Gustavo Chagas

América Latina, 2019 – Parte 2

Gustavo Chagas
26 de dezembro de 2019

O ano de 2020 da América do Sul será uma extensão do turbulento 2019. A observação não é tanto um exercício de futurologia, senão uma análise das pautas que marcaram os últimos 12 meses. Peguemos alguns exemplos…

A Venezuela tem alguma perspectiva de solução do impasse político que iniciou neste ano? Nicolás Maduro não parece disposto a negociar e ainda conta com a sustentação da cúpula militar do país. O líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, desidratou e não parece mais ser o “autoproclamado” presidente que se vendeu no primeiro semestre. A violência segue nas ruas, com ataque a bases militares, e a escassez de alimentos persiste, com mais uma ceia de Natal suprida com aves russas. A Colômbia, ao lado, com todos os seus problemas, vive reflexos da situação venezuelana.

Do norte, vamos para o sul. A Argentina, mesmo com troca de governo, não apresenta sinais de recuperação. É verdade que Alberto Fernández não completou um mês na Casa Rosada, mas as políticas implementadas pelos peronistas repetem as que fracassaram com o neoliberalismo de Mauricio Macri. Aumentos de impostos foram aprovados pelo Congresso e também devem vigorar na populosa província de Buenos Aires, que cerca a capital do país.

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O tranquilo Chile entrou em erupção e até agora o presidente Sebastian Piñera não acertou a medida capaz de satisfazer uma população incomodada com anos de desequilíbrio econômico e social. A crise prossegue, bem como as incertezas sobre o futuro político do país

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A Bolívia, com a renúncia de Evo Morales, vive expectativa de uma nova eleição, com garantias de transparência. As primeiras pesquisas apontam uma divisão entre Carlos Mesa, ex-presidente moderado e opositor de Evo, e um jovem líder cocaleiro do partido do líder de origem indígena. Os artífices da ruptura colocada em prática vão aceitar os resultados das eleições organizadas por eles próprios?

Peru e Equador viveram dias intensos pela corrupção e decisões econômicas controversas, respectivamente, que acabaram desaguando nas ruas, em protestos e reações oficiais violentos. Já Brasil e Paraguai estão em um período de estabilidade, no qual, de forma contraditória, a instabilidade é a regra. A novidade mesmo vai ficar com o Uruguai, com novo governo.

Reportagens Especiais

Venezuela . a distopia após duas décadas de Chavismo

Alvaro Andrade
19 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

Em Caracas, no bairro 23 de Enero, os olhos de Hugo Chávez ainda pairam sobre o povo. O grafite em preto e branco com la mirada del comandante está por todos os lados e parece manter a vigilância sobre o reduto de maior apoio ao chavismo na Venezuela. A região, a menos de um quilômetro do Palácio Miraflores, sede do regime, é estratégica, pois ali estão concentrados os colectivos, grupos paramilitares criados para operarem como milícias de segurança nos bairros e que hoje são um braço civil armado do governo. No topo de um morro, à direita da entrada para o mausoléu 4 de Febrero, onde estão os restos mortais do ex-presidente, uma capela religiosa leva seu o nome e sua fotografia está posta em um altar, cercada por velas acesas e outras imagens. “Chávez era do povo, por isso é tão amado”, diz o porteiro do quartel 4F, um simpático caraquenho vestido com a indefectível camisa vermelha do PSUV, o partido socialista que comanda a Venezuela.  

Pelo caminho, parte do legado chavista pode ser notado nos incontáveis prédios de Misión Vivienda, plano de moradia gratuita que, segundo dados oficiais, já alcançou os 2 milhões de imóveis distribuídos gratuitamente ao povo. No entanto, basta afastar-se das regiões centrais de Caracas para  perceber que o bolivarianismo ainda ficou distante de muita gente.Em Petare, maior favela da América Latina, composta por 80 bairros em diferentes morros de Caracas, a insatisfação fervilhava em meados de dezembro. Moradores bloquearam a via expressa que fica logo abaixo e foram reprimidos pela Ordem Interna, um grupo militar destinado especificamente a conter manifestações.

