OUÇA Bendita Sois Vós #27 A normalização do absurdo
Geórgia Santos
2 de agosto de 2019
No episódio cinco da segunda temporada do Bendita Sois Vós, os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch discutem a normalização do absurdo. O debate acontece a partir das declarações mentirosas e preconceituosas do presidente Jair Bolsonaro que, entre outras coisas, mentiu que a jornalista Miriam Leitão era guerrilheira; disse que a Ancine precisa de filtro; chamou os governadores nordestinos de “paraíbas”, de forma pejorativa; afirmou que ninguém passa fome no Brasil; e ainda relativizou o trabalho infantil.
No Sobre Nós, com direção de Raquel Grabauska, as palavras da escritora Carolina de Jesus sobre a fome em reprodução de um episódio da temporada passada.
Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”
Bolsonaro, Jair – julho de 2019
No imaginário brasileiro, políticos mentem durante as campanhas eleitorais. Ao chegarem ao poder, precisariam respeitar o cargo que ocupam e ter um pouco mais de cuidado em suas declarações. Não é o que acontece desde janeiro de 2019 no Brasil. As reiteradas falas públicas do presidente da República são descuidadas e parecem ainda partir do deputado do baixo clero que era “polêmico”, para se dizer o mínimo.
A última declaração para jornalistas sobre a fome foi remendada no mesmo dia, com a alegação de que “uma pequena parte (dos brasileiros) passa fome”. Sabemos que Bolsonaro não gosta de dados estatísticos, mas em momentos com esse, facilitaria muito se os assessores do presidente o orientassem sobre a importância de citar pesquisas idôneas ou ao menos se inteirar sobre o assunto para saber que pessoas com sobrepeso podem estar desnutridas, por exemplo.
Uma revista de circulação nacional da grande mídia chegou a fazer uma matéria com os dados estatísticos que contradizem a afirmação falsa do presidente. Para quem se interessar, é só acessar aqui.
Para além da declaração desastrosa do presidente da República, o problema da fome, no Brasil e no mundo, precisa ser compreendido por quem tem acesso a todas as refeições do dia sem precisar ter preocupação alguma. Por isso, selecionei dois livros sobre o assunto.
O primeiro é bastante didático, e poderia ser uma leitura importante para Bolsonaro e seus seguidores. O que é fome, Ricardo Abramovay, de 1985, ainda segue bastante atual e é fundamental para entender o assunto (e não sair disparando desinformação por aí.):
A angústia que a refeição de amanhã representa hoje para centenas de milhões de seres humanos é sem dúvida o maior escândalo já conhecido no planeta, desde a fatal mordida da maçã. Por que motivo tanta gente passa fome? Por falta de comida diria o conselheiro Acácio. Por incrível que pareça, sua resposta está longe da realidade: nos dias de hoje não se pode mais identificar a fome e escassez. Ao contrário, os subalimentados que nos cercam (e que constituem quase a metade da nossa espécie) vivem num mundo de fartura e sobretudo desperdício.
Já em Agonia da Fome, Maria do Carmo Soares de Freitas faz, a partir de um estudo de caso em uma comunidade periférica e faminta no estado da Bahia, um alerta para as autoridades:
A condição de fome, como uma das mais terríveis experiências da vida, vem confirmar a necessidade de ações políticas mais amplas do que a doação de alimentos pelos serviços de saúde para uma população concebida como “vulnerável” aos efeitos da fome crônica. Uma complementação estaria em ações que manifestem a importância da reversão dos sentidos de fome a partir da valorização social do sujeito, associado a mudanças estruturais na sociedade que produz fome. Com esse caminho, a conquista da cidadania estaria mais próxima de cada pessoa, e certamente poderia libertar-se da fome, esse espectro que ameaça a vida e interrompe qualquer sonho humano.”
