Geórgia Santos

Vão-se os fascistas, fica a pasta

Geórgia Santos
25 de julho de 2023

O 25 de julho é celebrado na Itália como o dia que representa a queda do fascismo. Há exatos 80 anos, o ditador Benito Mussolini foi deposto e preso. Centenas de milhares de italianos se renderam à desforra pelas ruas e praças das cidades, gritando e cantando de alegria, destruindo bustos de Il Duce e cuspindo em retratos daquele homem atarracado. Os ativistas também libertaram os presos políticos naquele dia, os antifascistas.

É verdade que se cometeu o erro de acreditar que a guerra havia acabado e talvez esse erro tenha sido repetido muitas e muitas vezes, em muitos e muitos lugares, mesmo no Brasil de 2022. Mas a realidade que desse as caras em outro momento, aquele era o dia de uma celebração muito aguardada.

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Tanto que os italianos comemoraram comendo pasta. Muita pasta. E não qualquer pasta

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Eu não sabia da existência da Pasta Antifascista até deparar com o texto da newsletter da Emiko Davies, uma fotógrafa e culinarista que vive em Florença. A Emiko contou que depois de duas décadas de ditadura fascista e cinco anos de guerra, a Itália estava derrotada, a população faminta e ingredientes simples como sal, farinha, arroz, carne e azeite foram racionados até se tornarem virtualmente inexistentes. Consequentemente, já não havia pão ou pasta disponíveis para o povo. E os fazendeiros eram obrigados ou a ceder a terra às necessidades do exército nazista – de quem a Itália era aliada – ou a enviar a maior parte da produção de grãos, carne e leite para a Alemanha.

Reprodução Newsletter Emiko Davies

Como se não bastasse, a boa e velha massa era demonizada pelos fascistas e pelo futuristas. O Futurismo foi um movimento artístico e literário que rejeitava, é claro, o passado. As obras se apoiavam fortemente na velocidade e desenvolvimento tecnológico do final do século 19 e, inclusive, exaltavam a guerra e a violência. Filippo Tommaso Marinetti foi o fundador do movimento e, pasmem, escreveu um manifesto contra a pastasciutta. No livro “La Cucina Futurista”, de 1932, ele dizia que essa “religião gastronômica absurda” deixa as pessoas “pesadas”, “lentas” e “pessimistas”.

Os italianos do sul não gostaram nada dessa bobajada e algumas donas de casa de Puglia, que fica bem no salto da bota, escreveram uma carta em protesto ao manifesto anti-pasta. O prefeito de Nápoles respondeu de maneira inefável: “Os anjos no céu não comem nada além de vermicelli com molho de tomate.” Vermicelli é o que a gente conhece por cabelinho de anjo. Obviamente.

Mussolini apoiou o manifesto do amigo Marinetti porque a ideia cabia perfeitamente na agenda fascista que pretendia tornar a Itália uma nação auto-suficiente. Para se ter uma ideia da dimensão do absurdo, o governo dizia que comer pasta não era patriótico porque o país dependia – e ainda depende – de trigo importado para produzir aquela massinha. Então, em 1925 ele lançou a Batalha pelo Trigo ou Batalha pelo Grão, uma política econômica que tinha o objetivo de “libertar” a Itália da dependência estrangeira. Não deu certo. A inflação aumentou e os estoques diminuíram enquanto os fascistas sugeriam que se comesse arroz.

Peça de propaganda fascista onde se lê: “Coma arroz. O arroz é saúde.” / Reprodução Newsletter Emiko Davies

Então, se massa é algo que os fascistas desprezavam, o amor pela pasta era automaticamente antifascista, lembra Emiko. E os membros da família Cervi, formada por Genoveffa e Alcide e seus sete filhos, levaram isso ao pé da letra.

Eles eram agricultores e também eram partisans – ou partigianos. Ou seja, apoiavam a luta antifascista. Por isso, quando souberam da prisão de Mussolini, montaram uma operação sem precedentes na cidade de Campegine, na Emilia-Romanha.  Eles ofereceram 370 quilos de massa para todos que quisessem celebrar a queda do regime. A pasta foi temperada com manteiga e queijo parmesão, ingredientes que hoje parecem simples, mas que naquele momento foram degustados como o que de mais caro havia. Era um momento em que os italianos viviam sob a brutalidade do fascismo, estavam exaustos, famintos, com os corpos e as almas quebrados. E a família Cervi ofereceu pasta, sim, mas também afeto, generosidade, acolhimento, alegria. Esperança. A polícia tentou dispersar os grupos porque ajuntamentos de mais de três pessoas eram proibidos desde 1931, mas nem os oficiais conseguiram resistir a um prato de euforia, a uma garfada de normalidade.

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E assim, em meio a guerra, a pasta com manteiga e queijo parmesão se tornou um símbolo de liberdade e resistência

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O jantar foi em 27 de julho de 1943, mas a Pasta Antifascista é celebrada hoje, dia 25, a data oficial do fim do Fascismo na Itália. Pelo menos até aquele momento. 

