Voos Literários

O rock também é (e deve ser) feminino

Flávia Cunha
16 de julho de 2019
UNITED STATES - DECEMBER 28: BOTTOMLINE Photo of Patti SMITH (Photo by Richard E. Aaron/Redferns)

Quando voltamos a Nova York, pusemos um anúncio no Village Voice procurando um guitarrista. A maioria dos guitarristas que apareceu já parecia saber o que queria fazer, ou como gostaria de soar, e quase nenhum deles, homens, muito interessado em ter uma garota como líder. “

Assim Patti Smith descreve, na autobiografia Só Garotos, o início de sua carreira musical como uma das precursoras do punk no início da década de 1970. O panorama para as mulheres no rock no século 21 infelizmente ainda guarda semelhança com essa época. Os roqueiros parecem poucos interessados em perceber que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive liderando uma banda.

A poetisa do punk, como ficou conhecida, sempre rompeu barreiras. Como em seu estilo de vestir, com seu modo visceral de expressar-se na escrita, nas artes visuais e na música. Também com  sua relação nada convencional com o primeiro marido, o fotógrafo Robert Mapplethorpe, que, depois do fim do relacionamento amoroso com ela, assumiu sua homossexualidade mas manteve-se como uma figura querida e importante em sua trajetória artística e pessoal, até sua morte, em 1989.

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Conforme relata  em Só Garotos, Patti Smith nunca se imaginou como uma cantora e não compreendia porque seu estilo chamava a atenção. Como na vez em que resolveu cortar seu próprio semelhante a um dos integrantes da banda Rolling Stones:

Meu cabelo de Keith Richards era de fato um ímã de significados. Pensei nas garotas que conheci na época da escola. Elas sonhavam em ser cantoras e acabavam virando cabeleireiras. Eu não sonhava com nenhuma das duas vocações, mas nas semanas seguintes acabaria cortando o cabelo de muita gente e cantando no La MaMa. Alguém no Max’s [bar famoso no underground novaiorquino da época] me perguntou se eu era andrógina. Perguntei o que era aquilo. ‘Você sabe, como Mick Jagger.’ Imaginei que deveria ser algo interessante. Achei que a palavra fosse alguma coisa ao mesmo tempo bonita e feia. O que quer que significasse, com um simples corte de cabelo, milagrosamente, virei andrógina da noite para o dia.”

O livro Só Garotos, como toda a obra bem escrita, tem várias camadas e possibilidades de análise. Hoje, escolhi, em homenagem ao Dia Mundial do Rock, celebrado no Brasil em 13 de julho, dar enfoque à força e ao pioneirismo de Patti Smith na música. Após se recuperar emocionalmente de perdas como a de Mapplethorpe, do marido Fred Smith (ex-guitarrista da banda de rock MC5) e de um de seus irmãos, Patti retomou a carreira artística. 

E os brasileiros poderão conferir ao vivo o ativismo político e as músicas da artista no Popload Festival, em 15 de novembro, Como uma fervorosa defensora das causas ambientais, já podemos imaginar que seu show deve trazer críticas ao governo brasileiro. Com toda essa história de vida, espero que esse posicionamento não surpreenda espectadores desavisados, como aconteceu recentemente com Roger Waters.

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Com seus 72 anos, Patti Smith segue sendo um exemplo para mulheres no mundo inteiro

Longa vida à poetisa do punk

Bônus: Além de Só Garotos, recomendo a leitura de Linha M, livro no qual Patti Smith descreve – de forma intimista mas com lirismo – a solidão, o luto e o amor à fotografia e à poesia. Além de demonstrar ser uma inveterada fã de café e séries policiais televisivas,  Gente como a gente, sem falsos intelectualismos. 

Fotos: Reprodução/Internet

 

Voos Literários

Confira trecho de livro inédito de Claudia Tajes

Flávia Cunha
26 de março de 2019

Participar de eventos com mulheres é uma constante na minha rotina. Procuro fazer isso para valorizar a presença feminina em espaços concedidos naturalmente aos homens, de forma tão automática que nem pensamos a respeito do protagonismo masculino em lugares de fala.

Por isso, fui prestigiar uma das atividades de É Coisa de Mulher, programação especial em homenagem ao Dia Internacional da Mulher promovida pelo Centro Histórico Cultural Santa Casa, em Porto Alegre. O bate-papo com a escritora Cláudia Tajes superou minhas expectativas. Primeiro por transpor as fronteiras da Literatura. Claudia é colunista de jornal, roteirista de televisão e com livros já adaptados para o teatro e o cinema.

O outro motivo da minha quebra (positiva) de expectativa foi a sinceridade e espontaneidade da escritora. Falar de perrengues financeiros, dar detalhes dos bastidores de seu trabalho na Rede Globo e ter a autocrítica de confessar não gostar de um de seus próprios livros: Dores, Amores e Assemelhados. “É um livro com enredo que hoje considero elitista e só me dei conta depois da crítica de pessoas que respeito a opinião. Ainda bem que está esgotado”, comenta, bem humorada.

