. Manuela Dávila sofreu uma ameaça que sequer podemos reproduzir. O homem prometia agredir até a filha de Manuela. É esse o lugar que nos cabe na política brasileira?

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

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Bendita Sois Vós #56  Elon Musk, a graça do presidente e o ministro pistoleiro

Geórgia Santos
27 de abril de 2022

Nesta semana, falamos de Elon Musk comprando o Twitter, a graça do presidente a Silveira e o absurdo do ministro pistoleiro.

O bilionário Elon Musk anunciou a compra do Twitter por mais de $43 bilhões. Ele que se diz um “absolutista da liberdade de expressão”, anunciou o fim dos bots e a verificação para todos os seres humanos. Mas o que essa compra representa. Tudo leva a crer que contas bloqueadas por Fake News, por exemplo, voltem à ativa.

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Por falar em contas que divulgam Fake News, o presidente da República deu mais um passo na direção da dissolução do que sobrou da nossa democracia

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O presidente Jair Bolsonaro anunciou na última quinta, dia 21, o perdão da pena ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado na véspera a oito anos e nove meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro concedeu o benefício da graça.

E como se não bastasse – essa frase tá comum por aqui, ultimamente – o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, disparou, acidentalmente, uma arma de fogo dentro do Aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília. Ele estava no balcão da companhia aérea Latam, mas quem foi atingida por estilhaços, embora sem gravidade, foi uma funcionária da Gol.

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

 

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Pedro Henrique Gomes

No luxo dos veludos

Pedro Henrique Gomes
31 de maio de 2020

Um mar amorfo de bestialidades quase neutraliza a discussão sobre outras coisas nos tempos que correm. O governo Bolsonaro é desprezível, autoritário e corrupto. Precisa acabar. Seus séquitos apoiadores financeiros vivem muito bem no luxo dos veludos. Mas a crueldade dos monstros sanguessugas não pode paralisar-nos e é preciso reagir. Uma forma imprescindível de reação é a manutenção da quarentena para quem tem condições e pode mantê-la. No momento, a quarentena é a luta armada de 2020.

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Em meio a tudo isso, os filmes me aquecem. Certamente a sessão mais memorável deste maio que está prestes a se esgotar, levando com ele a vida de muita gente, espalhadas nos muitos brasis que temos no Brasil, ao descompasso do desprezível conjunto de abomináveis senhores da morte que dizem nos governar, enfim, eu dizia que a sessão mais marcante dessa quarentena, até aqui, foi a de A Casa e o Mundo (Índia, 1984), de Satyajit Ray. Curioso que, como em boa parte da obra cinematográfica do cineasta indiano, a casa, isto é, o espaço interior (ambiente dos dramas corriqueiros e cotidianos, mas também espaço para onde converge uma série de problemas do mundo, pois indissociáveis) existe pois há um fora dele, o exterior. Os espaços em Ray têm contornos e, ao mesmo tempo, respeitam aqui a intimidade da câmera clássica. Ele tem, no entanto, a malícia que faz do seu cinema uma viagem atenta ao conjunto de valores em vigor no espaço do qual ele fazia parte.

A história de A Casa e o Mundo é uma história conjugal, passada em Calcutá, e ela toma forma inteiramente no espaço doméstico. Estrutura dramática habitual em Ray, é possível conhecer o mundo com aquilo que ele nos dá a ver por meio de suas imagens e é necessário se inserir nesse mundo a partir de uma série de decisões (morais, absolutamente).

Bimala é casada com um homem intelectual, rico e liberal, e se vê encantada pelo amigo do marido que ele próprio insiste em lhe apresentar, contrariando a tradição. A tensão que se cria é exatamente resultado disso, consequência de crises constantes da tríade de personagens protagonistas, e comporta todos os conflitos, hesitações e vacilos possíveis naquele registro. Não há existência passiva no conjunto de ações assumidas pelos três, e suas decisões movem a trama. O narrador não deseja esconder as pistas, os motivos dos seus personagens. Ao contrário, ele espera que o espectador os decodifique. Nesse sentido, a razão de Ray opera de modo distinto a de um Bergman, Ozu ou de Fellini, por exemplo, que operam mais no mistério.