Retra
Retrato da família Cervi / Reprodução Newsletter Emiko Davies

Infelizmente, a história da Família Cervi não acabou em boa nota como essa história belíssima poderia indicar. Pouco mais de um mês depois do jantar, a Itália anunciou que não lutaria mais ao lado dos nazistas e Hitler ordenou uma caça aos “traidores” ao mesmo tempo em que eclodia uma guerra civil entre os Fascistas e os Partigianos. Alcide e os sete filhos foram presos em novembro daquele ano. Os irmãos foram executados um mês depois. O pai conseguiu escapar e só soube do destino dos rebentos quando chegou em casa. Em 1955, ele publicou um livro chamado “I miei sete figli”, em tradução livre, “Os meus sete filhos”. A história virou um filme de Gianni Puccini em 1968 chamado I sette fratelli Cervi.

Eu, que agora faço gosto em comer picanha e gosto menos de leite condensado, que na pressa do dia-a-dia já fiz muita massa puxada na manteiga com queijo parmesão, não conhecia o peso dessa receita. Mas que bom. Vão-se os fascistas e fica a pasta.

Geórgia Santos

Uma tentativa vã, mas bonita, de definir Rita Lee

Geórgia Santos
22 de maio de 2023

No dia em que ela morreu, eu retirei aquele livro da laranja da estante em que separo as obras por cor – uma pequena obsessão que não combina em nada com minha falta de organização. Rita Lee, uma autobiografia (2016), é absolutamente deliciosa. Uma ode honestíssima à própria liberdade escrita por uma mulher que foi esplendorosa, cantou demais, foi louca, fez muita merda, compôs lindamente, sofreu bastante, cuidou dos seus, desafiou poderosos, amou e amou e amou.

Recentemente, ela disse que o compêndio de capa cor de laranja era uma despedida da “persona ritalee”. Mas como que para manter a transparência, ela deixou no papel Outra autobiografia. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, diz ela em trecho do livro, divulgado quando anunciou o lançamento da nova obra. Pois o lançamento foi agendado para 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, também conhecido como hoje.

Ainda não li, mas está lá, na caneta da moça, os detalhes do tratamento contra um câncer de pulmão – cujo tumor ela descobriu em 2021, durante a pandemia, e apelidou de Jair – que acabou encurtando a vida da rainha do rock brasileiro.

Eu não sei se gosto desse título ou rótulo, como queiram, de rainha do rock brasileiro, atribuído subjetivamente em manchetes e lides que anunciavam sua morte, em 08 de maio deste ano. Não que ela não mereça o posto, óbvio que merece. Ninguém mais poderia ocupar esse lugar. Mas é que me parece impreciso. Aliás, em uma entrevista à revista Rolling Stone, em novembro de 2022, ela disse que achava cafona.

Imagem: Reprodução

Por isso, decidi me embrenhar em uma empreitada hercúlea e ingrata de tentar definir Rita Lee. Busquei uma resposta a partir do que ela disse sobre si ao longo dos anos. Lógico que falhei em encontrar UMA palavra que fosse suficiente, mas também fui esperta no processo e isso rendeu uma belíssima lista. Procurei em em entrevistas, canções, nos livros e em alguns dos mais engraçados tuítes da história desse país. Sim, tuítes. Como o de primeiro de agosto de 2011:

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“Já disse e repito: não me levem a sério, sou falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.”

Que figura. Mas não ficaria bem escrever algo como: “Morre Rita Lee, uma falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.” Então continuei.

“E eu lá sou mulher de fazer back-up? Perdi tudo, foda-se eu. Ao atualizar o Iphone eu perdi tudo. Inclusive tudo mesmo. Véia jumenta.”

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Isso também pegaria mal. Mas que é a cara dela, isso é. Alguém que em um belo dia resolveu fazer tudo o que queria fazer, libertando-se de uma vida vulgar e tendo o prazer de ser quem se é. Alguém que era Rita; Rito, o menino baiano; mutante; romântica; menina; mulher; Ritinha; neném que só sossega com beijinho; ovelha negra; baby; erva venenosa; caso sério; ciumenta; guerrilheira; ladra de botas; justiceira; caminhante noturna; ladra de anéis; Gininha; mulher macunaíma; Miss Brasil 2000; luz del fuego; Rita Lica; fruta; Madame Lee; filha; Adelaide Adams; maçã; traficante de colar de LSD; TV Lesão; folclore; irmã; cigarra; Lita Ree; pergunta; ex-AA; fofa; ex-NA; perseguida; licor; ex-presidiária; injustiçada; uma cantora sutil; feminista; feminina; louca; pau pra toda obra; cantora; compositora; instrumentista; vaca; mais macho que muito homem; rainha do próprio tanque; pagu indignada no palanque; porra louca; véia; vaidosa; paulista; paulistana; com nervos de aço; fazedora de barulho; falsa; vovó; Aníbal; corinthiana; chata; viciada em uva-passa; sharon stone; mãe; rolling stone; cabrinha; caprichosa; capricórnia; rainha; esposa; Deus; todas as mulheres do mundo; semente. Semente. Semente.