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“Nos falta água, nos falta luz. Não há comida, nem trabalho. Prometeram um pedaço de pernil e nem isso chegou”, reclama um aposentado diante de uma oficina instalada às margens de um dos becos da favela

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Apesar da má reputação de violência e territórios controlados, Petare não se difere muito das favelas brasileiras. Casas sem reboco, vielas, escadarias, falta de saneamento e gatos de luz. Mas na capital venezuelana, a fome mata os sorrisos e todos repetem o mesmo. “Estamos  hartos!”, ou seja, cansados, exaustos, fartos de esperar. “Esse era um governo que se dizia do povo, mas já nos esqueceu faz tempo”, diz o mecânico que se desdobra para consertar um dos tradicionais veículos antigos que, assim como o país consome muito e vive cheio de problemas.

LEI DE TALIÃO

Dois retalhos de calça jeans servem como bandagem para conter a hemorragia nas pontas dos braços onde antes havia mãos; o rosto está empapado de sangue, pois os olhos e a língua também foram arrancados. Leocer Maiz, um jovem de 19 anos, foi entregue assim, com vida e consciente, no hospital da cidade de El Callao, no sul venezuelano. Ele sofreu as consequências por ter praticado uma série de roubos na região controlada pelos pranas, máfias locais que exploram ouro ilegalmente e que jamais perdem a chance de reafirmar sua autoridade.

A  mutilação de Maiz não foi um fato isolado. As máfias operam sem piedade na região conhecida como Arco Minero, a cerca de 250 quilômetros da fronteira com o Brasil. São cinco povoados às margens da rodovia Troncal-10, em uma área que parece esquecida pelo governo venezuelano.

Apesar da presença militar em postos de controle a cada 50 quilômetros, quem realmente manda na região são os garimpeiros. Las Claritas, um povoado sugestivamente conhecido como Sodoma e Gomorra, é o retrato brutal dos contrastes venezuelanos.

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Às margens das crateras e do barro da estrada que se mistura ao lixo e ao esgoto a céu aberto, se espalham vitrines de lojas com fartura digna de áreas comerciais de grandes cidades.

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“Tudo que falta na Venezuela se consegue aqui: remédios, pneus, máquinas. Também tem drogas e prostituição. Onde tem ouro, tem dinheiro, então essas coisas vêm junto”, conta Manoel González, taxista de El Callao já acostumado com a estética decadente da região. “Se não incomodar ninguém aqui, nada vai te acontecer. Mas nem pensa em filmar ou fotografar”, adverte.

O sol escaldante aquece o piso úmido e o resultado é um abafamento sufocante. Além do forte odor de esgoto, do permanente fluxo de motos barulhentas e caminhões a poucos centímetros da calçada, o semblante de quem está por ali não é nada convidativo. Bancas compram e vendem ouro à luz do dia; um grande mercado oferece de bananas a animais recém abatidos, passando por analgésicos, motosserras e muita bebida alcóolica.

Mesmo tão inóspito, o Arco Minero se converteu em uma das últimas esperanças de trabalho dos venezuelanos dentro do próprio país. Alexiis Urquia Rivas, 24 anos, tenta manter-se afastado dos problemas, mas conhece bem os riscos da região. “Aqui ainda é possível trabalhar e conseguir um pouco mais do que no resto do país. Se encontrar ouro, ganho dinheiro. Muita gente está vindo de outros estados com essa ideia, mas muitas vezes se assustam quando encontram a realidade”.

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EXPROPRIAÇÕES VIRARAM MATO

A crise se agravou desde a morte de Chávez, em 2013. O sucessor, Nicolás Maduro, que não chega à sombra do seu carisma, herdou uma crise diplomática permanente, dívida pública em alta e queda brutal no preço do petróleo, o que em parte ajuda a explicar a dimensão das dificuldades venezuelanas, além do agravamento dos bloqueios econômicos e sanções internacionais.

