Voos Literários

O Avesso da Pele e a indignação seletiva conservadora

Flávia Cunha
5 de março de 2024
Capa do livro "O Avesso da Pele". Imagem: Companhia das Letras / Reprodução

O Avesso da Pele, premiado romance de Jeferson Tenório, virou notícia nacional ao ser alvo de tentativa de censura no Rio Grande do Sul. Tudo começou com a diretora de uma escola pública estadual de Santa Cruz do Sul publicando um vídeo em suas redes sociais. Ela alegava estar chocada com as palavras de baixo calão e o teor supostamente pornográfico do enredo. Além disso, pedia a proibição da adoção do livro em turmas do Ensino Médio. Em termos de cobertura de imprensa, o posicionamento da diretora e a repercussão contrária à tentativa de censura vem sendo tratada como uma mera “polêmica” apenas pelos veículos daquele município.

Livros do PNLD são uma escolha das escolas

No restante do país (incluindo a grande mídia gaúcha), a abordagem é a de um comentário equivocado feito justamente pela educadora responsável por selecionar a obra em questão. Ao ser confrontada com o fato de que as obras do Programa Nacional do Livro e Material Didático (PNLD) só são enviadas pelo MEC a pedido da instituição de ensino, a diretora Janaína Venzon caiu em contradição. Primeiro, alegou que havia colocado o livro na lista de obras apenas analisando a capa, sem ler o conteúdo. Depois, voltou atrás e garantiu que o fato se devia a uma falha do sistema ligado ao MEC. 

De qualquer forma, os livros chegaram a ser retirados da biblioteca daquela escola e houve um pedido da coordenadoria de educação da região para adotar a mesma medida nos municípios de sua abrangência. Porém, o governo gaúcho já desautorizou esta decisão.

Entretanto, causa espanto que um trecho (descontextualizado) sobre sexo em meio ao denso enredo de O Avesso da Pele provoque mais indignação do que o relato principal, conforme comentou o próprio Jeferson Tenório em suas redes sociais:

“O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras.”

Nova tentativa de censura no Paraná

Mais do que um fato isolado, a tentativa de censura de O Avesso da Pele faz parte do comportamento recorrente da parcela mais conservadora da população brasileira. O repúdio à adoção da obra em sala de aula sustenta-se sob o argumento (falso) de que a culpa é do governo Lula. Ainda que haja comprovação, inequívoca, de que o livro, dentre outros, foi selecionado para o PNLD ainda na gestão Bolsonaro, em 2022. Em um novo desenrolar das estratégias conservadoras, há tentativa de censurar a obra, desta vez no Paraná. A coordenação do Núcleo Regional de Educação de Curitiba determinou o recolhimento de exemplares do livro. A denúncia foi feita pelo sindicato dos trabalhadores em educação pública. 

Defesa contínua da democracia

Dentro desse cenário, precisamos lutar pela defesa dos princípios democráticos. Também é um contrassenso defender que os jovens não leiam determinados livros em ambiente escolar, onde há um processo de mediação de leitura.

A Companhia das Letras, editora responsável pela publicação de O Avesso da Pele, inclusive disponibiliza, em seu site, para download gratuito, um material de apoio destinado a professores. Chamado “Por Uma Escola Afirmativa: Construindo Comunidades Antirracistas”, o documento traz questionamentos e reflexões pertinentes sobre o papel da escola nessa dinâmica:

“A leitura, guiada pelo prisma do letramento racial – entendido como um processo de consciência e conhecimento racial –, é uma plataforma que, em um mesmo gesto, aproxima e ensina. Por essa razão, a literatura pode ser uma linguagem fundamental para a construção de uma sociedade mais igualitária e autorreflexiva. A escola é um espaço absolutamente central para a formação de sujeitos capazes de viver em uma sociedade plurirracial, preparados para compreender que as diferenças que nos individualizam não podem justificar a desigualdade racial e o extermínio de corpos e mentes.”