É realmente difícil definir Rita Lee e, talvez, o prosaico Rainha do Rock atenda melhor às necessidade da mídia tradicional que precisa comunicar ao grande público o tamanho de uma grande mulher. Mas eu não quero desistir, assim como não quero ceder à escolha editorial do G1. Decido, então, recorrer a ele.

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“O Roberto é a Rita também, a Rita é o Roberto também. Em vida ou em morte, tanto em uma circunstância quanto em outra, eu continuo sendo ela e ela continua sendo eu.”

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Roberto de Carvalho é o grande amor de Rita Lee e talvez a única pessoa com autoridade para dizer aos brasileiros quem ela é. Em uma entrevista ao Fantástico, no dia seguinte ao enterro da cantora, ele lembrou da parceira como alguém cheia de vida, de criatividade, de alegria. Ele disse que ela era iluminada.

Está dito, então. Rita é luz.

Mas, por via das dúvidas, vou ler o novo livro em busca das outras personas da rainha fragmentada.

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Imagem de capa: Reprodução / Instagram

Geórgia Santos

A materialização coletiva da dor

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2023

Eu não lembro de como eu soube, mas eu entendi rápido. Em algum momento da manhã do dia 27 de janeiro de 2013 – cedo, muito cedo -, depois de tatear à procura do rádio de pilhas e do controle remoto da televisão, eu olhei através do vidro da janela da sala e lá estava: o estado inteiro havia sido tomado por algo que eu só consigo descrever como a materialização da dor.

 

Fogo. O incêndio da Boate Kiss começou quando o vocalista da banda Gurizada Fandangueira disparou um sinalizador de uso externo dentro do ambiente fechado. A espuma acústica pegou fogo. O local estava superlotado, sem ventilação e só havia uma saída de emergência. Homens com camisetas amarradas no rosto carregavam tantas pessoas quanto conseguiam e tentavam derrubar as paredes com marretas. Os bombeiros foram acionados e chegaram rapidamente, mas não davam conta de controlar a situação a tempo de salvar a todos.

Perplexidade. Era inacreditável que aquilo estivesse acontecendo. Jovens estavam morrendo. Mas quais?

Nomes. Alan, Alexandre, Alex, Alisson, Allana, Anas, André, Andressas, Andrieli, Andrise, Angelo, Ariel, Augustos, Bárbara, Benhur, Bernardo Bibiana, Brady, Brunas, Brunos, Camila, Carolina, Carlitos, Carlos, Cássio, Cecília, Clarissa, Crisley, Cristiane, Daniel, Daniela, Daniele, Danilo, Danrlei, David, Débora, Deives, Diego, Dionatha, Douglas, Dulce, Driele, Elisandro, Emerson, Emili, Ericson, Érika, Evelin, Fábio, Felipe, Fernandas, Fernandos, Flávias, Francieles, Gabrielas, Geni, Gilmara, Giovane, Greicy, Guido, Guilherme, Gustavos, Heitores, Helena, Helio, Henrique, Herbert, Igor, Ilivelton, Isabela, Ivan, Jacob, Jaderson, Janaína, Jennefer, Jéssica, João, Josés, Julia, Julianas, Juliano, Karin, Kellens, Kelli, Larissas, Laureane, Leandra, Leandros, Leonardos, Letícias, Lincon, Louise, Luanas, Lucas,  Luciane, Lucianos, Luís, Luisa, Luiz, Luíza, Maicons, Manoeli, Marcelo, Marcos, Marfisa, Maria, Marianas, Mariane, Marinas, Martim, Marton, Matheus, Maurício, Melissas, Merylin, Micheles, Miguel, Mirela, Mônica, Murilos, Natana, Natascha, Nathiele, Neiva, Octacílio, Odomar, Pâmela, Paola, Patrícia, Paulas, Pedros, Priscila, Rafaéis, Rafaela, Raquel, Rhaissa, Rhuan, Ricardos, Robson, Rodrigos, Roger, Rogérios, Rosane, Ruan, Sabrina, Sandras, Shaiana, Silvio, Stefani, Susiele, Taís, Taíse, Tanise, Thailan, Thaís, Thanise, Tiagos, Ubirajara, Vagner, Vanderlock, Vanessa, Victor, Vinícius, Viviane, Vitória, Walter e Wictor.

Incredulidade. Eu conhecia um dos “Roger”, o Roger Dall’agnol. Filho da Nilvete e do Adão. Ela é dona de uma Floricultura na minha cidade, Paraí. A gente não compra flores na Anil, compra na Nilvete. É nesse ponto que a materialização da dor começa a se tornar coletiva, quando as vítimas passam a ter nomes, pais, irmãos, famílias, empregos. Quando os mortos passam a ter vidas.

Amigos. O nome Renata não estava na lista, mesmo assim eu pensei nela, na minha melhor amiga. Ela me telefonou à tarde, eu acho, já exausta. Ela estava de plantão na Rádio Gaúcha naquele final de semana e, se não me engano, viajou à Santa Maria ainda nas primeiras horas da manhã. Ela, jornalista experiente, chorava muito. Assim como eu não via o nome dela replicado, ela imaginava como teria sido reconhecer o meu e chorava, agradecida e assustada. Choramos as duas, abraçadas de longe, materializando na voz a dor de dezenas de amigas que precisaram reconhecer o corpo das suas.