Enquanto Maduro implementa sucessivos planos econômicos, concede reajustes salariais para tentar conter a inflação e usa o bloqueio como justificativa para todos os males, a produção interna é praticamente nula e o país depende essencialmente de importações. A economia pouco diversificada é outro fator que agrava a situação, levando ao desabastecimento. E quando a demanda é maior que a oferta, naturalmente há  inflação.

Poucos meios de produção tomados pela revolução estão organizados e funcionando, especialmente na produção de alimentos. A maioria fica relegada ao abandono, agravando a escassez. Segundo um levantamento do Observatório de Direitos de Propriedade, 1.359 empresas foram expropriadas entre 2005 e 2017, além de mais de 5 milhões de hectares de terras, segundo a Federação Agrícola do país.

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A produção no campo minguou, as empresas alimentícias foram fechadas, o bloqueio externo se agravou e os produtos desapareceram das prateleiras.
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Desde indústrias de lácteos, passando por fábricas de cimento ou insumos agrícolas, a mão do Estado chegou a diversos setores da iniciativa privada, mas não deu sequência ao trabalho. As empresas que não foram estatizadas acabaram abandonando o país, gerando desemprego e pulverizando a classe média.

Em Valencia, multinacionais como GM, Ford, Crysler e Good Year encerraram operações por falta de matéria-prima e deixaram um rastro de mais de 10 mil desempregados na cidade, um polo industrial da região oriental. Hoje, vê-se obras inacabadas, apagões, racionamento de água e rodovias sem manutenção; as gôndolas dos supermercados já não estão tão vazias, mas os preços seguem completamente distantes do poder aquisitivo representado pelo salário mínimo. “Nosso hotel tinha ocupação média de 80%, hoje estamos em 10 a 15%”, lamenta o brasileiro Antonio, radicado há 40 anos na Venezuela. “O comunismo não deu certo. Eu, que sou empresário, já tenho dificuldade. Imagina esse povo todo na rua. As pessoas não tem o que comer, mas isso não era assim”.

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A ESPERANÇA É O MADURO DOS OUTROS

Dificilmente faz frio na Venezuela. Naquela noite de começo de janeiro, nada no céu indicava que iria chover. Jéferson, um menino de 12 anos, percebe que vou dormir na rua após o segurança pedir para me retirar do saguão do terminal de Puerto Ordaz, que será fechado na madrugada. O garoto se aproxima e me convida a dormirmos juntos sob a marquise. Gentilmente estende um dos cobertores e pede para que eu retire os tênis. “Mais tarde vai chover, mas assim você sente a brisa fresca e dorme melhor”. Ato contínuo, ele toma a outra manta e me cobre com delicadeza. “Estás cômodo?” Quase não consigo responder e me ponho a chorar, emocionado com tamanha doçura. Ele senta ao meu lado, me dá um abraço e diz para eu não ter medo. “Aqui estamos seguros”. Logo ele adormece e eu fico acordado a tempo de ver a chuva chegar. É minha última noite na Venezuela.

Antes de dormir Jéferson me contou que fugiu de casa há 5 meses, onde morava com a avó após os pais ‘viajarem’ para outro país, que ele não sabe qual. Não vai a escola. Sua vida e sua casa são o aeroporto de Puerto Ordaz, no centro-sul. Sobrevive da boa vontade dos funcionários e dos passageiros que não conseguem fugir de tanta simpatia. “Bom dia, tudo bem? Que faça boa viagem!”, exclama ele ao amanhecer, distribuindo sorrisos com a cara ainda amassada. O dia começa, os aviões pousam e decolam e ele logo se dispersa em meio ao rebuliço do aeroporto.

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Sigo conversando com os trabalhadores locais e, sabendo que sou brasileiro, fazem uma pergunta recorrente:
E o Bolsonaro, quando chega?