Satyajit Ray era um observador engenhoso e responsável. Audacioso, em A Casa e o Mundo ele não só “comenta” a cultura oficial, mas a interpreta compreendendo suas verdades mais íntimas – e suas falsidades também, seus vespeiros e suas contradições. Parece ser a melhor forma de fazer cinema político.

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Vale acompanhar as redes da Mostra de Cinemas Africanos. A Mostra coordena o Cine África, que está promovendo debates também com uma galera muito qualificada para falar sobre os filmes africanos. Espia a programação aqui. Além do Cine África, segue até o dia o 7 de junho o We Are One – A Global Film Festival, e o pessoal da Mostra publicou uma página com as exibições dos filmes africanos que integram a programação do festival, que são disponibilizados no YouTube.

Pedro Henrique Gomes

Festivais de cinema liberam catálogos e exibições inéditas online

Pedro Henrique Gomes
24 de abril de 2020

Há um mundo de alternativas aos serviços de streaming que dominam o mercado. E com filmes melhores. Enquanto o isolamento social segue uma necessidade fundamental para conter a disseminação novo coronavírus, vários festivais, cineastas e mostras estão liberando filmes de seus catálogos online, com acesso gratuito. Filmes raros, estreias, descobertas, enfim, outros mundos a explorar.

No Bazofi, por exemplo, os filmes têm horários de exibição no canal do festival no YouTube, aqui. A programação sai todos os dias na página do Facebook, aqui. Vai até o dia 3 de maio.

O Festival Internacional de Cinema de Brasília também está com programação online e gratuita. Além de uma retrospectiva Kirk Douglas, com 5 filmes do ator, tem o novo filme do Albert Serra, Liberté (que, por sinal, fica em exibição apenas até o 25 à noite). O Festival termina no domingo, 26. Para assistir aos filmes, basta fazer um cadastro rápido na Locke, também gratuito. Acesso aqui.

O Fantaspoa – Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre está com uma programação online com algumas dezenas de filmes disponíveis no Fantaspoa at home. Após perder patrocinadores, o Festival está buscando condições de produção de sua próxima edição. Há uma campanha de financiamento coletivo em curso até o dia 28 de abril.

O Instituto Goethe, em parceria com a Filmgalerie 451, manterá uma seleção de filmes online até o final de junho. Para ver a lista de filmes disponíveis no Goethe on demand, eis o link.

O catálogo online do Arsenal Institut liberou dezenas de filmes, com incentivo e apoio dos cineastas. Tem coisa fina por lá.

O MyFrenchFilmFestival liberou cerca de 70 curtas-metragens. Para assistir, o site também pede um cadastro rápido. Os filmes ficam abertos até o final do mês, neste link.

A programação virtual da Cinemateca Capitólio está publicando, diariamente, links para diversos filmes no Facebook e no Instagram. Todo dia, às 18h, um filme novo é colocado por lá. Além dos filmes, a Cinemateca está publicando as seções “Histórias do Cinema Gaúcho” e “Cartazes do Cinema Gaúcho”, que resgata o trabalho dos profissionais da Cinemateca na preservação da memória do cinema gaúcho. Vale acompanhar.

Bônus: os curtas dos cineastas da produtora mineira Filmes de Plástico já estavam disponíveis no canal do YouTube, mas fica a recomendação extra. Os filmes são incríveis. São da Filmes de Plástico dois dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, No Coração do Mundo, do Gabriel Martins e do Maurilio Martins, e Temporada, do André Novais Oliveira.

Pedro Henrique Gomes

Cinemateca Capitólio nas garras da ambição

Pedro Henrique Gomes
18 de janeiro de 2020

Está marcado para fevereiro a abertura de um edital da Prefeitura de Porto Alegre para terceirizar a administração da Cinemateca Capitólio.