Dor. À época, eu também era repórter da Rádio Gaúcha. A mim coube acompanhar o destino dos sobreviventes hospitalizados na capital, naquele dia e nos meses subsequentes. Era uma tarefa que eu não gostava de cumprir, conversar com as famílias. Era invasivo. Mas, aos poucos, estabeleci uma relação de confiança com alguns dos parentes que eram, pouco a pouco, consumidos pela dor. Foi no Hospital Cristo Redentor que uma mãe pediu pra ser entrevistada. Ela queria falar ao vivo e assim foi.

Eu não sabia o que ela queria dizer, mas o rosto dilacerado pelo pavor indicava uma reação visceral, uma acusação, provavelmente. Talvez clamor por justiça. Mas ao aproximar a boca da espuma do microfone, a expressão facial foi suavizada. Aquela mãe, que já não estava inteira, só pediu uma oração. Só isso. Não cabia mais nada dentro dela além da necessidade de ter vivo o filho de 21 anos. Mas não adiantou. O filho faleceu naquele mesmo dia e o vazio era avassalador. Era a própria tristeza emaranhada na carne daquela mulher, que aos poucos se transformava em uma estátua de sofrimento. A dor se materializava diante dos meus olhos de novo, e de novo, e de novo.

Morte. Eu nunca esqueci aquele dia 27 de janeiro de 2013 e acho que ninguém vai esquecer, mas a Justiça não respondeu. Ninguém foi responsabilizado. Ninguém foi preso. E a materialização da dor jamais será erodida.

Geórgia Santos

Aquela voz tamanha

Geórgia Santos
9 de novembro de 2022

Na adolescência, o meu primeiro namoradinho ria de mim porque eu ouvia o que ele chamava de música de velho. Um bobo, ele. Ninguém era velho há 20 anos. Mas eu entendo de onde vinha o estranhamento. Naquele período da vida, eu só não ignorava meus contemporâneos quando me equilibrava em cima de um salto alto e me espremia dentro de uma minissaia.

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Sozinha, sem maquiagem, eu ouvia apenas Chico, Bethânia, Caetano, Gil e Gal

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Eu lembro de ouvir o sussurro de Não Identificado ao me apaixonar pela primeira vez, por esse mesmo namoradinho que preferia ouvir System of a Down, e não entender muito bem o porquê de aquela  canção me comover daquela forma. Eu lembro de ensaiar Canta Brasil com exuberância para a semana da pátria, tentando emular uma expressão comovida e uma beleza que só vem com a idade e a rebeldia.

Eu lembro de me esforçar para conseguir cantar Festa no Interior sem desafinar, com seus babados, xotes e xaxados e me frustrar por não ser a melhor cantora do país, ignorando qualquer possibilidade de, talvez, só talvez, ter estabelecido um padrão muito alto. Mas eu também lembro de me redimir quando foi a vez de cantar Samba Rasgado, aquele cantinho no coração que até hoje gosto de imitar. Afinal, quem é que não admira uma cabrocha bonita, cantando e sambando? Aliás, eu lembro do primeiro carnaval com álcool de que participei e todos cantavam Balancê. Tá bem, era uma versão menos nobre, mas lá estava Gal.

Eu lembro, ainda, de causar surpresa ao escolher Divino, Maravilhoso como a minha canção de formatura no Ensino Médio, porque naquela época não era preciso estar atento e forte. Mas eu sempre soube que se trata de uma canção atemporal, feliz ou infelizmente. Ou não é disso que precisamos agora?

Aliás, eu lembro de levar essa mesma canção para a faculdade, com os olhos firmes para este sol e para esta escuridão, e passar noites inteiras ouvindo ao lado do meu melhor amigo. Nós bebíamos e dançávamos e fumávamos riscando DVDs com o uso, sabendo e ao mesmo tempo ignorando que tudo era perigoso, que tudo era divino e maravilhoso. Ali eu lembro de também ouvir Gabriela e me empedrar, consciente de que nasci assim e serei sempre assim.

Eu lembro de pensar que queria que meu casamento fosse igual a Chuva, Suor e Cerveja. A gente se embala, se embora, se embola, só para na porta da igreja. A gente se olha, se beija e se molha de chuva, suor e cerveja. Eu lembro de ser arrebatada pela potência de Vaca Profana e amadurecer com o leite das assombrosas tetas. Assim como lembro de agora, de respeitar minhas lágrimas, mas muito mais minha risada. E eu lembro por causa da voz dessa mulher sagrada.

Mas eu entendo de onde vinha aquele estranhamento do namoradinho apenas hoje, porque naquela época eu não entendia. Não entendia porque nunca vi essas pessoas como anteriores à mim, mas como parte de tudo o que a gente é. No presente, não no passado. E Gal, bom, Gal jamais seria anterior à mim, porque sempre esteve no futuro, mais livre do que toda a minha geração, por isso aquela voz tamanha.