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De norte a sul, sufocados pela crise, é difícil encontrar quem se oponha a algum tipo de intervenção para ‘libertar’ o país. A recente escalada diplomática já era vista com muita esperança em meados de janeiro, quando a oposição articulava com governos do exterior o isolamento do presidente reeleito, Nicolas Maduro. Assim que ele foi empossado, o presidente da Assembleia Nacional, que teve poderes cassados pela Suprema Corte, autodeclarou-se presidente interino. Juan Guaidó, um deputado outsider oriundo dos protestos de 2014, assumiu o enfrentamento aberto com Maduro e convocou as Forças Armadas a apoiá-lo no golpe, mas ficou apenas com parte do apoio popular e estrangeiro.

O FUTURO

“As coisas pioraram muito desde que tu partiu. Os preços subiram ainda mais e a polícia está mais violenta. Prenderam meu sobrinho simplesmente porque ele tinha mensagens combinando que iria ao protesto do dia 23 de janeiro”, diz Jose Zerpa, um dos amigos feitos na Venezuela ao longo dos 20 dias de reportagem. Assim como ele, outros relatam sua esperança com as manifestações de apoio da comunidade internacional.

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“Eu fui às ruas, não podemos mais conviver com Maduro e esse regime”
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Em seu discurso de posse na contestada e desacreditada reeleição, Maduro prometeu combater a corrupção e corrigir rumos, mas frente a circunstâncias tão dramáticas as palavras já não dispõem de credibilidade para aplacar os críticos, muito menos colocar comida na mesa daqueles que, por falta de opção, excesso de persistência ou um tanto de malandragem dia a dia sobrevivem na terra de Bolívar.

 

Reportagens Especiais

Venezuela . da esperança ao desespero

Alvaro Andrade
17 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

O carro começa a falhar quase no topo da colina enquanto o motorista, Hermanito Manuel, chacoalha o volante buscando as últimas gotas de gasolina do Fiesta 2006 que nos traz desde Santa Elena do Uairén, fronteira da Venezuela com o Brasil. Estamos a caminho de Ciudad Bolívar em uma travessia de 750 quilômetros entre reservas indígenas e áreas de garimpo ilegal. Após vencer o pico da subida, o carro vai no embalo até encostarmos no fim de um fila quilométrica de onde só seria possível prosseguir se conseguíssemos abastecer. São 7h15 do primeiro dia de uma jornada de mais de 2000 km por terra, atravessando a Venezuela de sul a norte por cinco estados para observar o cotidiano da crise que se transformou no novo foco de tensão da geopolítica mundial.  

Nessas primeiras horas da manhã, o clima lembra o de um Mad Max pacífico: centenas de veículos esperam por gasolina há pelo menos quatro horas no acostamento de uma rodovia em área deserta do planalto venezuelano. O posto, operado por uma comunidade indígena, já recebeu combustível, mas o reabastecimento não foi retomado porque o gerador elétrico está, supostamente, com problemas.  Apesar de uma aparente displicência por parte dos donos do estabelecimento, os motoristas riem, fazem piadas, fumam e esperam sem qualquer traço de indignação diante da dificuldade para obter gasolina no país com as maiores reservas de petróleo do planeta.

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“Neste país só temos o direito de esperar”, ironiza um motorista na roda de conversa

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DA BONANÇA AO CAOS

As filas, em qualquer lugar e para qualquer coisa, são o retrato de um povo à espera da revolução prometida, mas que se tornou uma miragem. No período em que esteve no poder, Hugo Chávez aprovou e submeteu a referendo uma série de mudanças profundas nas leis do país, como a possibilidade de reeleição indefinida, a extensão do mandato presidencial para seis anos, o fim do latifúndio, a redução da jornada de trabalho de 8 para 6 horas semanais e abriu caminho para as expropriações de ‘empresas improdutivas’. Surfando na abundância do petróleo, responsável por 95% das exportações e com cotação superior a U$$ 100 o barril, o chavismo teve sua fase de ouro, desfrutou de amplo apoio popular e logrou cumprir parte das suas promessas, especialmente aos mais pobres, com a distribuição de moradias e ampliação do ensino. Mas também perseguiu opositores, aparelhou o Estado e, em nome da defesa da soberania e autodeterminação, descambou para o autoritarismo.