Felizmente, em meio às tentativas de censura deste livro, a obra está, nos últimos dias, entre as dez mais vendidas na Amazon. Sendo assim, houve o efeito contrário à onda de avaliações negativas promovida nesta plataforma de vendas e também no Google livros. Afinal, quem realmente gosta de Literatura dificilmente se deixará levar pelo falso moralismo e por tentativas de cercear a liberdade de acesso à cultura. 

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #31 Crivella e Bolsonaro, sem livros e sem pesquisa

Geórgia Santos
14 de setembro de 2019

No Bendita Sois Vós desta semana, censura e atraso. Enquanto o governo federal de Jair Bolsonaro corta mais de 5mil bolsas de pesquisa de pós-graduação, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella – não sozinho – censura livros com temática LGBT sob o argumento de proteção às crianças.

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Bolsonaro e seus asseclas não gostam de livros, pesquisa ou conhecimento
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Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. A edição é da jornalista Evelin Argenta. No quadro Sobre Nós, a diretora Raquel Grabauska traz a palavra de Cassandra Rios, a escritora mais censurada do Brasil. 

Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Igor Natusch

De vez em quando, os fascistas não vão passar

Igor Natusch
12 de setembro de 2019

Na dura luta conta a escalada reacionária e fascista que ameaça transformar o Brasil em escombros, todas as vitórias devem ser comemoradas.

No último dia 7 de setembro, tivemos um triunfo significativo nesse sentido. Diante da censura homofóbica promovida pelo prefeito Marcelo Crivella contra a Bienal do Livro no Rio, uma reação (disparada, até certo ponto, pelo super-trunfo midiático Felipe Neto) forçou a ofensiva obscurantista a recuar, em uma sequência de acontecimentos que incluiu recordes de vendas, manifestações ruidosas e uma capa história da Folha de S. Paulo. A insensatez preconceituosa de Crivella (e do desembargador Cláudio de Mello Tavares, do TJ-RJ, que temporariamente autorizou o absurdo recolhimento de livros com temática LGBT) foi enfrentada e, no fim das contas, não triunfou.

Pela primeira vez em um tempo considerável, os fascistas não passaram.

Ainda assim, não foram poucos os que se mostraram, no mínimo, reticentes em comemorar. Afinal, argumentou-se, a ala mais radicalizada à direita estaria achando o máximo o posicionamento do prefeito carioca – e a reação estaria, na verdade, fidelizando e dando coesão às forças obscurantistas ao invés de enfraquecê-las. Ao falar do assunto, servimos à narrativa deles. Se continuarmos agindo assim, eles vão se reeleger, vão seguir no poder indefinidamente e nunca poderão ser derrotados etc e por aí vai.

Olha, sinceramente: está na hora de desapegar desse medo.

Não há qualquer sentido em disputar a mente dos apoiadores mais empedernidos de Bolsonaro, Crivella e de tudo que eles representam. Eles investiram muito de si nessa história, enormes quantidades de recalques e angústias, e simplesmente não vão saltar fora do barco ao primeiro sacolejo do mar revolto. Talvez desistam, em algum momento, desta trilha de destruição – mas dificilmente agora, e certamente não pelas palavras de ordem de um bando de petralhas esquerdopatas.

E, se converter os convertidos não está no horizonte, que sentido há em ficar temeroso pelo que eles pensam?

Quem propôs a briga foram Crivella e os seus. A reação veio porque, no caso, não tinha como não vir. Silenciar era inconcebível.

Ou permitir que os livros fossem recolhidos era, quem sabe, uma posição tática aceitável? Talvez, para evitar reforçar os reacionários, devamos aceitar que eles façam o que der na telha, sem qualquer tipo de contestação? Torcer para que, se ficarmos bem quietinhos, eles simplesmente desistam de nos importunar?

É possível acalmar a besta fingindo que não se escuta o que ela diz, que não se vê o que ela faz?