A defesa do processo licitatório, evidentemente, coincide com a justificativa de que a mudança melhoraria a gestão da Cinemateca. Os argumentos são insuficientes. O que está embutido nesse processo é a ideia de redução do risco: a principal variável capaz de mobilizar as forças da política institucional nos tempos que correm, haja vista a obscena e brutal intencionalidade da atual administração municipal em deslegitimar um espaço cultural como a Cinemateca. Como o risco é algo a que se pode apenas “mitigar”, jamais eliminar por completo, os projetos de transferência de gestões públicas para gestões privadas podem ser alargados e continuados sempre que couberem no discurso corrente. A gestão ficaria com uma empresa terceirizada, tal como no Auditório Araújo Vianna, que desde então é um lugar insosso e elitizado.

A programação da Cinemateca é de uma riqueza imprescindível, traduzida nas dezenas de mostras, sessões especiais e exibições exclusivas que tiveram lugar na sala de cinema desde sua abertura, em 2015. Além disso, a Cinemateca Capitólio não é apenas um cinema, mas uma biblioteca e um espaço de pesquisa, um acervo cultural e um espaço de formação audiovisual (portanto educacional). Esse espaço não deve ser terceirizado, pois a qualidade de seus serviços é que ficará sob ameaça.

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A ACCIRS – Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, da qual faço parte, publicou uma nota sobre essa movimentação que pode fragilizar e precarizar a administração da Cinemateca, caso o processo seja levado a cabo. Transcrevo abaixo.

Desde a sua inauguração, em 2015, a Cinemateca Capitólio se consolida como uma referência em preservação e o lugar por excelência do exercício da cinefilia em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul.

As dificuldades financeiras que afetam equipamentos culturais e a própria produção artística do país inteiro têm sido dribladas, na Capitólio, graças a um trabalho competente que alia a guarda da memória audiovisual com a programação de filmes importantes, das mais variadas épocas e procedências, alguns deles raros e até mesmo inéditos nas salas da cidade, do Estado e do país.

Os projetos implementados incluem iniciativas de formação de plateias, festivais, mostras, cursos e encontros nos quais são debatidas questões prementes da nossa sociedade.

É por isso que a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) se mostra preocupada com o processo de transferência da gestão da cinemateca para uma Organização Social (OS), ou “contratualização”, processo este que tem sido levado a cabo pela prefeitura da capital gaúcha nos últimos meses.

Lembramos que iniciativas semelhantes têm dado resultados negativos do ponto de vista financeiro (como ocorreu com o Museu de Arte do Rio de Janeiro, o MAR) ou de programação (como ocorreu com a Cinemateca Brasileira), o que, caso se repita com a Capitólio, trará consequências desastrosas para a nossa cultura.

Em nome da continuidade de um modelo que mantenha a excelência da cinemateca tal qual ela se apresenta hoje, e vislumbrando o aprimoramento dos resultados conquistados nesses quase cinco anos de atuação, a ACCIRS firma posição contrária às mudanças na forma como elas estão anunciadas e pede que a prefeitura ouça os apelos da comunidade artística e cinéfila gaúcha antes de prosseguir com o projeto nos moldes em que ele está sendo divulgado à sociedade.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Paraíso Deve Ser Aqui

Pedro Henrique Gomes
3 de janeiro de 2020

Em busca de financiamento para seu próximo filme, Elia Suleiman sai da Palestina para Europa e, de lá, para a América tentando viabilizar a produção de seu novo trabalho. Na condição de artista observador interessado nas coisas que correm, Suleiman visita o mundo para voltar, insólito, à sua Terra. O cineasta, personagem (interno) do filme, e o narrador, autor (externo) da obra, deslocam as instâncias da narração para o estudo da própria condição metafórica desses encontros narrativos, e o resultado de suas imagens não preenche os requisitos para um humanismo de fachada. O Paraíso Deve Ser Aqui abre um diálogo e questiona a instituição que expropriou a Palestina dos palestinos em forma de ocupação colonial, rindo com tristeza e duvidando com a esperança de um futuro melhor.