Ela cantou tudo e todos. Ela provocava aquele povo com casaco de general, cheios de anéis, aos mostrar a virilha no biquíni vermelho da capa de Índia, em 1973. Ela libertava todas as mulheres e afrontava o conservadorismo quando usava batom vermelho e cantava com um violão na mão e pernas abertas. Ela segurava a onda tropicalista no osso quando os outros doces bárbaros estavam exilados em Londres. Ela fumava o que queria nas dunas que ficaram com seu nome. Ela enfrentava o autoritarismo na base do grito, atenta e forte, sem tempo de temer a morte. Ela escancarava a hipocrisia com o seio à mostra enquanto conclamava o Brasil todo a mostrar a cara, em 94. Ela foi nossa primeira diva pop, a Gracinha, a Gaúcha do Giló. Gal foi Legal, Índia, Tropical, Baby, Profana, Bem, Mal, Barato, Total, Plural, Fa-Tal. 

Gal Costa morreu hoje, dia 09 de novembro de 2022, aos 77 anos. Eu queria fazer uma canção pra ela, singela, brasileira, mas não sei como. Por isso, escrevo uma ode com a minha voz adolescente, juntando pedaços do quebra-cabeças da minha formação emocional. Não sei, comigo ainda não vai tudo azul, mas contigo, Gal, vai tudo em paz.

Geórgia Santos

Parece que faz 200 anos

Geórgia Santos
7 de setembro de 2022

 

O Brasil sempre teve essa cara e esse jeito de terra prometida. Como é que diziam, mesmo? “Brasil, o país do futuro”. Eu sou cria da democracia, tenho a mesma idade da Constituição, então, para mim, é fácil ver de onde isso vem: da esperança. Afinal, gigante pela própria natureza, belo, forte, impávido, colosso. Um país de dimensões continentais em que a diversidade se converte em força. Todas as estações, múltiplos biomas, toda a gente pode ser feliz. Tem água, tem sol, tem comida, tem cor.

Os portugueses sabiam disso. Foram chegando e se sentindo em casa, como se ninguém morasse aqui. Batizaram uma terra de que não era deles, pegaram ouro amarelo, madeira vermelha que nos empresta o nome e foram retalhando a terra verde. Mal deixaram o azul. E como produto final da apropriação, a aparência de liberdade também foi obra de um tuga. Pedro Américo até que tentou pintar como um momento heroico, mas a História já revela que o Grito da Independência se deu em meio de uma viagem no lombo de um burro, sem casaca e durante um intenso desconforto intestinal de Dom Pedro I. Independência ou morte, disse ele, aflito e suado. Que começo glorioso. Um país que mantinha pessoas escravizadas declarado livre pelo filho do Rei que passaria a ser o Imperador. Tudo em casa.

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A partir daquele 7 de setembro, a aparência de Independência foi se expandindo

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Brava gente brasileira. O Hino da Independência anunciava que havia raiado a liberdade no horizonte do Brasil. Passados cem anos, parecia que o país era outro. Em 1922, parecia que a escravidão havia sido abolida e que as pessoas negras estavam livres da opressão, inclusive, do Estado. Parecia que a República havia sido proclamada. Parecia que o país era uma espécie de democracia. A Semana de Arte Moderna trazia o Abaporu de Tarsila para o centro desse Brasil em ebulição, que parecia à procura de si. Parecia, parecia, parecia. Em 1972, então, no Sesquicentenário da Independência, parecia ainda mais.

Era o tempo do “Milagre Brasileiro”, do “ninguém segura esse país”, dos “90 milhões em ação”, aquela coisa toda. E para celebrar os 150 anos da Independência, os militares organizaram um torneio de futebol que ficou conhecido como Mini-Copa. Mas as comemorações eram muito abrangentes. Pontes e viadutos foram batizados com o nome do primeiro Imperador; os selos brasileiros, que eram os mais feios do mundo, foram repaginados e transformados em pequenas obras de arte, com imagens da terra; também foi em 1972 que aconteceu a primeira transmissão colorida na televisão; e o governo investia forte em propagandas belíssimas. Teve até filme com o galã Tarcísio Meira no papel principal. E não parou por aí, os despojos de Dom Pedro I foram trazidos de volta para o Brasil naquele ano – não, trazer o coração não foi novidade. Tudo parecia uma festa. Parecia, parecia, parecia. Só parecia.

Porque em 1872, quando se celebrou o cinquentenário do grito do Ipiranga, o primeiro censo realizado no país mostrou que as pessoas escravizadas respondiam por 15% da população.  O Brasil era quase todo católico e analfabeto. Nos 50 anos seguintes, pouco havia mudado de verdade. Os negros que haviam sido escravizados e os seus descendentes foram atirados à própria sorte e a proclamação da República foi um golpe que só permitia existir a democracia do café com leite. Mulher não podia votar, analfabeto não podia votar. Ditaduras se sucederam e em 1972, quando se cantava a marchinha de carnaval do sesquicentenário, a Ditadura Militar cassava mandatos, assassinava quem se opunha ao regime e esquecia das pessoas.