A fandom reacionária está, por assim dizer, perdida. Não temos que lutar por eles, mas sim enfrentar quem os usa como manobra. Agir de forma que, ao espectador ainda não posicionado, o lado do atraso, da destruição e do ódio a tudo que não seja espelho pareça tão inaceitável quanto de fato é. E, acima de tudo, temos que lutar pela nossa própria força. Temos que ser capazes não apenas de resistir, mas de confrontar. Se é preciso aprender a não dar fôlego a essa corrente-para-trás que nos consome, é igualmente importante tirar lições de nossas vitórias. Ser capaz de encontrar força, inspiração e estratégia em tudo que nos tira, mesmo que por poucos momentos, da defensiva.

Os fascistas não passaram, ao menos desta vez. E, se não passaram, é porque alguma coisa de certo a gente fez.

Foto: Ana Paula Rocha / Reprodução / Twitter

Geórgia Santos

Os beijos do filme mais lindo do mundo

Geórgia Santos
11 de setembro de 2019

O filme mais lindo do mundo fala de um tempo em que beijar era feio. Bem, o era para o vigário do povoado siciliano de Giancaldo, em uma Itália no pós-Guerra. Padre Adelfio fazia com que o projecionista Alfredo cortasse todas as cenas de beijo de qualquer filme que assistisse – porque como todo bom censor, ele via, previamente, a tudo o que os outros seriam impedidos de ver. Usando a hipocrisia que provavelmente o excitava como cortina, além dos beijos, censurava seios e pernas expostas. E fazia o mesmo com tudo que considerasse impróprio. Por motivos menos aleatórios e a mais a serviço de uma agenda moralizadora da Igreja Católica.

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Mas não há censura que impeça a curiosidade de um menino. Totò, o protagonista de Cinema Paradiso (1988), ficava escondido atrás das cortinas, engalfinhado em veludo vermelho que, a mim, parecia cheirar mofo, e testemunhava todos os beijos,
todas as “indecências”,
todas as “imoralidades”
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Os olhos do guri de seis anos brilhavam. Não pela mesma safadeza do Padre Adelfio, mas pelo cinema. Era o cinema que o encantava. Tanto que ele queria levar os beijos para casa. E os seios, as pernas, os tiros, as brigas, as indecências e as imoralidades. Mas Alfredo não deixava.

Eu sei que parece uma contradição eu afirmar que o filme mais lindo do mundo esconde beijos. Eu sei. Mas no filme mais lindo do mundo, os beijos vencem no final. 

O conto de Cinema Paradiso aconteceu, de certa forma, no Brasil. O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, também não gosta de beijos. Ele não é o padre Adelfio, mas o bispo evangélico ficou escandalizado com o romance gráfico Vingadores, A Cruzada das Crianças, da Marvel.  A obra estava disponível na Bienal do Livro e conta a história do casal Wiccano e Hulking. Dois homens. Que se beijam.

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Como eu disse, Crivella não gosta de beijos e determinou que a obra fosse retirada das prateleiras
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Em vídeo publicado no Twitter, o prefeito disse que “livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e um adesivo do lado de fora avisando o conteúdo” e que tudo fora feito para “proteger as crianças”.  Assim, em 2019, bem distante de Giancaldo ou do pós-guerra, beijos foram proibidos na Bienal. Um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública (sim, isso existe) percorreu os estandes da feira para recolher exemplares “com cenas impróprias a crianças e adolescentes.” De forma aleatória. Igual ao padre Adelfio. Igual a qualquer censura.

O youtuber Felipe Neto reagiu ao obscurantismo e distribuiu, gratuitamente, mais de 10mil obras com temática LGBT durante a Bienal do Livro no Rio. Adequadamente, as publicações estavam envolvidas em plástico e um adesivo do lado de fora: 

“Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.”
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Assim como em Cinema Paradiso, os beijos venceram. Mas isso não é um filme, isso não é o final.  O Brasil é governado pelo Padre Adelfio.