A declaração de Bolsonaro sobre a fome gerou indignação principalmente entre os integrantes da sociedade civil que se mobilizam sem apoio do poder público para tentar reduzir esse problema no país. Uma das entidades que lançou uma nota de repúdio nas redes sociais são os Cozinheiros do Bem, uma ONG que serve refeições para pessoas em situação de rua embaixo de viadutos em Porto Alegre (RS). Abaixo, um trecho do texto:
“Lutamos contra a fome 365 dias por ano. É inevitável não externarmos nossa opinião. Repudiamos a mentira vomitada pelo homem que lidera nosso país e por isso aqui vão alguns números. 9 milhões de brasileiros entre 0 e 14 anos vivem em situação de extrema probreza (fundação Abrinq). Há no Brasil 207 mil crianças menores de 5 anos com desnutrição grave ( Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional do Ministério da Saúde – Sisvan). 6 em cada 10 crianças no Brasil vivem na pobreza ( Unicef). Com 1/4 da comida que vai para o lixo acabaríamos com a fome no planeta (ONU).
Não importa se você é direita ou esquerda. Tá na hora de entender que essa classe política alienada e fascista NÃO GOSTA DE POBRE!”
Na íntegra desse manifesto também tem a forma de ajudar os Cozinheiros do Bem a seguirem fazendo um trabalho que entra em uma lacuna do poder público.
Eu sempre tentei ser uma pessoa legal. Claro, tem vezes que a gente não consegue. Daí é a hora de ser legal com a gente, se perdoar, seguir em frente e tentar não cair no mesmo buraco outra vez. Quando temos filho, acerto e erro são, por vezes, desesperadores. A pressão que se cria é algo quase possível de entender ou sentir.
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Ver os filhos cometendo os teus mesmos erros, explicitando os teus próprios defeitos é um exercício difícil de amadurecimento, para todos
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Meu filho mais velho fica mega furioso quando está com fome. Normalmente ele é bastante calmo, mas vira uma fera, respondão, intratável, irracional. Igual a mim antes de ter ele. I-G-U-A-L! Hoje ele teve um mega ataque de fome: “vocês vão me matar de foooomeee!” E dizendo isso de verdade, sentindo de verdade. Eu sei. Eu era igual, igual, igual. Quando deu a primeira garfada, o monstro desapareceu e ele voltou a sorrir e conversar normalmente.
Expliquei pra ele que era assim comigo também antes dele. Ele ficou surpreso: “como tu fez pra melhorar”. Eu ri e expliquei que quando nasce um filho, a gente esquece, muitas vezes, da gente, porque nosso instinto se volta todo para a cria. Expliquei que não entendia muito como, mas que tinha mudado. E ele: então sou teu milagre!
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Sim, meu milagre. Indescritível enxergar o meu humor nele. O sorriso. As caretas. Indescritível me enxergar nele. Isso sim é o verdadeiro milagre
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E depois de escrever, fui fazê-lo dormir. Do nada: mamãe, sabia que eu tenho uma marca de nascença que tu me deu? Eu já tava emocionada e perguntei: qual? Ele: a imaginação. A criatividade. Meu milagre. Meu milagre.
É quase frustrante pensar na quantidade de temas urgentes na vida dos brasileiros. E todos frutos da desigualdade. Essa desigualdade que é cruel, que mata. É difícil escolher, é difícil determinar o que é mais importante, o que é mais urgente. Há pessoas passando FOME, gente. Fome. E é justamente dessa fome que trata o Sobre Nós desta semana. O quadro produzido por Geórgia Santos e Raquel Grabauska é uma mescla de jornalismo e arte. A partir de depoimentos reais, atores interpretam verdades cruéis da nossa realidade. Na semana passada, ouvimos relatos de quem foi torturado pela Ditadura Militar. Nesta edição, a fome.
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O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer. Essa frase foi dita pela escritora Carolina de Jesus. Mulher, pobre, negra. Publicou o livro Quarto do Despejo, diário de uma favelada, em 1960.