Voos Literários

O Avesso da Pele e a indignação seletiva conservadora

Flávia Cunha
5 de março de 2024
Capa do livro "O Avesso da Pele". Imagem: Companhia das Letras / Reprodução

O Avesso da Pele, premiado romance de Jeferson Tenório, virou notícia nacional ao ser alvo de tentativa de censura no Rio Grande do Sul. Tudo começou com a diretora de uma escola pública estadual de Santa Cruz do Sul publicando um vídeo em suas redes sociais. Ela alegava estar chocada com as palavras de baixo calão e o teor supostamente pornográfico do enredo. Além disso, pedia a proibição da adoção do livro em turmas do Ensino Médio. Em termos de cobertura de imprensa, o posicionamento da diretora e a repercussão contrária à tentativa de censura vem sendo tratada como uma mera “polêmica” apenas pelos veículos daquele município.

Livros do PNLD são uma escolha das escolas

No restante do país (incluindo a grande mídia gaúcha), a abordagem é a de um comentário equivocado feito justamente pela educadora responsável por selecionar a obra em questão. Ao ser confrontada com o fato de que as obras do Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) só são enviadas pelo MEC a pedido da instituição de ensino, a diretora Janaína Venzon caiu em contradição. Primeiro, alegou que havia colocado o livro na lista de obras apenas analisando a capa, sem ler o conteúdo. Depois, voltou atrás e garantiu que o fato se devia a uma falha do sistema ligado ao MEC. 

De qualquer forma, os livros chegaram a ser retirados da biblioteca daquela escola e houve um pedido da coordenadoria de educação da região para adotar a mesma medida nos municípios de sua abrangência. Porém, o governo gaúcho já desautorizou esta decisão.

Entretanto, causa espanto que um trecho (descontextualizado) sobre sexo em meio ao denso enredo de O Avesso da Pele provoque mais indignação do que o relato principal, conforme comentou o próprio Jeferson Tenório em suas redes sociais:

“O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras.”

Nova tentativa de censura no Paraná

Mais do que um fato isolado, a tentativa de censura de O Avesso da Pele faz parte do comportamento recorrente da parcela mais conservadora da população brasileira. O repúdio à adoção da obra em sala de aula sustenta-se sob o argumento (falso) de que a culpa é do governo Lula. Ainda que haja comprovação, inequívoca, de que o livro, dentre outros, foi selecionado para o PNLD ainda na gestão Bolsonaro, em 2022. Em um novo desenrolar das estratégias conservadoras, há tentativa de censurar a obra, desta vez no Paraná. A coordenação do Núcleo Regional de Educação de Curitiba determinou o recolhimento de exemplares do livro. A denúncia foi feita pelo sindicato dos trabalhadores em educação pública. 

Defesa contínua da democracia

Dentro desse cenário, precisamos lutar pela defesa dos princípios democráticos. Também é um contrassenso defender que os jovens não leiam determinados livros em ambiente escolar, onde há um processo de mediação de leitura.

A Companhia das Letras, editora responsável pela publicação de O Avesso da Pele, inclusive disponibiliza, em seu site, para download gratuito, um material de apoio destinado a professores. Chamado “Por Uma Escola Afirmativa: Construindo Comunidades Antirracistas”, o documento traz questionamentos e reflexões pertinentes sobre o papel da escola nessa dinâmica:

“A leitura, guiada pelo prisma do letramento racial – entendido como um processo de consciência e conhecimento racial –, é uma plataforma que, em um mesmo gesto, aproxima e ensina. Por essa razão, a literatura pode ser uma linguagem fundamental para a construção de uma sociedade mais igualitária e autorreflexiva. A escola é um espaço absolutamente central para a formação de sujeitos capazes de viver em uma sociedade plurirracial, preparados para compreender que as diferenças que nos individualizam não podem justificar a desigualdade racial e o extermínio de corpos e mentes.”

Felizmente, em meio às tentativas de censura deste livro, a obra está, nos últimos dias, entre as dez mais vendidas na Amazon. Sendo assim, houve o efeito contrário à onda de avaliações negativas promovida nesta plataforma de vendas e também no Google livros. Afinal, quem realmente gosta de Literatura dificilmente se deixará levar pelo falso moralismo e por tentativas de cercear a liberdade de acesso à cultura. 

Voos Literários

A culpa é do capitalismo

Flávia Cunha
18 de dezembro de 2023
Imagem: Marcello Casal / Agência Brasil

A culpa é do capitalismo a gente ficar exausto de tanto trabalhar e, ainda assim, faltar dinheiro para sobreviver. A culpa é do capitalismo aceitar condições precárias de trabalho, chefes abusivos e baixos salários.

Por outro lado, a culpa também é do capitalismo quando a gente resolve virar empreendedor para deixar de ter chefe e… fica exausto de tanto trabalhar, sem o suficiente para sobreviver, aceitando condições precárias de trabalho. No lugar de chefes, surgem clientes querendo ditar regras e impor suas vontades, como se fossem donos das nossas decisões e de todo o nosso tempo. 