Voos Literários

Censura nunca mais!

Flávia Cunha
10 de setembro de 2019

Caros leitores, embarquem no túnel do tempo da política reacionária brasileira, em que a tentativa de censura a livros é vista como uma batalha a favor da moralidade em pleno século 21.

Refiro-me, claro, à atitude vergonhosa do prefeito Marcelo Crivella de tentar apreender, durante a Bienal do Rio de Janeiro, a HQ Vingadores, a Cruzada das Crianças pelo “perigo” de mostrar um beijo entre dois personagens masculinos. O caso teve repercussão internacional e, para pavor dos conservadores de plantão, alavancou a venda do livro e a comercialização e distribuição de outras obras com temática LGBT durante um dos eventos literários mais importantes do Brasil.

Mas por que me refiro ao túnel do tempo? Porque Crivella parece ter se inspirado em um decreto de 1970, quando o militar Médici estava no poder sem ter sido eleito pela via democrática. Aquele período histórico que muitos agora tentam dizer que não existiu, sabem?

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Observem alguns trechos do Decreto-lei nº1.077 e vejam como a atitude de Crivella não tem nada de original

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[…] não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes;

CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;

CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;

CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum;

CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;

CONSIDERANDO que o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.

DECRETA:

Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.

[…]

Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.”

Sob o argumento desse decreto, muitos livros foram censurados durante a Ditadura Militar, mostrando que a sexualidade era uma das paranóias daquele período, juntamente com a ameaça comunista. Exemplo disso é a escritora Cassandra Rios, que foi campeã em obras censuradas (um total de 36 livros) não por abordar questões políticas mas por escrever literatura erótica, com muitas personagens lésbicas presentes em seus romances. Antes da censura ser implementada pelo regime militar, foi a primeira mulher a vender um milhão de exemplares no Brasil e foi uma das primeiras pessoas a assumir a escrita de livros como única profissão em um país conhecido por escritores precisarem de outros ofícios para sobreviverem.

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Para encerrar esse texto anti-censura, vamos a um trecho de um dos romances “proibidões” de Cassandra Rios (Copacabana Posto 6/ A Madrasta), vetado pelos censores em 1975
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“Vocês, como eu, já recalcaram todas as piores mágoas que um ser humano pode ter. Primeiro aquela surpresa de que nossos gostos são diferentes, contrários aos bons costumes sociais, que temos que ocultá-los. Segundo, a vergonha da palavra: lésbica! Homossexuais!”

Imagem: Reprodução/Instagram

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #29 A cruzada contra os jornalistas

Geórgia Santos
17 de agosto de 2019

Como não conseguimos ficar uma semana sem falar do governo de Jair Bolsonaro – porque ele simplesmente não deixa -, o Bendita Sois Vós desta semana discute liberdade de imprensa. Mais especificamente a cruzada contra os jornalistas no Brasil e no mundo. Por aqui, o caso mais emblemático é a perseguição aos jornalistas do The Intercept Brasil após a publicação das reportagens da VazaJato. Por isso,  conversamos com o editor-executivo do TIB, o jornalista Leandro Demori. 

Jair Bolsonaro chegou a insinuar que o jornalista Glenn Greenwald, também do The Intercept Brasil, poderia ser preso. Mas o porta-voz do governo, general Otávio do Rego Barros, confrontado pelo repórter Guilherme Maziero, do Uol, não soube dizer qual crime Glenn Greenwald cometeu.

Para debater o assunto participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Tercio Saccol e Igor Natusch. Na trilha, Vence na Vida Quem diz Sim, com Chico Buarque e Nara Leão. 

Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #27 A normalização do absurdo

Geórgia Santos
2 de agosto de 2019

No episódio cinco da segunda temporada do Bendita Sois Vós, os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch discutem a normalização do absurdo. O debate acontece a partir das declarações mentirosas e preconceituosas do presidente Jair Bolsonaro que, entre outras coisas, mentiu que a jornalista Miriam Leitão era guerrilheira; disse que a Ancine precisa de filtro; chamou os governadores nordestinos de “paraíbas”, de forma pejorativa; afirmou que ninguém passa fome no Brasil; e ainda relativizou o trabalho infantil.