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Os dias atuais em nada lembram os vigorosos sonhos manifestados na posse de Chávez , em 2 de fevereiro de 1999

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Qualquer atividade cotidiana exige paciência e planejamento, pois certamente será necessário esperar. Em Caracas, filas pelo transporte público somam mais de 200 pessoas ao fim do dia; em Ciudad Bolívar, quase 100 se escondem do sol sob uma marquise diante de uma agência bancária que permite saques de 1000 bolívares (U$$ 1,50); em Valencia, há fila para comprar o CLAP, o kit de comida subsidiada vendida pelo governo para tentar aplacar a fome; em Puerto Ordaz, fila para comprar pão na padaria que conseguiu farinha.

Nos últimos  cinco anos o PIB venezuelano teve uma queda de 37%; segundo a FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, 3,7 milhões de venezuelanos estavam desnutridos em 2018; 87% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo estudo de uma universidade local; o governo sofre com isolamento internacional e, dentro de casa, está imerso em crise política e institucional permanente. Nicolás Maduro, o sucessor,  carrega nos braços pelo menos 125 mortos em repressão de protestos e graves acusações de prisões ilegais, tortura e violação de direitos humanos por entidades como a ONU e a Human Rights Watch

Com uma economia colapsada e inflação estimada pelo FMI em absurdos 1.000.000.000%, a Venezuela ainda é considerada o país mais violento da América Latina, com 81,4 mortes para cada 100 mil habitantes. Escassez, infra-estrutura deficiente, apagões, falta de dinheiro em espécie, corrupção e uma crise política incessante impulsionam a maior diáspora de que se tem notícia no novo continente. Os números oficiais apontam quase três milhões de imigrantes, mas quem vive na Venezuela garante que o número é pelo menos o dobro – ou mais de 10% dos seus 31 milhões de habitantes. Para muitos, chegar ao Brasil significa a chance de recomeçar. 

 

SEQUELAS DE CARACAS

Sentado como pode sobre um colchão, ainda de cueca ao lado de uma garrafa pet cheia de urina, Jesús Ibarra emite com dificuldade as palavras entrecortadas por longas pausas, até que seu pai entende que ele deseja vestir-se para conceder a entrevista. O estudante de engenharia de 21 anos ficou 45 dias entre a vida e a morte após cair desacordado no poluído rio Guaire, em Caracas, vítima de uma bomba de gás lacrimogêneo disparada pela polícia, que partiu seu crânio. Ele e o pai imigraram de Caracas de ônibus até chegarem ao Brasil e, em Roraima, ao abrigo Rondon II, montado pela ONU em parceria com o governo brasileiro para mitigar os efeitos da crise imigratória de 2018.

Já sentado, Jesús lembra pouca coisa sobre os acontecimentos que acabaram por render cinco cirurgias, enormes cicatrizes na cabeça e sequelas na fala e no raciocínio que levará para o resto da vida. “Éramos apenas jovens estudantes cansados daquela situação. Alguns amigos não tiveram a mesma sorte porque o regime começou a atirar para matar”, conta. Os protestos de 2017 deixaram um rastro de mais de 120 mortos no país. Ainda sem perspectiva, aguarda pacientemente sua vez de partir para algum canto do Brasil. “Quero recomeçar minha vida”.