Os dilemas mencionados são puro suco de capitalismo apesar de, muitas vezes, não serem perceptíveis como algo coletivo. Afinal, o objetivo é justamente esse: fazer com que nossas angústias financeiras e profissionais pareçam individuais, fruto da nossa própria incompetência na gestão da vida.

Maldito capitalismo

Há alguns meses, comentei com uma amiga sobre a dificuldade de ter tempo livre para determinada atividade e disparei: – Maldito capitalismo! Para minha surpresa, ela perguntou o que o sistema econômico onde estamos compulsoriamente inseridos tinha a ver com a questão mencionada. Na hora, confesso ter ficado com preguiça de explicar algo que parece tão explícito para mim – a ponto de ter virado bordão com algumas pessoas próximas.

Afinal, o capitalismo está por tudo. Nas relações profissionais. No excesso de trabalho ou no desespero pela falta de um emprego. No esfacelamento dos direitos trabalhistas, que levam à terceirização, informalidade e precarização em geral. 

No cenário brasileiro, o capitalismo (maldito!!) também está presente quando o empresário espertinho resolve não ter mais funcionários e sugere que todos da equipe se tornem microempreendedores individuais. Porém, com horário específico a cumprir e indo presencialmente trabalhar. E o MEI, que deveria ter autonomia, acaba – por falta de alternativa – muitas vezes se submetendo a ser empregado, sem benefícios como férias e décimo-terceiro salário. 

Mas quem é o responsável por essa situação? O trabalhador que aceitou ou o empresário que teve essa ideia “brilhante”? Nada disso, amiguinhos:  a culpa é do capitalismo!

Capitalismo cognitivo

Trabalho por conta própria desde 2018 na área cultural e de comunicação. E me tornei uma das piores chefes que tive, me cobrando produtividade, insights sensacionais diários e sem me conceder a margem saudável para erros de percurso. Em caso de falhas nas medidas (auto) impostas, sinto que sou uma fraude, um fracasso, uma perdedora.

Ao trocar o emprego com carteira assinada pelo empreendedorismo me tornei uma vítima do capitalismo de uma forma muito mais sutil. Ele está dentro de mim. 

Me dei conta disso ao assistir a um vídeo do professor de filosofia Renato Judz com uma crítica ao capitalismo cognitivo, que nos introjeta o desejo de querermos ser produtivos 24 horas, ao não nos considerarmos dignos de descanso. 

Consumismo afetivo?

Além do capitalismo cognitivo, outro motor fundamental do sistema econômico vigente é o consumismo, que leva as próprias relações a serem utilitárias. Nesse sentido, considero bastante subversivo o cultivo de amizades. Já que, por essência, relacionamentos fraternos genuínos vão na contramão do capitalismo, ao romper com a lógica de associação direta ao consumo. Casais, famílias e namorados têm gastos em comum. Amigos, em geral, têm outra dinâmica nas interações.

Não é à toa que, há alguns anos, o comércio criou o Dia do Amigo, uma forma de monetizar esse tipo de afetividade. Na época de final de ano em que estamos agora, é quase obrigatório em empresas a troca de presentes com a tradição do amigo secreto (ou oculto). Mais uma vez, é o capitalismo se impondo nas relações do dia a dia. 

Consumo do bem

Para dar algum sentido ao consumismo compulsório natalino, sugiro presentear quem a gente ama com livros que possam provocar reflexões. E, assim, tirar as pessoas do torpor provocado pelo excesso de trabalho, por exemplo. 

Dicas de leitura

Como considero que os laços fraternos podem ser revolucionários, escolhi a temática amizade para as sugestões de leitura abaixo.

Gênero: infantojuvenil

“Um amigo para sempre” – Sinopse: Uma das obras-primas de Marina Colasanti, que estreou na literatura com uma linguagem poética e simbólica, num momento em que predominava a crítica social e política por mio da paródia dos contos de fada. Aqui, não se trata de um conto de encantamento, mas o encantamento – ou transcendência – está presente pelo modo de narrar um episódio da vida do escritor angolano Luandino Vieira: na prisão, em Cabo Verde, pacientemente, ele conquista a confiança e amizade de um pássaro.

Gênero: poesia lírica

“Platero e Eu” – Sinopse: Magnífico poema em prosa, em que Juan Ramón Jiménez (Prémio Nobel de Literatura, em 1956) descreve o ambiente e a vida da gente simples da sua pequena aldeia andaluza, e também a afeição que o une ao burrito Platero, que umas vezes lhe serve de confidente, e outras é o verdadeiro sujeito da ação. 

(Indicação de editor do site Literatura RS Vitor Diel)

Gênero: romance 

“A Amiga Genial” – Sinopse: A Série Napolitana, formada por quatro romances, conta a história de duas amigas ao longo de suas vidas. O primeiro, A amiga genial, é narrado por Elena Greco e cobre da infância aos 16 anos. As meninas se conhecem em uma vizinhança pobre de Nápoles, na década de 1950. Elena, a menina mais inteligente da turma, tem sua vida transformada quando a família do sapateiro Cerullo chega ao bairro e Raffaella, uma criança magra, mal comportada e selvagem, se torna o centro das atenções. Essa menina, tão diferente de Elena, exerce uma atração irresistível sobre ela. As duas se unem, competem, brigam, fazem planos. 