Em alguns momentos, o filme me remeteu a uma sequência de Week-end à Francesa (1967), de Godard, no qual um homem pergunta a outro, no meio da estrada, se ele está em um filme ou na realidade? Em Godard, a resposta está na condição claramente cinematográfica das imagens. Para Suleiman, cuja narrativa explora os requisitos de um cinema de humor sofisticado, a resposta, de forma semelhante, consiste em oferecer uma observação do mundo a partir de um olhar em trânsito entre o universo do real e o da ficção de modo didático e frontal, postos como questões para o cineasta e seus motivos cinematográficos. Este seu mais recente filme faz exatamente esse exercício, não se baseando no mundo, mas sendo o mundo.

Como em Godard, o exagero não é caricatura, mas observação e análise do conjunto de um repertório historicamente construído, inclusive e precisamente por meio das imagens que circulam, tencionam e codificam o mundo contemporâneo. Em um mundo assim, nem há necessidade de guerras com canhões, snipers e foguetes para sua horripilância se manifestar. Suleiman recorre, claro, a uma encenação hiperbólica de aspectos que caracterizam as culturas por onde o seu personagem-cineasta passa, como Paris e Nova Yorque. O militarismo surdo, expresso didaticamente, inviabiliza a promoção do diálogo na megalópole americana, individualizando o tecido social. Ricardo Piglia escreveu, em seu O Caminho de Ida, cujo narrador-personagem não é senão um grande observador, assim como o Suleiman de O Paraíso Deve Ser Aqui, que é por isso que, não conseguindo recorrer aos colegas de trabalho (possibilidade de uma organização coletiva via sindicato), um trabalhador bem resolve subir no alto de um prédio e atirar contra seus compatriotas para apurar suas angústias individuais (que, todavia, certamente não são só as suas).

Quando as pessoas ocupam as ruas, o que ocorre é confusão, atropelo e fúria. Na Paris encontrada pelo cineasta, do alto da janela de onde está abrigado, localiza um imenso vazio nas ruas e que em todos os lugares é decodificado por uma série de episódios burlescos, capilarizados pela presença interventora do Estado, mediado pelas forças policiais e ironizado sem dó pelo filme. A polícia parisiense frontalmente ignora a presença de um Palestino num café quando precisa realizar sua inspeção; por outro lado, a norte-americana aprofunda a paranoia terrorista desconfiando de qualquer um.

Não raro, os fragmentos que lidam mais diretamente com a noção de identidade e nacionalidade são os mais cômicos, talvez justo pela insatisfação com a forma como acontecem: nunca há respostas, apenas moderadas reações faciais diante de mundos que lhes são estranhos e hostis. O debate com os estudantes de cinema, em Nova Yorque, por exemplo, e a cena em que uma produtora diz a ele que “seu filme não é suficientemente Palestino”. A noção de identidade é trazida didaticamente, inclusive, pela voz do próprio personagem: “Eu sou palestino”, diz a um taxista empolgado com o encontro. Evocando aquilo que Machado de Assis chamou de “certo instinto de nacionalidade”, a tarefa do autor, tomada pelos chifres por Suleiman, consiste em estudar o mundo em que vive e as implicações de cada ação individual no conjunto da sociedade, provocando tensões, colocando as contradições em cena.

Consciente de que essa representação não se dá sem uma outra tensão, imanente,  o cineasta sabe que, da América Latina e de Cuba ao cinema do continente africano, entre outros, a possibilidade de imagens de fora do eixo narrarem por dentro do eixo a partir da condição do estrangeiro sempre espantou o olhar Ocidental, ansioso em conhecer como o terceiro-mundismo via e vê a si mesmo. Suas imagens mostram isso. Ciente dessa tensão,  Elia Suleiman se encarrega de dar ao espectador um retrato surreal daquilo que a realidade é incapaz de cativar.

It Must Be Heaven, de Elia Suleiman (Palestina/Alemanha/Catar, 2019). Com Elia Suleiman, Gael García Bernal, Tarik Kopty, Kareem Ghneim.