À ESPERA DA LISTA

Faltam poucos dias para a partida dos ônibus que fazem a interiorização dos imigrantes venezuelanos para nove estados brasileiros. No abrigo Rondon II, um dos quatro montados pelas Forças Armadas do Brasil na capital de Roraima, há muita expectativa. Assim que a lista com os nomes dos 771 passageiros é afixada em uma das janelas, logo se instala um misto de euforia e decepção entre os selecionados e aqueles que vão precisar aguardar um pouco mais para seguir viagem. O abrigo é um dos seis montados em diferentes pontos da cidade, totalizando 10 mil imigrantes cadastrados segundo balanço divulgado em dezembro.

“Vou para a Paraíba, não sei onde fica, mas qualquer lugar será melhor do que onde viemos”, diz uma das imigrantes enquanto chora e abraça os familiares ao identificar o nome entre os selecionados.  A partida deste contingente ajuda não apenas a eles próprios, mas também outros compatriotas que ainda aguardam nas ruas de Boa Vista a chance de acessar um dos centros de atenção. Apesar do esforço das autoridades brasileiras, o local é um oásis que não dá conta de suprir toda a demanda. Até passar pela triagem, receber documentação e entrar na fila de espera, famílias inteiras, com crianças e idosos, precisam se sujeitar a dormir debaixo de marquises ou em locais improvisados.

LAS OITCHENTERAS

Em outras áreas de Boa Vista a sobrevivência como imigrante impõe condições de vida ainda mais duras. As ruas de chão batido e terra vermelha dos arredores do terminal Caimbé, na zona oeste da capital, são a passarela para meninas e mulheres que tentam caprichar no sorriso e na simpatia – mesmo de barriga vazia.

As “oitchenteras”, como ficaram conhecidas em função do valor médio dos programas, não escolhem hora para trabalhar. Mesmo sob o abafamento constante da região tropical, montam em saltos altos e tentam manter a maquiagem no rosto na sua busca por clientes, mesmo à luz do dia. “Não vou te dizer meu nome porque minha família não sabe que somos putas”, diz uma das garotas, que sequer tem 18 anos. Ao lado da irmã, é econômica nas palavras.

Perguntada sobre as manchas roxas que leva na altura do pescoço, responde tentando demonstrar coragem. “Marcas da vida. Aqui é muito perigoso, mas é a forma que temos de sobreviver.” Em poucos minutos circulando pela área, é possível contar mais de 20 mulheres espalhadas pelas esquinas, sentadas debaixo de árvores e conversando com motoristas em carros de vidros escuros.

Alvaro Andrade
Mulheres trabalham a luz do dia em Roraima.

O bairro, que já não tem as melhores condições de infraestrutura, sofreu o impacto que acompanhou a prostituição. Com a abertura de casas noturnas e bares, o tráfico de drogas e a violência vieram juntos. “Não vejo a hora de sair daqui. Tínhamos um bairro humilde, mas de respeito. Agora tenho medo de sair de casa”, diz Jussara Rodrigues, aposentada de 72 anos que é uma das tantas moradoras da região que colocou a residência à venda. 

Enquanto isso, na Venezuela, a crise política não dá sinais de arrefecimento. A escalada diplomática atingiu níveis ainda mais elevados quando Nicolás Maduro tomou posse para um novo mandato de seis anos – após eleições contestadas por observadores estrangeiros e a oposição. Tanto que Juan Guaidó, um outsider eleito presidente da Assembleia Nacional, autodeclarou-se presidente interino com apoio explícito dos EUA. Ele foi prontamente reconhecido por países latino-americanos e europeus, mas reacendeu a tensão geopolítica internacional ao opor China e Rússia aos interesses de Washington no petróleo caribenho. Maduro ainda resiste graças ao poder político e econômico que concedeu aos militares, com distribuição de cargos e vistas grossas à corrupção. Com lealdade comprada e bem paga, não há sinais de que a caserna se alie a oposição e aos yanakees, aprofundando a crise para níveis inimagináveis. 

Acesse aqui a segunda reportagem da série. Venezuela . a distopia após duas décadas de chavismo

Geórgia Santos

Colectivos brasileiros?