(Indicação da jornalista Tatiane de Sousa)

PS: A ideia desta publicação surgiu a partir da minha escassez de tempo para me dedicar a textos nesta coluna em 2023. O motivo, vocês já podem imaginar. Maldito capitalismo! 

Voos Literários

A greve em Hollywood e a perversidade capitalista

Flávia Cunha
3 de agosto de 2023

A greve dos roteiristas, atores e atrizes de Hollywood revela uma camada oculta da perversidade do capitalismo associada à tecnologia. Afinal, quando acessamos plataformas como a Netflix para relaxar depois de um dia exaustivo de trabalho, o que a gente menos pensa é na remuneração da equipe de filmes e séries. Sejamos honestos: quantos de nós, engajados politicamente e preocupados com a precarização das relações de trabalho, estavam por dentro das injustiças dos pagamentos residuais para a categoria artística?

Mídia brasileira superficial

Já aqui no Brasil, a cobertura jornalística sobre o assunto tem variado entre o entretenimento (“Confira quais celebridades apoiam a greve”) e a visão egoísta do tema (Será que a sua série preferida será prejudicada pela paralisação?). De qualquer forma, não é uma surpresa. Tradicionalmente, muitos veículos brasileiros costumam fazer uma abordagem editorial superficial em relação a movimentos de trabalhadores. Por exemplo, passeatas de categorias profissionais em busca de reivindicações salariais são transmitidas como meros transtornos de trânsito para ouvintes de rádios de informação. 

Ainda assim, notícias sérias sobre a greve divulgadas em escala mundial tiveram um efeito imediato. Que foi o de retirar o véu capitalista que encobria a penúria financeira da maioria dos atores e atrizes da indústria cinematográfica norte-americana. Além disso, a regulação das tecnologias envolvendo Inteligência Artificial é uma urgência justamente para os trabalhadores anônimos de Hollywood.

Tecnologia já provocou demissões no Cinema

Afinal, não é de hoje que a tecnologia coloca em risco trabalhadores deste setor. Uma das primeiras e mais avassaladoras demissões ocorreu ainda na década de 1920. Celso Sabadin, no livro A história do cinema para quem tem pressa, explica este contexto:

“O desenvolvimento da tecnologia de sincronização do som com a imagem cinematográfica, ou, em outras palavras, o surgimento do filme falado, em 1927, causou muito mais alterações significativas na produção, na linguagem e no mercado mundial de cinema do que se poderia supor num primeiro momento. Na verdade, a introdução do som foi considerada a maior revolução da história da Sétima Arte em todos os tempos, em todas as épocas. Afinal, como disse Noel Rosa em seu samba Não Tem Tradução, de 1933, “O cinema falado é o grande culpado da transformação.”

Celso Sabadin, na mesma obra, analisa que o abalo para a classe artística nesta época acaba não sendo tão lembrado:

“A chegada do cinema sonoro transformou-se também num pesadelo particular para atores e atrizes, principalmente os de vozes menos privilegiadas e os estrangeiros que faziam carreira nos Estados Unidos, mesmo sem o domínio da língua inglesa. Se na era muda a grande matéria-prima dos intérpretes eram suas expressões faciais e corporais, agora a voz, a fala e a dicção tinham de ser adicionadas a esse repertório, valorizando o trabalho de fonoaudiólogos e treinadores específicos de voz. Isso sem falar na capacidade de memorização de diálogos, até então dispensável. Transformações assim tão radicais interromperam várias trajetórias de sucesso.[…] Também caiu no esquecimento toda uma linhagem de cômicos mudos que apoiavam seus filmes em correrias, perseguições, acrobacias e performances físicas que soaram sem sentido na era falada. Com o som, o próprio subgênero da chamada comédia pastelão pereceu.”

Riscos práticos da I.A. para o trabalho criativo

Esta revolução na tecnologia do cinema, que já data de quase 100 anos, pode ser uma alerta sobre o futuro do trabalho criativo. Porque, no fim das contas, quantos espectadores saberão se os figurantes dos filmes e séries forem sempre os mesmos, replicados por Inteligência Artificial? Ou o quanto será divulgado se os roteiros das produções não tiverem mais seres humanos como mentes pensantes na criação? Enquanto ninguém se importa, o capitalismo vai avançando e provocando demissões, sem piedade.

Apoio milionário

Porém, os trabalhadores em Hollywood receberam um apoio importante para enfrentar as dificuldades financeiras enquanto estão paralisados. Diversos atores famosos doaram milhões de dólares para ajudar os colegas anônimos de profissão. Assim, a greve hollywoodiana ganha fôlego e não tem prazo para acabar. Enquanto isso, no Brasil, a solidariedade dos artistas super ricos com os menos favorecidos da mesma categoria profissional não é tão comum. Mas essa empatia e visão de classe bem que poderia servir de inspiração, não é mesmo?