Mas a brava gente brasileira resistiu e em 1988 o Congresso paria a Constituição Cidadã. E parece que estamos em uma democracia há mais de 30 anos. Parece. Mas uma história construída na base de aparências é forjada por detrás de uma cortina muito frágil. Sempre há rasgos e buracos no pano por onde se pode espiar e enxergar a realidade.

Hoje, por exemplo, enquanto o Presidente da República chama a primeira-dama de princesa e grita da maneira mais vulgar possível que é “imbrochável”, os trabalhadores se levantam no Grito dos Excluídos para perguntar “200 anos de (In)dependência para quem?”. Aliás, na capa dos principais sites de notícias do país, há três tipos manchetes: “Bolsonaro usa 7 de Setembro para fazer discurso de campanha eleitoral”; “Ato na Paulista tem ataques ao STF e faixas antidemocráticas”; “Grito dos Excluídos distribui café da manhã a 5 mil sem-teto em SP”. Enquanto o Presidente da República sequestra os símbolos nacionais para satisfazer o delírio ufanista do séquito de seguidores, há mais de 33 milhões de brasileiros passando fome.

Enquanto eu paro para escrever sobre a Independência do Brasil, o incumbente se esmera para esfacelar a aparência da democracia no palanque. Basta olhar, sempre há uma brecha. A gente só precisa escolher se vai espiar pela fresta ou remendar o rasgo antes disso. A gente só precisa escolher se vai olhar pra os problemas reais do país, por mais dolorosos que sejam, ou viver mais 200 anos de aparências.

Geórgia Santos

A fé é morta

Geórgia Santos
31 de outubro de 2021

Uma mãe de três me disse que matou a fé. Para uma mãe de três que só pode beijar um, é mesmo difícil acreditar no abstrato. É praticamente impossível acreditar no intangível quando dois filhos recém saídos da adolescência são presos injustamente. E eu sei que esse é o grande teste da fé, acreditar sem evidências. Devoção incondicional. Mas quando a condição é saber que um dos teus morreu sob custódia do Estado, talvez seja pedir demais. Por que manter viva, a fé, se um dos guris já não está?

O que ela disse ficou comigo. Horas depois da entrevista, eu ainda digeria a morte da fé daquela mãe e tomava o luto para mim. Primeiro, porque não foi exatamente um sentimento novo. Eu sempre questionei a natureza dessa crença sem limites que me parece incompatível com o jornalismo. Quando eu ando com fé, é como se eu fosse menos profissional por acreditar em algo não verificável. Segundo porque eu não vivi as tragédias de Maria*, mas o Brasil, sim.

Os brasileiros estão sufocados por uma pandemia que já soma 600 mil mortos no país. Há, por aí, um vírus açodado em um lugar em que as autoridades não se importam. Os alimentos estão caros o suficiente para ter gente na fila do osso. Meninas não frequentam a escola porque não tem acesso a absorventes. Jovens são encarcerados porque pretos. Além de toda a sorte de ódio destilada sob a forma da liberdade de expressão quando o brasileiro não é livre nem para viver. Por que, então, manter a fé viva, se o Brasil já não está?

Veja bem, essa não é uma tentativa de reeditar Nietzsche, que matou Deus. Gott ist tot, disse ele. O que eu digo é muito pior. Porque eu não estou matando Deus diante da racionalidade iluminista. A morte da fé é prática, não é filosófica. O sentido da fé foi esvaziado porque, simplesmente, é pedir demais.

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Por que alguém precisa acreditar no invisível, se tudo o que se faz, no Brasil, é sofrer?

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Depois de quatro anos, os dois filhos da mãe de três foram absolvidos pela justiça. A vida deles mudou para sempre e, pra sempre, ela só poderá beijar dois. Mas como uma católica oscilante, foi o bastante para ressuscitar a fé. Ela respondeu à minha pergunta, semanas depois do primeiro contato, dizendo que a gente precisa acreditar no invisível porque, no Brasil, fé é sobrevivência. Se a gente não acreditar no intangível, sobra a morte. Gil bem que avisou que a fé tá na mulher, num pedaço de pão, na maré, na lâmina de um punhal, na luz, na escuridão, na manhã, no anoitecer. A fé tá viva e sã e tá pra morrer.

Talvez o Brasil precise menos de Nietzsche e mais dos seus. A fé não costuma falhar, dizem.

 

Imagem original: Mathias Faust / Pixabay

Colagem: Geórgia Santos

Geórgia Santos

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Geórgia Santos
4 de agosto de 2021

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BSV Especial Coronavírus #45 O abandono da cultura

Geórgia Santos
17 de fevereiro de 2021

Chegando perto da marca de um ano desde a primeira morte por coronavírus no Brasil, resolvemos mostrar, com depoimentos e entrevistas, como essa pandemia afetou as pessoas de forma diferente. No último episódio, mostramos a situação precária dos motofretistas e entregadores de delivery.

