O 25 de julho é celebrado na Itália como o dia que representa a queda do fascismo. Há exatos 80 anos, o ditador Benito Mussolini foi deposto e preso. Centenas de milhares de italianos se renderam à desforra pelas ruas e praças das cidades, gritando e cantando de alegria, destruindo bustos de Il Duce e cuspindo em retratos daquele homem atarracado. Os ativistas também libertaram os presos políticos naquele dia, os antifascistas.
É verdade que se cometeu o erro de acreditar que a guerra havia acabado e talvez esse erro tenha sido repetido muitas e muitas vezes, em muitos e muitos lugares, mesmo no Brasil de 2022. Mas a realidade que desse as caras em outro momento, aquele era o dia de uma celebração muito aguardada.
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Tanto que os italianos comemoraram comendo pasta. Muita pasta. E não qualquer pasta
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Eu não sabia da existência da Pasta Antifascista até deparar com o texto da newsletter da Emiko Davies, uma fotógrafa e culinarista que vive em Florença. A Emiko contou que depois de duas décadas de ditadura fascista e cinco anos de guerra, a Itália estava derrotada, a população faminta e ingredientes simples como sal, farinha, arroz, carne e azeite foram racionados até se tornarem virtualmente inexistentes. Consequentemente, já não havia pão ou pasta disponíveis para o povo. E os fazendeiros eram obrigados ou a ceder a terra às necessidades do exército nazista – de quem a Itália era aliada – ou a enviar a maior parte da produção de grãos, carne e leite para a Alemanha.

Como se não bastasse, a boa e velha massa era demonizada pelos fascistas e pelo futuristas. O Futurismo foi um movimento artístico e literário que rejeitava, é claro, o passado. As obras se apoiavam fortemente na velocidade e desenvolvimento tecnológico do final do século 19 e, inclusive, exaltavam a guerra e a violência. Filippo Tommaso Marinetti foi o fundador do movimento e, pasmem, escreveu um manifesto contra a pastasciutta. No livro “La Cucina Futurista”, de 1932, ele dizia que essa “religião gastronômica absurda” deixa as pessoas “pesadas”, “lentas” e “pessimistas”.
Os italianos do sul não gostaram nada dessa bobajada e algumas donas de casa de Puglia, que fica bem no salto da bota, escreveram uma carta em protesto ao manifesto anti-pasta. O prefeito de Nápoles respondeu de maneira inefável: “Os anjos no céu não comem nada além de vermicelli com molho de tomate.” Vermicelli é o que a gente conhece por cabelinho de anjo. Obviamente.
Mussolini apoiou o manifesto do amigo Marinetti porque a ideia cabia perfeitamente na agenda fascista que pretendia tornar a Itália uma nação auto-suficiente. Para se ter uma ideia da dimensão do absurdo, o governo dizia que comer pasta não era patriótico porque o país dependia – e ainda depende – de trigo importado para produzir aquela massinha. Então, em 1925 ele lançou a Batalha pelo Trigo ou Batalha pelo Grão, uma política econômica que tinha o objetivo de “libertar” a Itália da dependência estrangeira. Não deu certo. A inflação aumentou e os estoques diminuíram enquanto os fascistas sugeriam que se comesse arroz.

Então, se massa é algo que os fascistas desprezavam, o amor pela pasta era automaticamente antifascista, lembra Emiko. E os membros da família Cervi, formada por Genoveffa e Alcide e seus sete filhos, levaram isso ao pé da letra.
Eles eram agricultores e também eram partisans – ou partigianos. Ou seja, apoiavam a luta antifascista. Por isso, quando souberam da prisão de Mussolini, montaram uma operação sem precedentes na cidade de Campegine, na Emilia-Romanha. Eles ofereceram 370 quilos de massa para todos que quisessem celebrar a queda do regime. A pasta foi temperada com manteiga e queijo parmesão, ingredientes que hoje parecem simples, mas que naquele momento foram degustados como o que de mais caro havia. Era um momento em que os italianos viviam sob a brutalidade do fascismo, estavam exaustos, famintos, com os corpos e as almas quebrados. E a família Cervi ofereceu pasta, sim, mas também afeto, generosidade, acolhimento, alegria. Esperança. A polícia tentou dispersar os grupos porque ajuntamentos de mais de três pessoas eram proibidos desde 1931, mas nem os oficiais conseguiram resistir a um prato de euforia, a uma garfada de normalidade.
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E assim, em meio a guerra, a pasta com manteiga e queijo parmesão se tornou um símbolo de liberdade e resistência
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O jantar foi em 27 de julho de 1943, mas a Pasta Antifascista é celebrada hoje, dia 25, a data oficial do fim do Fascismo na Itália. Pelo menos até aquele momento.

Infelizmente, a história da Família Cervi não acabou em boa nota como essa história belíssima poderia indicar. Pouco mais de um mês depois do jantar, a Itália anunciou que não lutaria mais ao lado dos nazistas e Hitler ordenou uma caça aos “traidores” ao mesmo tempo em que eclodia uma guerra civil entre os Fascistas e os Partigianos. Alcide e os sete filhos foram presos em novembro daquele ano. Os irmãos foram executados um mês depois. O pai conseguiu escapar e só soube do destino dos rebentos quando chegou em casa. Em 1955, ele publicou um livro chamado “I miei sete figli”, em tradução livre, “Os meus sete filhos”. A história virou um filme de Gianni Puccini em 1968 chamado I sette fratelli Cervi.
Eu, que agora faço gosto em comer picanha e gosto menos de leite condensado, que na pressa do dia-a-dia já fiz muita massa puxada na manteiga com queijo parmesão, não conhecia o peso dessa receita. Mas que bom. Vão-se os fascistas e fica a pasta.