Imagem: Facebook/Reprodução

 

Voos Literários

O submarino (ou o vazio emocional dos milionários)

Flávia Cunha
1 de julho de 2023
A submarine on a tourism expedition to explore the wreckage of the Titanic has gone missing off the coast of southeastern Canada, according to the private company that operates the vessel and the US coast guard. OceanGate Expeditions said in a statement on Monday that it was “mobilising all options” to rescue those on the underwater vessel, which typically has five people on board. British billionaire Hamish Harding is among the passengers, according to a social media post from a relative. The US coast guard said on Twitter that a boat on the surface, the Polar Prince, lost contact with the submersible about an hour and 45 minutes after it began diving toward the wreckage site on Sunday morning. PICTURED: File picture of OceanGate's Titan submersible.

O submarino tripulado por milionários e seu desfecho fúnebre foi um assunto que tomou proporções imensas nas redes sociais e nos noticiários. Convenhamos, a história é repleta de fatos curiosos e bizarros. Um caso típico de fait divers, expressão do jargão jornalístico para designar acontecimentos que não são facilmente categorizados dentro das editorias convencionais dos veículos de comunicação.

Dentre os elementos que chamavam a atenção, estava justamente a fragilidade do submarino, contrastando com a riqueza da tripulação. Uma excentricidade típica de pessoas abastadas mas que dessa vez resultou em um final trágico. Na Internet, houve quem comemorasse as mortes. Também tiveram aqueles que usaram o recurso da ironia para enfatizar que vidas ricas também importam. E foram feitas diversas problematizações do ponto de vista de classe social. Afinal, muitos naufrágios de embarcações com refugiados acontecem seguidamente, sem despertar quase nenhuma atenção da mídia.

Morbidez e curiosidade 

Porém, vamos pensar com calma. Não é apenas uma expedição mal planejada em um submarino que despertou tamanha atenção. Foi justamente a riqueza dos tripulantes, que podiam ter optado por uma viagem mais segura. Acontece que nós, meros mortais que batalhamos todos os meses para fechar as contas do orçamento doméstico, nutrimos, em geral, uma mórbida vontade de vermos milionários e celebridades em apuros.

Basta olharmos os grandes portais de notícias da atualidade. Todos eles reservam – em maior ou menor grau – espaço para dar destaque a notícias questionáveis do ponto de vista ético. Neymar é um alvo bem comum de especulações sobre sua vida amorosa e sexual. Não é de hoje que “menino” Ney se vê envolvido em acusações de traições e exposições de flertes virtuais. O episódio dos 40 minutos de supostas intimidades dispensadas a uma modelo para depois encontrar com a noiva grávida na véspera do Dia dos Namorados só viraram notícia por envolver alguém com fama e (muito) dinheiro. Afinal, infidelidades masculinas acontecem em qualquer espectro social, pois vivemos em uma sociedade patriarcal que minimiza esse tipo de comportamento quando cometido por homens. Para as mulheres casadas infiéis, célebres ou não, resta o julgamento moral e o “cancelamento” virtual. 

Intimidade exposta pós-morte

Por outro lado, podemos avaliar que Neymar e outros famosos só viram notícia porque não sabem preservar sua intimidade. Mas a batalha de herdeiros por uma grande fortuna demonstra que, em se tratando de milionários, manter a discrição em vida nem sempre garante que a memória da pessoa seja conservada intacta. O apresentador Gugu Liberato é o exemplo mais recente. Os embates judiciais já ocorrem há algum tempo desde sua morte, em 2019.

No entanto, nas últimas semanas, há uma onda de matérias e entrevistas com detalhes sobre sua vida sexual, já que a mãe dos 3 filhos do apresentador tenta provar que a relação com Gugu não era apenas de fachada. Independente da orientação sexual do apresentador, me parece bastante desrespeitoso “arrancar” do armário quem não está mais aqui para se pronunciar a respeito. A responsabilidade é da imprensa? Talvez não, já que pessoas próximas a Gugu foram quem resolveram fazer revelações. Contudo, novamente, o que está por trás da curiosidade do público é a imensa quantidade de dinheiro em disputa. 

Possivelmente, pode se tratar de uma espécie de vingança do proletariado. Afinal, os ricos podem não sofrer para pagar boletos mas nem sempre conseguem ser felizes. São, no mínimo, entediados em busca de aventuras sexuais que duram poucos minutos ou de viagens em submarinos que afundam, sem dó nem piedade. Nesse sentido, enquanto a desigualdade social prosseguir no mundo, notícias envolvendo ricos e famosos permanecerão rendendo boa audiência na mídia.

Sugestões de leitura

Acidente em Matacavallos e outros faits divers: um romance – O livro de Mateus Kacowicz, de 2010, usa como ponto de partida uma notícia curiosa, no estilo fait divers, para falar do impacto dessa matéria na vida de uma poderosa e rica família no Rio de Janeiro dos anos 1920. 

A Lista de Convidados Um crime ocorre durante uma festa milionária de casamento em uma ilha.  O assassino e seus motivos só pode estar entre os convidados do evento. Ou será que não? O livro é indicado para quem gosta de romances policiais com personagens endinheirados mas que guardam segredos sinistros.