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Nesta semana, vamos falar sobre os profissionais da cultura
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Os artistas são tratados por vagabundos pelo governo federal e apoiadores. Não é segredo para ninguém. Jair Bolsonaro disseminou muita desinformação sobre artistas e a Lei Rouanet – antes, durante e depois da eleição. Já presidente, acabou com o Ministério da Cultura. O terceiro secretário, Roberto Alvim, caiu porque fez um discurso praticamente plagiando Goebbels. Sim, o ministro da propaganda de Adolf Hitler. Depois, veio Regina Duarte com a missão de “pacificar” a relação entre a classe artística e o governo federal. Não funcionou.  Agora temos Mário Frias, o eterno galã de malhação. Apagado e que, para variar, também não faz absolutamente nada pela cultura do país ou pela classe artística.

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E com este governo ATENTO ao setor, não é surpresa que os trabalhadores da cultura estejam entre os profissionais que mais sofreram o impacto financeiro causado pela pandemia de coronavírus no Brasil
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E nós não estamos falando de Caetano, Zeca Pagodinho ou Roberto Carlos. Estamos falando de milhares de artistas, roadies, técnicos, operadores de som e luz e até motoristas que dependem da indústria da cultura para sobreviver e foram abandonados.

Para compreender melhor o cenário, ouvimos a assessora Bebê Baumgarten; a produtora cultural Luka Ibarra; o ator Alvaro Rosa Costa; e a cantadora Gabriela Lery.

Participam as jornalistas Geórgia Santos e Flávia Cunha, que também é responsável pela produção, ao lado de Igor Natusch. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #45 O abandono da cultura
Geórgia Santos

Os golpistas são sempre bem intencionados

Geórgia Santos
12 de novembro de 2019

“O Brasil já sofreu demasiado como o governo atual. Agora, Basta!”. O texto é do editorial do jornal Correio da Manhã no dia31 de março de 1964, às vésperas do Golpe Militar no país.   O jornalista Juremir Machado da Silva lembra, no livro 1964, Golpe midiático-civil-militar, que parte da grande imprensa construiria, no período, a narrativa de que a ação dos militares era um “mal necessário para salvar a democracia do comunismo”. O Jornal do Brasil ia tão longe quanto dizer que, com o Exército, havia sido instalada a “verdadeira legalidade”.

“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada.”

Jornal do Brasil, 1ª de abril de 1964

 

Essa narrativa foi retomada no Brasil com a ascensão de Jair Bolsonaro (PSL) ao poder e parece estar sendo reconstruída em toda a América Latina. Em nome do “bem maior”, em nome do combate ao comunismo, mais de 50 anos depois da onda de desdemocratização que varreu o continente ainda há quem diga que o golpe na Bolívia não foi golpe. Foi um movimento para salvar o país da tirania de Evo Morales.

A CRISE NA BOLÍVIA

Não há dúvida de que situação da Bolívia é bastante complexa. Em 2017, o Tribunal Constitucional aceitou o recurso que pedia para suspender os artigos que vetavam duas reeleições consecutivas e impediam a candidatura de Evo Morales em 2019. Ou seja, a Constituição  foi violada especificamente para que ele pudesse disputar a eleição deste ano, da qual sagrou-se vencedor.

Desde que Evo Morales venceu as eleições, inúmeras mobilizações foram registradas na Bolívia. Da oposição, que não reconheceu o resultado como legítimo; e de apoiadores que, a pedido de Morales, fossem às ruas para impedir “um golpe de estado.”

A oposição, que já havia se manifestado contra a decisão do Tribunal, contestou o resultado e solicitou uma auditoria internacional. Assim, entrou em campo a Organização dos Estados Americanos (OEA). A investigação da OEA indicou que houve fraude na eleição e a organização sugeriu novo pleito.  “A equipe não pôde validar o resultado da presente eleição, e recomenda um outro processo eleitoral. Qualquer futuro processo deverá contar com novas autoridades eleitorais para poder levar a cabo eleições confiáveis”, atesta o relatório.

A resposta de Evo Morales à auditoria da OEA foi ponderada. O então presidente boliviano acatou a recomendação, chamou novas eleições e ainda propôs a mudança de todos os membros do tribunal eleitoral. Só estava pendente a sua própria participação no novo pleito . De todo modo, a oposição não esperou.

Além dos protestos que já tomavam as ruas das principais cidades da Bolívia, os familiares de Evo Morales e os parentes de outros membros do governo passaram a ser ameaçados – ele inclusive disse que a casa de sua irmã foi incendiada – e um grupo de policiais contrários ao governo organizou um motim. Os chefes das Forças Armadas e da Polícia, além da oposição, pediram, então, que Morales deixasse o cargo para “pacificar” o país. E ele assim o fez, após 13 anos no poder.

“Por que tomei essa decisão? Para que Mesa e Camacho não sigam perseguindo meus irmãos dirigentes sindicais. Para que Mesa e Camacho não sigam queimando a casa dos governadores de Oruro e Chuquisaca”, disse Evo Morales.

Carlos Mesa foi o segundo colocado nas eleições bolivianas e um dos principais opositores do governo. “À Bolívia, ao seu povo, aos jovens, às mulheres, ao heroísmo da resistência pacífica. Nunca me esquecerei este dia único. O fim da tirania. Agradecido como boliviano por essa lição. Viva a Bolívia!”, disse. Já Luis Fernando Camacho é o líder do movimento cívico que derrubou Evo Morales, conhecido por ser um católico fundamentalista de extrema-direita. Membro da elite boliviana, Camacho conseguiu entrar no antigo Palácio do Governo, em La Paz, e depositou uma Bíblia em cima da bandeira da Bolívia alguns minutos antes do anúncio da renúncia.