No Sobre Nós, com direção de Raquel Grabauska, as palavras da escritora Carolina de Jesus sobre a fome em reprodução de um episódio da temporada passada.

Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Reportagens Especiais

Eugênio Bucci: “A imprensa serve para duvidar do poder”

Geórgia Santos
19 de novembro de 2018

No episódio 9 do podcast Bendita Sois Vós, a liberdade de imprensa esteve no centro do debate.  Somos livres? Qual a  função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia? Para contribuir com a reflexão, a jornalista Evelin Argenta conversou com o professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

A pergunta é ampla, mas importante para começar. Essas eleições foram marcadas por uma proliferação de fake news e o uso político disso. Tivemos grandes empresas de comunicação que formaram comitês de checagem, mas parecia que estávamos enxugando gelo. Jornalistas atacados, ameaçados, perseguidos, apurações contestadas. Como o jornalismo sai dessa eleição?

Eugênio Bucci – Eu acredito que sai um pouco machucado em função das intimidações, agressões, tivemos vários episódios de intolerância, de desgaste produzido pelas redes sociais, descrédito de jornalistas construído artificialmente e em campanhas quase industriais. Todo tipo de ameaça, de desqualificação, isso tudo é muito ruim e sem dúvida nenhuma machuca a instituição. E eu não estou juntando aí algo que precisamos levar em conta, que é o nível de agressão física contra jornalistas. Nós temos assassinatos de jornalistas no Brasil, que infelizmente dá destaque ao país nesse sentido.

Ao mesmo tempo, a gente sai dessa eleição com uma experiencia acumulada que é muito importante. Eu não sei se o trabalho das instituições e grupos que checaram os boatos para separar o que é falso do que é verdadeiro foi apenas um trabalho de enxugar gelo. Eu tenho a impressão de que, em grande medida, isso foi importante, nós temos que pensar como teria sido se não houvesse esforço das redações e dos jornalistas profissionais para desconstruir essas falsidades e fraudes produzidas industrialmente que tinham como objetivo confundir o eleitor e tirar proveito disso. Eu diria que a gente sai machucado, mas com um aprendizado.

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Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

Eugênio Bucci

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A gente não faz jornalismo para agradar ninguém, se estamos agradando, tem alguma coisa errada. Mas a impressão é que as pessoas começaram a ver o jornalista como oposição, como se houvesse uma espécie de partidarização do jornalista. O senhor concorda que saímos como oposição?

Eugênio Bucci – Eu não tenho essa impressão, a gente teria que ver depois em análises mais precisas e pesquisas, mas o jornalismo é fonte de contestação, especialmente em relação ao poder. Nós temos que nos acostumar como um dado da rotina. A imprensa serve para duvidar do poder, para contestar os discursos do poder, para pedir demonstrações e provas sobre aquilo que o poder afirma. Então a impressão de que o jornalismo é uma oposição é parcialmente verdadeira desde que não seja entendida como oposição partidária. O jornalismo é um contrapeso do poder, é um contrapeso no sentido de ser uma contestação, uma fonte que duvida, um polo de antagonização. E aí é nosso papel. Mas uma coisa que eu gostaria de pôr em destaque é que, nessas análises, talvez a gente misture o que é fake news com outros relatos igualmente fraudulentos, mas diferentes.

Temos aí no meio o discurso de ódio, que as vezes mobiliza uma informação falsa, mas outras vezes não. Ele existe simplesmente para difundir ódio, intolerância, vontade de eliminar um determinado agente político, um grupo de pessoas ou uma etnia. O outro componente que não é necessariamente fake news é o discurso ligado às teorias da conspiração, que se misturam ao discurso de ódio e um pouco às próprias fake news. É a ideia de que alguém armou uma grande estratégia para promover um determinado candidato ou para prejudicar outro. E então aparecem essas coisas como a informação de que a facada do Bolsonaro foi encenação e esse monte de baboseiras que a gente vê. Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

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Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa.