Imagem: Facebook / Reprodução

Voos Literários

Narrativas políticas não me representam

Flávia Cunha
30 de maio de 2023
Brasília (DF) 29/05/2023 - O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, chega ao Palácio do Itamaraty para almoço com o presidente Lula . Foto Antônio Cruz/EBC

Narrativas políticas têm me provocado um tremendo enfado. Exemplo recente do uso da narrativa no sentido político é a visita ao Brasil de Nicólas Maduro. O controverso presidente venezuelano chegou ao país provocando a ira de integrantes da direita e extrema-direita, que relativizam a ditadura militar brasileira, mas usam esse argumento para atacar Maduro. Já o presidente Lula e parte da esquerda resolveram adotar uma narrativa perigosa. A de que as críticas a Maduro são baseadas na mera desinformação. Por esse ponto de vista, o presidente venezuelano teria uma gestão irretocável, atacada por opositores apenas por questões ideológicas. 

Em termos de narrativa política, esses são os pontos apresentados. Vilões ou mocinhos se revezam nas funções, de acordo com o autor da narrativa (ou post nas redes sociais). Seria uma espécie de telenovela mexicana, sem nuances de personalidade dos personagens. Para um antipetista, as narrativas sempre levarão a Lula ser ladrão, mesmo que se demonstre, com fatos, que sua prisão teve razões políticas. Dentro dessa perspectiva de percepção da realidade, a cassação do mandato de deputado de Deltan Dallagnol, por exemplo, é uma perseguição inaceitável, provavelmente arquitetada pelo vilão Lula. Adianta tentar argumentar com fatos para as pessoas que enxergam a política brasileira por esse prisma? Cada vez mais acredito que não. Pois as tais narrativas se sobrepõem às notícias e fatos, tornando inviável o trabalho da imprensa realmente comprometida com a verdade e não com interesses econômicos.  

Lula precisa defender tanto Maduro?

Porém, minha ressalva às narrativas esquerdistas vêm principalmente no caso da política internacional. Entendo que Lula queira se firmar no cenário mundial como uma liderança, depois do vácuo diplomático deixado pela falta de traquejo de Jair Bolsonaro. Porém, fazer defesa a Nicólas Maduro realmente seria necessário em um momento de turbulência na economia brasileira? Justamente nesse período complicado, que afeta diretamente os trabalhadores, com alimentos caros e dificuldade de manter as contas em dia? Será mesmo que era imprescindível Lula dar essa munição fácil para as narrativas da oposição?

Narrativas literárias

Da minha parte, prefiro narrativas literárias a narrativas políticas. Não apenas por ter estudado Literatura em termos acadêmicos, mas por considerar que a ficção em um livro está demarcada para os leitores. A imaginação é apenas isso. Quando baseada em fatos reais, há explicações a esse respeito para quem está lendo. 

Já as narrativas políticas são tomadas como 100% verdade por quem as defende. Mas o mundo real, assim como a boa literatura, é feito de sutilezas. Sendo assim, defendo a perspectiva de que mesmo sendo de esquerda, não vejo Lula como um herói. Porém, considero que o outro lado do espectro político anda muito mal frequentado. Já houve um tempo em que a gente podia respeitar os opositores (Saudades, FHC!). Por agora, me resta lamentar as tantas narrativas que endeusam medíocres e toscos da direita (e da esquerda!). Mas essa pode ser apenas a minha narrativa sobre um Brasil em reconstrução pós-pandemia e pós-bolsonarismo.

Imagem: Antônio Cruz / Agência Brasil



Voos Literários

Criticar o governo Lula é permitido para esquerdistas?

Flávia Cunha
25 de abril de 2023
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, visita pela primeira vez o centro de transição no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e se reúne com parlamentares das bancadas aliadas.

Criticar o governo Lula e as falas do presidente da República vem sendo um campo minado para quem tem ideais esquerdistas. Sem dúvida, a eleição do atual presidente é um alívio, depois de enfrentarmos os desmandos de Jair Bolsonaro no cargo. Porém, apenas por isso, Lula seria inquestionável?

Diante de um certo linchamento virtual para quem ousa apontar erros no atual governo, estou internamente reticente desde janeiro de 2023. Será que posso criticar, por exemplo, a forma como foi anunciada a taxação de compras em plataformas asiáticas e seu subsequente recuoDevo comentar que as falas improvisadas de Lula precisam ser contidas por sua equipe? É conveniente opinar que Janja talvez esteja um tom acima como primeira-dama e poderia ser um pouco mais discreta em suas declarações e posicionamentos?

Críticas construtivas deveriam ser bem-vindas

Para além do receio de “cancelamento” por parte de quem vê na figura de Lula um líder que nunca erra, recomendo avaliarmos se determinados posicionamentos contrários ao governo em seus primeiros meses não serão usados como munição pelas hordas da extrema-direita. Então, considero fundamental calcularmos quais críticas poderão ser de fato construtivas e não apenas serem somadas ao mero ato de falar mal de quem está no poder. Nesse sentido, percebemos o quanto o antipetismo construiu um repertório vasto – e tosco – que vai de citar a falta de um dedo de Lula a garantir que ele é o maior ladrão de todos os tempos, ainda que a corrupção no país seja endêmica e presente desde os primórdios da colonização portuguesa no Brasil.

Por outro lado, acredito que a capacidade de análise crítica foi deturpada nos últimos anos, em especial com o acirramento da polarização na política. Desaprovar determinada ação de alguém que admiramos não deveria nos transformar automaticamente em inimigo desta pessoa. 