Geórgia Santos
19 de junho de 2019
(Santa Maria - RS, 15/06/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores da população de Santa Maria. Foto: Alan Santos/PR

Durante evento na cidade de Santa Maria (RS), no último sábado (15), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) voltou a defender que os brasileiros tenham acesso a armas de fogo. Mas desta vez, a justificativa foi além da autodefesa e do papinho de que “se os bandidos estão armados, os cidadãos de bem também precisa estar”. Ele disse que é preciso armar a população para evitar golpes políticos.

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“Nossa vida tem valor, mas tem algo muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”, disse Jair Bolsonaro

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Primeiro que eu tenho dificuldades para entender o conceito de liberdade sem vida, mas vamos deixar isso de lado. O que importa aqui é que Bolsonaro descreveu o que se conhece por formação de milícias armadas com objetivos políticos. E ele o fez de forma bastante direta.

É curioso que ele tenha proposto isso enquanto ele é o presidente. Ele quer armar a população para que os cidadãos não permitam que ele se perpetue no poder? Provavelmente, não é o caso. É mais provável que ele queira armar a população para que ninguém permita que ele seja removido do poder.

Infelizmente, a história recente da política latino-americana não permite que essa sugestão seja entendida como mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério ou, pelo contrário, seja encarada como a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Isso porque, pasmem, foi exatamente o que Hugo Chavez fez na Venezuela.

Colectivos 

Os colectivos são organizações comunitárias criadas para dar suporte ao governo da Venezuela e à revolução Bolivariana. Oficialmente, apresentam-se como grupos dedicados à promoção da democracia, à promoção de grupos políticos e atividades culturais. Alguns deles de fato auxiliam com a manutenção de centros de cuidado infantil, programas para as crianças em horário alterando ao da escola, reabilitação de dependentes químicos e ainda atividades esportivas. Mas inúmeras organizações descrevem os colectivos como gangues armadas.

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Os colectivos podem ser considerados, então, grupos paramilitares que operam como milícias e, hoje, são um braço armado do governo
Um braço civil armado do governo

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A ONG Human Rights Watch descreve os colectivos como  “grupos armados pró-governo”  e que assediam e agridem oponentes do governo venezuelano. Entre outras coisas, são acusados de atacar funcionários de canais de televisão de oposição, inclusive enviando ameaças de morte a jornalistas. Estima-se que haja entre 20 e 100 colectivos diferentes na Venezuela.

O jornalista 

Não sei se as “tentações” a que Bolsonaro se refere são as suas ou as de seus opositores – embora eu arrisque um palpite. De todo modo, é interessante que o homem que se elegeu como a salvação a quem temia que o Brasil virasse a Venezuela seja tão simpático aos métodos do vizinho. 

Ao fim e ao cabo, espero mesmo que não passe de uma conjectura minha e que seja somente mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério. Porque duvido que seja apenas a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Acima de tudo está outra coisa.

Para saber mais sobre a situação da Venezuela, ouça nosso podcast aqui.

Foto: Santa Maria – RS, 15/06/2019 / Alan Santos/PR

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #18 Precisamos falar sobre Venezuela

Geórgia Santos
18 de janeiro de 2019

No episódio 18, os jornalistas do Bendita Sois Vós colocam o dedo na ferida. Precisamos falar sobre Venezuela. Êxodo populacional, hiperinflação, violência análoga a guerra, fome e embargos. A Venezuela experimenta uma crise com muitas causas e poucas perspectivas de melhora. Uma crise complexa.

Para discutir as origens e as lógicas econômicas e sociais da convulsão venezuelana, os jornalistas Flávia Cunha, Igor Natush e Tércio Saccol conversam com o também jornalista Álvaro Andrade, que recentemente esteve na Venezuela experimentando de perto a realidade do país militarista. O Oficial de Soluções Duradouras do ACNUR no Brasil, Paulo Sergio Almeida analisa a imigração venezuelana.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon  trazem um sensível relato sobre Caracas.