Geórgia Santos

Uma tentativa vã, mas bonita, de definir Rita Lee

Geórgia Santos
22 de maio de 2023

No dia em que ela morreu, eu retirei aquele livro da laranja da estante em que separo as obras por cor – uma pequena obsessão que não combina em nada com minha falta de organização. Rita Lee, uma autobiografia (2016), é absolutamente deliciosa. Uma ode honestíssima à própria liberdade escrita por uma mulher que foi esplendorosa, cantou demais, foi louca, fez muita merda, compôs lindamente, sofreu bastante, cuidou dos seus, desafiou poderosos, amou e amou e amou.

Recentemente, ela disse que o compêndio de capa cor de laranja era uma despedida da “persona ritalee”. Mas como que para manter a transparência, ela deixou no papel Outra autobiografia. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, diz ela em trecho do livro, divulgado quando anunciou o lançamento da nova obra. Pois o lançamento foi agendado para 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, também conhecido como hoje.

Ainda não li, mas está lá, na caneta da moça, os detalhes do tratamento contra um câncer de pulmão – cujo tumor ela descobriu em 2021, durante a pandemia, e apelidou de Jair – que acabou encurtando a vida da rainha do rock brasileiro.

Eu não sei se gosto desse título ou rótulo, como queiram, de rainha do rock brasileiro, atribuído subjetivamente em manchetes e lides que anunciavam sua morte, em 08 de maio deste ano. Não que ela não mereça o posto, óbvio que merece. Ninguém mais poderia ocupar esse lugar. Mas é que me parece impreciso. Aliás, em uma entrevista à revista Rolling Stone, em novembro de 2022, ela disse que achava cafona.

Imagem: Reprodução

Por isso, decidi me embrenhar em uma empreitada hercúlea e ingrata de tentar definir Rita Lee. Busquei uma resposta a partir do que ela disse sobre si ao longo dos anos. Lógico que falhei em encontrar UMA palavra que fosse suficiente, mas também fui esperta no processo e isso rendeu uma belíssima lista. Procurei em em entrevistas, canções, nos livros e em alguns dos mais engraçados tuítes da história desse país. Sim, tuítes. Como o de primeiro de agosto de 2011:

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“Já disse e repito: não me levem a sério, sou falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.”

Que figura. Mas não ficaria bem escrever algo como: “Morre Rita Lee, uma falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.” Então continuei.

“E eu lá sou mulher de fazer back-up? Perdi tudo, foda-se eu. Ao atualizar o Iphone eu perdi tudo. Inclusive tudo mesmo. Véia jumenta.”

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Isso também pegaria mal. Mas que é a cara dela, isso é. Alguém que em um belo dia resolveu fazer tudo o que queria fazer, libertando-se de uma vida vulgar e tendo o prazer de ser quem se é. Alguém que era Rita; Rito, o menino baiano; mutante; romântica; menina; mulher; Ritinha; neném que só sossega com beijinho; ovelha negra; baby; erva venenosa; caso sério; ciumenta; guerrilheira; ladra de botas; justiceira; caminhante noturna; ladra de anéis; Gininha; mulher macunaíma; Miss Brasil 2000; luz del fuego; Rita Lica; fruta; Madame Lee; filha; Adelaide Adams; maçã; traficante de colar de LSD; TV Lesão; folclore; irmã; cigarra; Lita Ree; pergunta; ex-AA; fofa; ex-NA; perseguida; licor; ex-presidiária; injustiçada; uma cantora sutil; feminista; feminina; louca; pau pra toda obra; cantora; compositora; instrumentista; vaca; mais macho que muito homem; rainha do próprio tanque; pagu indignada no palanque; porra louca; véia; vaidosa; paulista; paulistana; com nervos de aço; fazedora de barulho; falsa; vovó; Aníbal; corinthiana; chata; viciada em uva-passa; sharon stone; mãe; rolling stone; cabrinha; caprichosa; capricórnia; rainha; esposa; Deus; todas as mulheres do mundo; semente. Semente. Semente.

É realmente difícil definir Rita Lee e, talvez, o prosaico Rainha do Rock atenda melhor às necessidade da mídia tradicional que precisa comunicar ao grande público o tamanho de uma grande mulher. Mas eu não quero desistir, assim como não quero ceder à escolha editorial do G1. Decido, então, recorrer a ele.