Mas, no mundo virulento das redes sociais, é muitas vezes o que acontece. Um exemplo recente foi a reação a uma publicação de Manuela D’Ávila, que ousou fazer críticas e dar sugestões à equipe de comunicação do governo federal. Integrante do PC do B e ex-candidata à vice-presidente em 2018 na chapa com o petista Fernando Haddad, tenho certeza que ela jamais imaginou que seria xingada por esquerdistas por esta “ousadia”.  

Indicação de leitura

Como de costume, defendo o ponto de vista que os livros podem contribuir para mudanças reais de comportamento. Por isso, sugiro a leitura de Pensamento crítico: o poder da lógica e da argumentação, de Walter A. Carnielli e Richard L. Epstein, lançado no Brasil pela editora Rideel. 

No prefácio da primeira edição desta obra de filosofia, os autores destacam a importância do pensamento crítico, tão necessário nos tempos atuais:

“Pensar criticamente é algo com que nos defrontamos todos os dias, e é um componente fundamental da nossa formação numa verdadeira democracia. Precisamos pensar criticamente para sermos melhores cidadãos e melhores profissionais, quer sejamos professores, filósofos, advogados, juízes, políticos, jornalistas, historiadores, médicos, artistas ou cientistas. Se dominarmos o pensamento crítico, teremos a possibilidade de participar de um modo mais produtivo nas relações interpessoais, pois as nossas propostas serão mais claramente formuladas e estarão mais bem fundamentadas. E não seremos tão facilmente enganados pelo mau jornalismo, pela publicidade e pelos maus políticos. Teremos uma palavra sensata e fundamentada a dizer e poderemos contribuir para uma sociedade e para um ensino melhor.”

 

Imagem: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Legibilidade

Voos Literários

Etarismo como estratégia na tentativa de golpe?

Flávia Cunha
1 de fevereiro de 2023
Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto.

O etarismo teria sido uma das estratégias dos articuladores da tentativa de golpe em 8 de janeiro. Conforme alguns analistas, o destaque à participação de idosos nas manifestações antidemocráticas em frente a quartéis foi proposital. Desse jeito, a extrema-direita daria uma imagem de fragilidade ao movimento. Consequentemente, a ideia de um ataque concreto e violento às instituições brasileiras pareceria distante.

Porém, no meu ponto de vista, caso esta tática tenha sido mesmo intencional, o recurso só foi utilizado porque o etarismo é latente em todos os espectros políticos. Por isso, quem planejou e patrocinou os atos contra a democracia no Brasil pode ter se aproveitado de um preconceito social, silencioso e estrutural. 

Memes etaristas

Afinal, é muito comum (e lamentável) que jovens debochem de pessoas mais velhas apenas pelo fator etário. Assim, as manifestações descabidas a favor da volta da ditadura militar e contra o resultado das eleições presidenciais de 2022 viraram memes. Foram consideradas como coisa de velhos desocupados. Lembro de uma das piadas destacando que o retorno dos bingos acabaria com os protestos antidemocráticos. Por esse raciocínio “humorístico”, apenas pessoas mais velhas (e aposentadas) estariam envolvidas nas manifestações. Dessa forma, a chacota com idosos contribuiu para que um movimento organizado e com patrocínio de empresários nos bastidores não fosse levado tão a sério. 

Evidentemente, não estou aqui defendendo a parcela da população idosa que participou da tentativa criminosa de golpe e nem as pessoas (de qualquer faixa etária) que resolveram sair às ruas de verde e amarelo fazendo reivindicações insanas e descabidas. Porém, considero que é importante refletirmos, enquanto sociedade, sobre a reprodução de preconceitos em nome de um suposto humor. Há muito tempo, sabemos que falar de forma desrespeitosa sobre a raça, a orientação sexual, o corpo ou o gênero de alguém está longe de ser engraçado. No entanto, “tirar onda” dos mais velhos parece um comportamento ainda aceitável.

Um alerta necessário

Portanto, gostaria de deixar um recado aos jovens que leem esse texto escrito por uma mulher de 45 anos. Um dia, os cabelos brancos vão surgir. As rugas aparecerão em seus rostos agora sem marcas de expressão . E, daqui a alguns anos, se não houver um esforço coletivo para acabar com o etarismo, serão vocês os hostilizados apenas pelo tempo ter passado. Além disso, os corpos mais velhos desafiam a lógica capitalista que reverencia a juventude, em nome dos lucros da indústria de procedimentos estéticos. Por fim, é essencial destacar que uma democracia só será completa se todos os cidadãos forem respeitados da mesma forma.

Livro para aprofundar as reflexões

Etarismo, um novo nome para um velho preconceito (editora Gulliver, 2021).  A psicóloga Fran Winandy, especialista em Diversidade Etária e Etarismo, descreve em detalhes como combater esse preconceito. 

Inspiração

Tive a ideia para esta publicação ao me deparar com este texto do site Congresso em Foco. Por isso, indico também esta leitura.

Outros textos

A coluna Voos Literários já abordou o tema etarismo, com enfoques a partir do feminismo, da luta de classes e da militância de esquerda.