Gustavo Chagas

América Latina, 2019 – Parte 2

Gustavo Chagas
26 de dezembro de 2019

O ano de 2020 da América do Sul será uma extensão do turbulento 2019. A observação não é tanto um exercício de futurologia, senão uma análise das pautas que marcaram os últimos 12 meses. Peguemos alguns exemplos…

A Venezuela tem alguma perspectiva de solução do impasse político que iniciou neste ano? Nicolás Maduro não parece disposto a negociar e ainda conta com a sustentação da cúpula militar do país. O líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, desidratou e não parece mais ser o “autoproclamado” presidente que se vendeu no primeiro semestre. A violência segue nas ruas, com ataque a bases militares, e a escassez de alimentos persiste, com mais uma ceia de Natal suprida com aves russas. A Colômbia, ao lado, com todos os seus problemas, vive reflexos da situação venezuelana.

Do norte, vamos para o sul. A Argentina, mesmo com troca de governo, não apresenta sinais de recuperação. É verdade que Alberto Fernández não completou um mês na Casa Rosada, mas as políticas implementadas pelos peronistas repetem as que fracassaram com o neoliberalismo de Mauricio Macri. Aumentos de impostos foram aprovados pelo Congresso e também devem vigorar na populosa província de Buenos Aires, que cerca a capital do país.

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O tranquilo Chile entrou em erupção e até agora o presidente Sebastian Piñera não acertou a medida capaz de satisfazer uma população incomodada com anos de desequilíbrio econômico e social. A crise prossegue, bem como as incertezas sobre o futuro político do país

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A Bolívia, com a renúncia de Evo Morales, vive expectativa de uma nova eleição, com garantias de transparência. As primeiras pesquisas apontam uma divisão entre Carlos Mesa, ex-presidente moderado e opositor de Evo, e um jovem líder cocaleiro do partido do líder de origem indígena. Os artífices da ruptura colocada em prática vão aceitar os resultados das eleições organizadas por eles próprios?

Peru e Equador viveram dias intensos pela corrupção e decisões econômicas controversas, respectivamente, que acabaram desaguando nas ruas, em protestos e reações oficiais violentos. Já Brasil e Paraguai estão em um período de estabilidade, no qual, de forma contraditória, a instabilidade é a regra. A novidade mesmo vai ficar com o Uruguai, com novo governo.

Pedro Henrique Gomes

2019 em 11 filmes

Pedro Henrique Gomes
20 de dezembro de 2019

O ano foi interessante. Mesmo tendo visto menos filmes em comparação com os últimos anos, foi mais difícil formar a lista, deixando bons títulos fora dela. Mas toda lista é uma definição de critérios, de algum rigor, de uma possibilidade de identificar um conjunto representativo de filmes. Não é trivial o fato de que, com a exceção de dois ou três, os demais explicitem politicamente as tensões e as contradições que suas imagens fazem circular, ecoando – com licença – uma “relação espiritual” entre eles. A contragolpe da amargurada reversão nas políticas culturais (e em todas as outras) que este ano experimentou, principalmente o cinema brasileiro mostrou fôlego e renovação. Parece-me desleixada uma lista que se esqueça de pelo menos um filme nacional lançado em 2019. Sem ir muito além disso, digo logo que os meus filmes favoritos, neste ano, são estes:

  1. O Irlandês, de Martin Scorsese (EUA)
  2. Parasita, de Bong Joon-Ho (Coréia do Sul)
  3. Imagem e Palavra, de Jean-Luc Godard (França)
  4. Bacurau, de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho (Brasil)
  5. No Coração do Mundo, de Gabriel Martins e Maurilio Martins (Brasil)
  6. Synonymes, de Nadav Lapid (Israel/França)
  7. Vidro, M. Night Shyamalan (EUA)
  8. Nós, de Jordan Peele (EUA)
  9. Temporada, de André Novais (Brasil)
  10. Era uma vez em… Hollywood, de Quentin Tarantino (EUA)
  11. Santiago, Itália, de Nanni Moretti (Itália)