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“O Roberto é a Rita também, a Rita é o Roberto também. Em vida ou em morte, tanto em uma circunstância quanto em outra, eu continuo sendo ela e ela continua sendo eu.”

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Roberto de Carvalho é o grande amor de Rita Lee e talvez a única pessoa com autoridade para dizer aos brasileiros quem ela é. Em uma entrevista ao Fantástico, no dia seguinte ao enterro da cantora, ele lembrou da parceira como alguém cheia de vida, de criatividade, de alegria. Ele disse que ela era iluminada.

Está dito, então. Rita é luz.

Mas, por via das dúvidas, vou ler o novo livro em busca das outras personas da rainha fragmentada.

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Imagem de capa: Reprodução / Instagram

Voos Literários

O rock também é (e deve ser) feminino

Flávia Cunha
16 de julho de 2019
UNITED STATES - DECEMBER 28: BOTTOMLINE Photo of Patti SMITH (Photo by Richard E. Aaron/Redferns)

Quando voltamos a Nova York, pusemos um anúncio no Village Voice procurando um guitarrista. A maioria dos guitarristas que apareceu já parecia saber o que queria fazer, ou como gostaria de soar, e quase nenhum deles, homens, muito interessado em ter uma garota como líder. “

Assim Patti Smith descreve, na autobiografia Só Garotos, o início de sua carreira musical como uma das precursoras do punk no início da década de 1970. O panorama para as mulheres no rock no século 21 infelizmente ainda guarda semelhança com essa época. Os roqueiros parecem poucos interessados em perceber que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive liderando uma banda.

A poetisa do punk, como ficou conhecida, sempre rompeu barreiras. Como em seu estilo de vestir, com seu modo visceral de expressar-se na escrita, nas artes visuais e na música. Também com  sua relação nada convencional com o primeiro marido, o fotógrafo Robert Mapplethorpe, que, depois do fim do relacionamento amoroso com ela, assumiu sua homossexualidade mas manteve-se como uma figura querida e importante em sua trajetória artística e pessoal, até sua morte, em 1989.

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Conforme relata  em Só Garotos, Patti Smith nunca se imaginou como uma cantora e não compreendia porque seu estilo chamava a atenção. Como na vez em que resolveu cortar seu próprio semelhante a um dos integrantes da banda Rolling Stones:

Meu cabelo de Keith Richards era de fato um ímã de significados. Pensei nas garotas que conheci na época da escola. Elas sonhavam em ser cantoras e acabavam virando cabeleireiras. Eu não sonhava com nenhuma das duas vocações, mas nas semanas seguintes acabaria cortando o cabelo de muita gente e cantando no La MaMa. Alguém no Max’s [bar famoso no underground novaiorquino da época] me perguntou se eu era andrógina. Perguntei o que era aquilo. ‘Você sabe, como Mick Jagger.’ Imaginei que deveria ser algo interessante. Achei que a palavra fosse alguma coisa ao mesmo tempo bonita e feia. O que quer que significasse, com um simples corte de cabelo, milagrosamente, virei andrógina da noite para o dia.”

O livro Só Garotos, como toda a obra bem escrita, tem várias camadas e possibilidades de análise. Hoje, escolhi, em homenagem ao Dia Mundial do Rock, celebrado no Brasil em 13 de julho, dar enfoque à força e ao pioneirismo de Patti Smith na música. Após se recuperar emocionalmente de perdas como a de Mapplethorpe, do marido Fred Smith (ex-guitarrista da banda de rock MC5) e de um de seus irmãos, Patti retomou a carreira artística. 

E os brasileiros poderão conferir ao vivo o ativismo político e as músicas da artista no Popload Festival, em 15 de novembro, Como uma fervorosa defensora das causas ambientais, já podemos imaginar que seu show deve trazer críticas ao governo brasileiro. Com toda essa história de vida, espero que esse posicionamento não surpreenda espectadores desavisados, como aconteceu recentemente com Roger Waters.

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Com seus 72 anos, Patti Smith segue sendo um exemplo para mulheres no mundo inteiro

Longa vida à poetisa do punk

Bônus: Além de Só Garotos, recomendo a leitura de Linha M, livro no qual Patti Smith descreve – de forma intimista mas com lirismo – a solidão, o luto e o amor à fotografia e à poesia. Além de demonstrar ser uma inveterada fã de café e séries policiais televisivas,  Gente como a gente, sem falsos intelectualismos. 

Fotos: Reprodução/Internet