Imagem: Marcelo Camargo / Agência Brasil

 

Voos Literários

2022, o ano que não terminou

Flávia Cunha
6 de dezembro de 2022

2022 é o ano que não terminou. Claro, escrevo no dia 6 de dezembro. Então, pelo calendário gregoriano realmente o período de 12 meses ainda não se encerrou. Mas o que me refiro é a algo mais profundo e subjetivo. Ou seja, a maneira reiterada como determinados assuntos no Brasil parecem não ter conclusão nunca.

Novas variantes de um mesmo tema

Um exemplo de que 2022 é o ano que não terminou? Vamos à pandemia. Aparentemente, era uma preocupação passada. Aos poucos, mesmo os mais cautelosos foram abrindo mão do uso de máscaras e voltando ao convívio social sem restrições. Até que novas variantes vieram, aos poucos, mostrando que a pandemia não acabou. Para piorar, a campanha de vacinação contra a covid é praticamente inexistente por parte do já quase extinto governo Bolsonaro. Além disso, o Ministério da Saúde não comprou as vacinas com maior proteção contra as variantes mais recentes do coronavírus. Ou seja, é uma preocupação que não vai acabar neste ano.

Teimosia eleitoral?

Outro sintoma de que 2022 é um ano atípico para o encerramento de ciclos, são as eleições presidenciais. Para os apoiadores do candidato derrotado, o pleito não acabou. Eles pedem recontagem, anulação da votação ou intervenção militar, enquanto permanecem em frente a quartéis, gritando palavras desconexas de ordem. E os protestos contra a vitória de Lula parecem não ter um fim previsto. Além dos acampados saudosos da ditadura, nesta semana manifestantes tentaram invadir um hotel em Brasília onde o presidente eleito está hospedado. O tema eleições, pelo jeito, só acabará com a posse de Lula na virada do ano. Ainda assim, permanece o receio de que parte da população siga negando o resultado das urnas.

Militares intrometidos onde não devem

Fora dessa perspectiva anual e entrando em uma espécie de espiral do tempo, vemos integrantes das Forças Armadas intrometidos na política, apoiando as manifestações golpistas. Além disso, não é incomum vermos oficiais do Exército fazendo declarações de cunho ideológico nas redes sociais, o que é considerado transgressão disciplinar pela caserna. Neste aspecto, 2022 se assemelha – de forma perigosa – a 1968, o ano que realmente não terminou. Há 54 anos, os militares brasileiros apertavam ainda mais o cerco a quem era contra a ditadura, com o AI-5 e outros atos antidemocráticos. Naquela época, artistas eram perseguidos e tratados como comunistas e subversivos. Infelizmente, este pensamento está longe de ser algo ultrapassado. Em 2022, o ano que não terminou, parece estar na moda ser contra a democracia e apoiar um capitão derrotado que chora em público para comover seu eleitorado.

O livro que inspirou este texto

1968: o ano que não terminou, de Zuenir Ventura, é um clássico brasileiro de não ficção lançado em 1989. Na obra, o jornalista aborda os diversos fatos históricos que marcaram o Brasil e o mundo naquele ano. Muitos destes acontecimentos têm repercussão ainda na atualidade. Recentemente, Zuenir Ventura declarou que considera que 1968 “ainda não terminou”. 

Imagem: Freepik/Reprodução

 

Voos Literários

“A gente quer comida, diversão e arte”

Flávia Cunha
25 de outubro de 2022

“A gente quer comida, diversão e arte”, trecho da música Comida da banda Titãs, resume o que o povo brasileiro merece a partir de 2023, com um resultado favorável no segundo turno das eleições presidenciais. Afinal, a fome no Brasil bolsonarista não é  metafórica, atingindo mais de 33 milhões de pessoas.

O Vós produziu o áudiodocumentário O Retrato da Miséria, ainda em 2021, alertando sobre esse grave problema.

Sendo assim, defendo a Arte e a Literatura neste espaço longe de estar desconectada do grave momento no qual vivemos, com cada vez mais pessoas revirando lixo pelas ruas em busca de algo para comer. Porém, discordo de integrantes da esquerda que hostilizaram escritores por se posicionarem nas redes sociais tendo em mãos o símbolo da Literatura. 

“L com Livros”

O novo alvo de “fogo amigo” foi a campanha “L com Livros”, em que 109 autores da editora Companhia das Letras apareceram em vídeos abrindo livros para formar a letra inicial do nome do candidato Lula. Na mira da raiva esquerdista, nomes como Laerte, Fernanda Montenegro e Chico Buarque. Em um dos vídeos, também estava Jeferson Tenório, escritor reconhecido por enredos onde o racismo e a violência policial são abordados de forma profunda e necessária. Seria ele um alienado? É evidente que não!

Porém, tiveram muitos esquerdistas nas redes sociais ofendendo quem participou da campanha, chamando de cirandeiro e elitista. Só que estas alegações se somam ao ódio já esperado de setores da direita bolsonarista. Dentre eles, o jornalista Rodrigo Constantino, que propôs um boicote aos livros vendidos pela Companhia das Letras. Em tempos de tantas perseguições, seria interessante parar para pensar que uma empresa se posicionar abertamente a favor de Lula é um ato corajoso e que pode, eventualmente, trazer prejuízos financeiros. Então, qual o motivo de tantas críticas do espectro ideológico que deveria defender a Cultura?  