Eugênio Bucci

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Os brasileiros elegeram um presidente que desde o começo da campanha usou muito as redes sociais a seu favor e, depois do atentado, da facada que tomou, não conseguiu fazer campanha, participar de debates e ficou mais restrito ao ambiente virtual. Tanto que o primeiro pronunciamento logo depois de eleito, antes do discurso da televisão, foi pelo Facebook. Nessas primeiras semanas de transição, anúncios são feitos pelo Facebook, nomes de ministros confirmados pelo Twitter. A gente está inaugurando um modo Trump de Comunicação? O que nos espera nos próximos quatro anos?

Eugênio Bucci – Bom, isso nós temos que perguntar para o presidente eleito e para a turma dele, mas eles tem dito que vão usar essa comunicação direta. A expressão, aliás, poderia ser tema de uma longa conversa. O que é comunicação direta? Mas isso em si não é um problema, o problema é a tentativa de desqualificar a imprensa. Isso mostra uma tendência autoritária em muitos governantes de muitos países e isso desconstrói a democracia.  E eu não estou dizendo isso por uma defesa corporativista dos jornalistas ou da imprensa ou dos jornais, eu estou dizendo isso simplesmente porque a presença da imprensa, do repórter, do jornalista, do articulista, sempre joga na arena pública uma voz discordante. E isso ajuda, é essencial para o esclarecimento da opinião pública. Sem falar da reportagem, que faz perguntas incômodas. O repórter sempre é uma figura incômoda para o poder e os governantes. O repórter trabalha com determinado método que apura os fatos, esclarece os acontecimentos e promove um nível de informação que é indispensável para o seguimento da democracia. Se a imprensa é descartada e ofendida e desqualificada, o que se estabelece é uma linha direta, sem mediação e sem crítica, sem discordância, entre o poder que tem, sem trocadilho, um poder de fogo imenso e a sociedade. Então, aquele que governa, que pratica o ato de governar, é também aquele que pratica o ato de informar, e isso desequilibra a democracia. Numa linha simplificada, isso cria um vínculo direto entre o governante e o público e atropela as mediações e, na sequencia, as instituições, a observância das garantias e direitos fundamentais, e isso pode sim distorcer a democracia

Trump vive ofendendo NYT, CNN e os jornalistas e imprensa. É um paradoxo, mas ele acusa a imprensa de produzir fake news. Nós tivemos no Brasil, infelizmente, algumas manifestações do presidente eleito Jair Bolsonaro de ofender veículos. A Folha foi o mais recente, que ele chegou a dizer que não vai passar verbas públicas para compra de espaço publicitário na Folha. Isso mostra, de um lado, um descompromisso com relação ao principio da impessoalidade, ou seja, quando o governo faz compras públicas, como compra de espaço para veiculação de mensagens oficiais, ele não pode adotar critérios pessoais, ele precisa adotar criterioso impessoais, e por isso públicos, e por isso republicanos. E por outro lado, mostra uma disposição do presidente eleito de perseguir um determinado veículo jornalístico. Isso é muito ruim pra democracia. É, de fato, o que corrompe a ordem pública. Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa. Levando a população a desacreditar no trabalho da imprensa, e isso é muito ruim e nos deve deixar atentos.

Foto: Aberje

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #9 O jornalismo é livre?

Geórgia Santos
16 de novembro de 2018

Nesta semana, o Bendita Sois Vós discute a liberdade de imprensa e a função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia. Além da jornalista Geórgia Santos, participam o jornalista e professor Tércio Saccol e os jornalistas Igor Natusch e Marcelo Nepomuceno.