A escritora lamenta enfrentar resistência entre leitores do sexo masculino, por ter protagonistas mulheres em suas obras.

“É só sair no jornal que um livro meu é ‘sob a ótica feminina’ que o tiozão do churrasco já não tem interesse em dar uma chance para a leitura”, avalia.

Após o evento, entrei em contato com a autora, que generosamente cedeu à coluna Voos Literários um trecho de um livro inédito, que deve ser lançado em maio. Claudia Tajes parece ter atingido o objetivo comentado durante o bate-papo no Centro Histórico Cultural da Santa Casa: manter sua escrita leve mas sem ser fútil.

Boa leitura!

Eu, o outro (título provisório)

1

Naquela manhã eu acordei de sonhos intranquilos como se tivesse um peso abaixo da minha barriga, não, abaixo do abaixo da minha barriga, uma sensação estranha, a pelve sendo puxada para baixo, e a primeira coisa que pensei foi em alguma doença, quem sabe cistite, moléstia venérea: impossível, há meses eu não saía com ninguém, e também parecia diferente da minha última infecção urinária, era quente e se mexia quando eu me mexia e agora estava coçando. Então eu coloquei a mão ali e encontrei um pênis.

Eu tinha virado homem.

2

O cabelo ainda era o meu, chanel precisando de um corte, mas agora com entradas que pareciam as do meu pai. Eu estaria ficando careca? Já as sobrancelhas que ainda ontem eu havia depilado – ao preço de trinta reais – engrossaram, dois ouriços em cima dos olhos. Trinta reais postos no lixo. Cabelos nasceram pelo corpo todo, até as costas ganharam pelos escuros e compridos. Mas o mais surpreendente era o pênis, grande e gordo para uma mulher tão pequena como eu. Batia na metade da minha coxa, e confesso que fiquei orgulhosa dele. Mas só por um momento.

Eu não queria aquele corpo.

 

3

Fazia tempo que eu não dava nenhuma importância para as lingeries. Os namorados dos últimos anos também não reparavam nelas, era tudo muito rápido, quase apressado, uma tarefa a ser cumprida antes de, enfim, dormir. Sorte. Se não fossem as minhas calcinhas sem elástico, esgaçadas pelo uso, seria impossível acomodar meu pênis. Como se esse fosse o maior dos meus problemas. O que eu vestiria para sair do quarto? Minhas saias, meus vestidos, minha leggings, nada me servia. Eu tinha perdido a cintura e a bunda. Se eu nunca quis ser homem, por que uma desgraça dessas havia acontecido logo comigo?

O jeito era procurar alguma roupa que me coubesse no quarto do meu filho.

4

Caco dormia o sono dos adolescentes vagabundos que passam a noite na internet e depois não acordam para ir à escola. Entrei pé ante pé em seu quarto e abri o armário com todo o cuidado. A dobradiça rangeu, Caco continuou imóvel. Comecei a procurar uma camiseta, todas tinham estampas de reggae, eu queria algo mais sóbrio, talvez a pólo que o vô Camilo deu a ele de aniversário e que continuava dentro da embalagem. Já estava escolhendo a bermuda quando senti algo me atingir na cabeça. Ainda ouvi a voz de Caco antes de apagar.

– Mãe, tem um ladrão no meu quarto!

5

Aos poucos fui recobrando a consciência. Acordei amarrada, ou amarrado, com a fita de prender prancha de surfe. Eu estava no chão. Sentado na cama, Caco me olhava com uma raquete de tênis na mão.

– O que tu fez com a minha mãe?

– Caco…

– Como tu sabe o meu nome? Cadê minha mãe?

Antes que eu pudesse responder, tomei uma raquetada no meio da barriga. Sorte que ele ainda não sabia que o porte de armas estava liberado.

– Eu posso explicar. É meio complicado, mas/

– Fala antes que eu te cague a pau. Onde tá a minha mãe?

– Na verdade, a tua mãe/

– Tu matou a minha mãe?

– Não, ela tá bem.

– Cadê minha mãe?

– Mais perto do que tu pensa.

Caco levantou e saiu pela casa à minha procura. Amarrada, ou amarrado, no chão, eu o ouvia chamar: mãe, mãe, mãe. Logo ele estava de volta, e mais nervoso.

– Ela não tá em lugar nenhum.

– Caco!

– Como tu entrou aqui?

– Eu dormi aqui.

– Dormiu? Tá querendo dizer que tu é crush da minha mãe?

Tomei mais uma raquetada, dessa vez nas coxas. Gritei alto.

– Mentiroso. Nunca que a minha mãe ia ficar com um velho gordo como tu.

– Eu não sou gordo. Nem velho.

– Cadê a minha mãe? Fala, senão eu te mato.

– Eu sou a tua mãe.

Imagem: Theo Tajes/Divulgação