“Comida, diversão e arte”

Para completar, é bom lembrar que gravar um vídeo fazendo um “L com um Livro” é algo muito rápido. Além disso, ter aderido à campanha não significa deixar de fazer parte de ações práticas para ajudar quem precisa de apoio diante de um cenário de crise econômica e social.

Por isso, vou indicar 2 projetos que se dedicam a minimizar a fome, promover a dignidade e incentivar a leitura.

O CQM+, projeto social do grupo artístico Cuidado Que Mancha, promove ações contínuas para arrecadação de alimentos e roupas em diversas regiões de Porto Alegre (e algumas cidades próximas). Um dos destaques da iniciativa é o “Mãos de Mães”, atividade realizada com mulheres desempregadas de comunidades periféricas da capital gaúcha, que tem acesso a uma semana de oficinas e orientações sobre empreendedorismo. Saiba como apoiar.

Já o Cirandar é uma entidade que promove projetos pautados na educação como ferramenta de transformação social. Dentre as iniciativas, a democratização do acesso ao livro. Os integrantes da ONG consideram que a leitura um direito humano essencial para a conscientização e o empoderamento das pessoas. Saiba como ajudar.

Cirandeiros, uni-vos

Além disso, me posicionei anteriormente a favor da alegria cirandeira. Pois se de um lado existe ódio, granadas e armas, do lado de cá da trincheira precisamos ter leveza, amor, arte e livros. E, comida, claro. Afinal, quem não quer comemorar a vitória do Lula nas eleições neste domingo com a refeição de sua preferência?

Histórico da canção Comida
A música, composta por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sergio Brito foi lançada em 1987. O período era de redemocratização política. A letra, portanto, representava a fome de cultura, diversão, felicidade e também de democracia. 
Imagem: Instagram/ Reprodução  


 

Voos Literários

Esquerda cirandeira – pelo direito à felicidade

Flávia Cunha
27 de setembro de 2022

Esquerda cirandeira é um termo pejorativo criado há alguns anos para definir militantes deste espectro ideológico que fariam performances vazias e alegres. Mas, e se a alegria cirandeira for uma necessidade no momento atual? Ou melhor, um direito à felicidade. Afinal, vivemos, desde 2018, uma sucessão de crises: na política, na ética, na saúde pública, na economia, nos direitos humanos…

São tantas crises e tristezas cotidianas que entramos em um piloto automático para conseguir aguentar o escárnio e a falta de postura do presidente e de seu primeiro escalão cheio de figuras torpes. Então, durante a campanha presidencial, houve mesmo momentos de alegria da esquerda cirandeira, seguidos de críticas da esquerda mais “séria” e combativa. 

Dentre os episódios com maior repercussão, destaco o vídeo do Vira Voto, no qual muitos artistas se posicionaram a favor de Lula e do voto útil, e fotos de 13 livros com capas vermelhas sendo espalhadas pelas redes sociais.

Desafio elitista?

Pois é no desafio literário que gostaria de me deter para fazer algumas reflexões. Dentre as críticas que observei, me chamaram a atenção dois argumentos. Primeiro, o de um suposto elitismo, com a justificativa de que quem teria 13 livros em casa, ainda mais de uma cor específica de capa, só poderia ser alguém muito privilegiado financeiramente. Segundo, que seria um comportamento online “idoso”, revelando um preconceito etário, como se vê no tweet a seguir:

“Concordo com o voto, mas acho a coisa mais boomer que tá tendo. Tiozinho metido a sabido que curte jazz em livraria, saca?”

Desafio cirandeiro?

Bem, vamos por partes. O elitismo atribuído a quem gosta de literatura é uma constante no Brasil. Paulo Guedes, o famigerado ministro da Economia de Bolsonaro, defende que livros sejam taxados pois, para ele, somente ricos seriam leitores no Brasil. Inclusive já comentei amplamente sobre esse assunto aqui na coluna, demonstrando que dados revelam como pessoas periféricas também são leitoras. Mas voltemos ao aspecto cirandeiro do desafio. É lúdico? Sim! É decisivo para o resultado das eleições? Não! Mas, sem dúvida, é uma demonstração divertida de quem é mais favorável aos livros do que as armas, tão defendidas pelo bolsonarismo.

E, em tempos de tanto ódio e violência, é um meme inofensivo. Além disso, para os jovens militantes de esquerda que destilam etarismo ao comentar sobre como é “boomer” a ideia deste desafio, lembro que Lula tem 76 anos e seu oponente, Bolsonaro, 67. Portanto, os mesmos jovens que debocham dos “tiozinhos que ouvem jazz em livraria”, votarão no candidato mais idoso para presidente. É, no mínimo, um contrassenso. 

Sejamos alegres!

Portanto, vai aqui minha singela defesa à alegria da esquerda cirandeira. Seja com livros, memes, músicas ou cirandas: temos direito à felicidade!

Desejo um bom voto aos leitores e leitoras neste dia 2/10. E que tenhamos muitos motivos para celebrar!

Imagem: Facebook / Reprodução