Evelin Argenta entrevista e professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da USP, sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

No Sobre Nós, dirigido por Raquel Grabauska, trazemos o mito da imparcialidade para o centro do debate nas palavras George Orwell, em Homenagem à Catalunha. 

O episódio também está disponível em Itunes e Spotify e Castbox.

Geórgia Santos

Facebook entre censura e responsabilidade

Geórgia Santos
26 de julho de 2018

O Facebook removeu de sua plataforma 283 contas brasileiras que, segundo comunicado oficial, violaram as políticas da empresa. As 196 páginas e 87 perfis eram vinculados à direita e, na maioria dos casos, ao Movimento Brasil Livre (MBL). Não foi por esse motivo, no entanto, que foram desativadas. Em nota divulgada ontem, a rede social garante que, após rigorosa investigação, detectou o uso de contas falsas com o propósito de espalhar desinformação.

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Essas Páginas e Perfis faziam parte de uma rede coordenada que se ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia das pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão e espalhar desinformação.

(Garantindo um ambiente autêntico e seguro, por Nathaniel Gleicher, líder de Cibersegurança)

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No comunicado, o líder de Cibersergurança da empresa, Nathaniel Gleicher, afirma que o trabalho de retirar essas contas do ar faz parte de uma ação permanente de agir contra pessoas “mal intencionadas” que violam as Políticas de Autenticidade e Padrões da Comunidade do Facebook.

Algumas das páginas e perfis desativados são conhecidos do grande público pelo hábito de difundir informação falsa e/ou manipular essas informações. Em outras palavras, são contas conhecidas por divulgar fake news como Jornalivre, Diário Nacional e Movimento Brasil 200.

Não é segredo que há uma rede organizada com o propósito de difundir a desinformação, mas os números surpreenderam inclusive quem estuda o tema.  O Monitor do Debate Político no Meio Digital, criado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), acompanha páginas de direita e esquerda desde 2016 com o objetivo de identificar a difusão de fake news. Nesses dois anos, o grupo mapeou 20 páginas que produziam, em média, 126 postagens por dia e somavam 150 milhões de interações somente no ano passado.

Em comunicado no Facebook, o grupo explica que essa desproporção sugere que o Facebook identificou a criação de uma rede de páginas que, provavelmente, seria usada durante a eleição. 

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Das que já estavam em atividade e eram relevantes, caíram a página do Jornalivre e do Diário Nacional. Como o Facebook não retira páginas que divulgam notícias falsas, mas apenas páginas administradas por perfis falsos, é provável que todas as páginas tinham sido criadas com contas falsas. Um dos perfis que supostamente administrava a página do Jornalivre também caiu, o que sugere que era falsa.

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Ficou bastante claro que o Facebook está “se vacinando” para evitar que aconteça no Brasil o que houve nos Estados Unidos. Afinal, a criação de uma rede virtual – mas bem real – para espalhar notícias falsas foi uma das estratégias utilizadas pela Alt-Right durante a campanha de Donald Trump. No Brasil, a rede de fake news já está bem articulada e financiada. E o Facebook já se prepara para combater isso. Nesta semana, no texto “Protegendo as Eleições no Brasil”, a empresa afirma  estar comprometida “em conter a disseminação de conteúdo de baixa qualidade e garantir que as pessoas saibam identificar fontes de notícias confiáveis.”

Uma pena que tenha demorado tanto a agir, já que há muito anos o Facebook se manteve omisso com relação a conteúdos falsos e, inclusive, ofensivos. Sempre  sob a justificativa de ser contrário à censura – o que é algo bastante diferente apesar do que o MBL diz.

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A resposta do MBL . mais informações falsas

O empresário Flávio Rocha, que financiava o Movimento Brasil 200 e, até poucos dias atrás era candidato à presidência da República pelo PRB, afirmou no Twitter que a ação do Facebook era “uma violência” e que  “nem no tempo da ditadura se verificava tamanho absurdo.” Já o MBL divulgou comunicado reconhecendo que várias das contas desativadas eram ligadas ao movimento e prometeu “tomar providências.” O texto diz ainda que o MBL e outras páginas vinculadas a direita estão sofrendo “censura” e “perseguição ideológica”.