FOI GOLPE?

A narrativa em disputa – tanto na política institucional quanto nas redes sociais – é se o movimento que culminou com a renúncia de Evo Morales foi ou não foi golpe. Quem defende que não foi golpe, entende o movimento como necessário para conter os avanços antidemocráticos do então presidente. E é justamente aí que começa o problema.

O fato de o governo de Morales ter enfraquecido as instituições democráticas ou estar sob suspeição não muda o fato de que ele ainda era o presidente de fato e de direito. Não muda o fato de que ele sofreu um golpe de Estado. Um dos autores do livro Como as Democracias Morrem, Steven Levitsky, em entrevista ao jornal O Globo, disse que Evo Morales errou ao tentar quarto mandato, mas que o movimento da oposição foi, sim, um golpe. “Porque o comandante das Forças Armadas sugeriu a saída do presidente. Mas temos de ver se será um golpe que fortalecerá a democracia ou a enfraquecerá”, disse.

Eu, particularmente, não vejo qualquer golpe como ferramenta adequada para o fortalecimento da democracia. E esse, de fato, não parece ser o golpe que mudará minha opinião. A segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, autoproclamou-se presidenta da Bolívia após as renúncias de cinco autoridades declarando que a Bíblia deveria voltar a entrar no Palácio.  Logo após assumir o cargo e concordar em convocar novas eleições, atacou a esquerda: “Assim são os socialistas: usam mecanismos democráticos e se aferram ao poder, e depois enganam a gente, cooptam instituições, acaba a institucionalidade democrática”.

Não podemos naturalizar narrativas que justifiquem golpes de Estado. Afinal de contas, o discurso é sempre o mesmo. Os golpistas sempre tem as melhores intenções no coração. É para um bem maior, dizem.

Geórgia Santos

Os beijos do filme mais lindo do mundo

Geórgia Santos
11 de setembro de 2019

O filme mais lindo do mundo fala de um tempo em que beijar era feio. Bem, o era para o vigário do povoado siciliano de Giancaldo, em uma Itália no pós-Guerra. Padre Adelfio fazia com que o projecionista Alfredo cortasse todas as cenas de beijo de qualquer filme que assistisse – porque como todo bom censor, ele via, previamente, a tudo o que os outros seriam impedidos de ver. Usando a hipocrisia que provavelmente o excitava como cortina, além dos beijos, censurava seios e pernas expostas. E fazia o mesmo com tudo que considerasse impróprio. Por motivos menos aleatórios e a mais a serviço de uma agenda moralizadora da Igreja Católica.

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Mas não há censura que impeça a curiosidade de um menino. Totò, o protagonista de Cinema Paradiso (1988), ficava escondido atrás das cortinas, engalfinhado em veludo vermelho que, a mim, parecia cheirar mofo, e testemunhava todos os beijos,
todas as “indecências”,
todas as “imoralidades”
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Os olhos do guri de seis anos brilhavam. Não pela mesma safadeza do Padre Adelfio, mas pelo cinema. Era o cinema que o encantava. Tanto que ele queria levar os beijos para casa. E os seios, as pernas, os tiros, as brigas, as indecências e as imoralidades. Mas Alfredo não deixava.

Eu sei que parece uma contradição eu afirmar que o filme mais lindo do mundo esconde beijos. Eu sei. Mas no filme mais lindo do mundo, os beijos vencem no final. 

O conto de Cinema Paradiso aconteceu, de certa forma, no Brasil. O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, também não gosta de beijos. Ele não é o padre Adelfio, mas o bispo evangélico ficou escandalizado com o romance gráfico Vingadores, A Cruzada das Crianças, da Marvel.  A obra estava disponível na Bienal do Livro e conta a história do casal Wiccano e Hulking. Dois homens. Que se beijam.

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Como eu disse, Crivella não gosta de beijos e determinou que a obra fosse retirada das prateleiras
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Em vídeo publicado no Twitter, o prefeito disse que “livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e um adesivo do lado de fora avisando o conteúdo” e que tudo fora feito para “proteger as crianças”.  Assim, em 2019, bem distante de Giancaldo ou do pós-guerra, beijos foram proibidos na Bienal. Um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública (sim, isso existe) percorreu os estandes da feira para recolher exemplares “com cenas impróprias a crianças e adolescentes.” De forma aleatória. Igual ao padre Adelfio. Igual a qualquer censura.

O youtuber Felipe Neto reagiu ao obscurantismo e distribuiu, gratuitamente, mais de 10mil obras com temática LGBT durante a Bienal do Livro no Rio. Adequadamente, as publicações estavam envolvidas em plástico e um adesivo do lado de fora: 

“Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.”
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Assim como em Cinema Paradiso, os beijos venceram. Mas isso não é um filme, isso não é o final.  O Brasil é governado pelo Padre Adelfio.