O mais interessante da história é que o MBL reage com mais desinformação e distorção. Em um post no Facebook, por exemplo, o grupo diz o seguinte: “Facebook admite que exclusão de perfis não tem nada a ver com “fake news” E agora imprensa? Vão pedir desculpas pelo “erro”?” Isso é de uma desonestidade intelectual sem fim. O motivo de a rede social ter desativado as páginas diz respeito à violação das políticas da empresa, mas isso não exclui o fato de essas mesmas páginas divulgarem informações falsas. Tanto que a justificativa da empresa, por escrito, é o “propósito de espalhar desinformação.” Até porque, se o critério fosse a veracidade das informações, a página do MBL não resistiria à devassa.

A situação é tão absurda que, logo após o Facebook remover as páginas e perfis de sua plataforma, o MBL postou o seguinte:

O valor das ações da empresa realmente teve queda na Bolsa de Nova York, mas em função do balanço da empresa divulgado também na quarta-feira, que mostra que o Facebook não atingiu as projeções dos analistas e frustrou investidores. 

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Entre censura e responsabilidade

Após tantas reclamações de censura por parte do Facebook, recorri a um livro que considero fundamental no debate sobre liberdade de expressão: Free Speech – Ten Principles for a Connected World, de Timothy Garton Ash (Liberdade de Expressão – Dez princípios para um mundo conectado, em tradução livre). A obra de quase 400 páginas é um tratado sobre a liberdade de se expressar em um mundo conectado.

Primeiro, o que aconteceu com essas 283 páginas e perfis não é censura. Não que a censura seja exclusividade de governos, ela pode acontecer em instituições privadas. Mas neste caso, há um contrato em jogo. Quando se cria um conta no Facebook, “assinamos” um contrato em que concordamos com as políticas da empresa. Assinalar aquele quadradinho que quase sempre passa batido é dar poder a empresa para tomar esse tipo de decisão. Da mesma forma que não podemos publicar a gravura de uma mulher nua, ou fotos em que os mamilos apareçam.

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Ou seja, essas páginas violaram o contrato e, por isso, foram desativadas

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Mas não significa que o debate sobre censura e responsabilidade não seja importante. Eu, particularmente, acredito que as “grandes potências privadas”, como diz Garton Ash, devem, sim, assumir responsabilidades públicas e com o público. Não podem ser omissas diante da desinformação. E na lista incluo Google, Twitter, Amazon, Apple e, é claro, o Facebook. Essas empresas são, de certa forma, donas de espaços públicos. E fazem mais do que simplesmente oferecer a plataforma para debate. Elas determinam como se debate, com quem e sobre o que. 

Mas qual o limite entre a responsabilidade e a censura? Como se assume essa responsabilidade sem  impor, a exemplo de regimes totalitários, o que é ou não verdade? Como fazer isso? Se o Facebook desativar páginas com base no critério das fakes news, é uma boa notícia? Não sei. Não tenho respostas pra isso, apenas mais perguntas.

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“So the good sword of truth will only be kept sharp if it is constantly tried against the axes and bludgeons of falsehood.” 

“Assim a boa espada da verdade só será mantida afiada se for constantemente testada contra os machados e golpes da falsidade.”

(Garton Ash, 2016, p.75)

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Fiquei satisfeita com a retirada de páginas e perfis que tenham o propósito de desinformar. Espero que seja uma política perene, e não apenas preventiva, já que a eleição está virando a esquina. E também espero que renda um debate frutífero sobre como equilibrar liberdade e responsabilidade neste mundo conectado. Afinal, a liberdade de expressão é um teste constante sobre como viver em uma sociedade que é, por essência, diversa e conflituosa.