Voos Literários

CPI da Pandemia: o fim do mito?

Flávia Cunha
18 de abril de 2021

A CPI da Pandemia pode desgastar ainda mais a imagem do presidente Jair Bolsonaro ao longo dos próximos meses. A investigação sobre omissões e erros do governo federal no combate à disseminação do coronavírus parece ser um trabalho bastante fácil para os parlamentares. Pois apesar de irritado com a instalação da CPI, Bolsonaro segue querendo “mitar” nas redes sociais e em declarações públicas. Sua crença, ainda inabalável, é de que sairá impune e com popularidade da crise sanitária e econômica gerada pela pandemia.

Nem é preciso investigar

De cara, percebemos que as provas da má conduta do presidente e de seu governo são evidentes. Aposta reiterada no anticientífico tratamento preventivo da covid. Falta de planejamento compra de vacinas em 2020.  Testagem baixíssima da população brasileira. Além disso, Bolsonaro desdenhou das mortes. Minimizou os riscos da doença.  Promoveu constantes aglomerações e questiona o uso de máscaras.

Para seus seguidores, todos esses atos são justificáveis e o capitão Messias segue sendo o mito. Porém, até quando terá essa força política e apoio popular?

Mito?

A origem do apelido de Bolsonaro vem mais da Internet do que do sentido original do termo. Nas redes sociais, “mitar” significa fazer comentários polêmicos e que chamam a atenção. É o que constantemente o presidente faz com a imprensa, por exemplo. Afinal, o mito não gosta de perguntas que considera inconvenientes. Porque, obviamente, um mito quer ser apenas idolatrado.

E para muitos de seus apoiadores, Bolsonaro é uma espécie de herói antissistema. Ao colocar como inimigos o STF, a mídia, a esquerda, os artistas, os professores e o Congresso Nacional, se transforma em mártir. Ao mesmo tempo, se blinda das críticas desses setores, pois é um perseguido por não aceitar o jogo de seus opositores. Mas o que transforma alguém em um herói? 

Coragem e falta de rancor

Para Joseph Campbell, mitologista e escritor norte-americano, o herói é “aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.” Na obra  O Poder dos Mitos, o especialista descreve em diferentes trechos a figura heróica, presente nas mitologias e no dia a dia contemporâneo:

“Há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.”

Por mais boa vontade que eu pudesse tentar ter com um líder incompetente como Bolsonaro, não consigo enxergar em sua atuação nada que o faça um herói ou “mito”. Sendo assim, minha esperança é que a CPI da Pandemia se encarregue de expor seus erros de forma eficiente, ao ponto de fazê-lo perder sua base fiel de seguidores. Contudo, como acontece com ídolos de diferentes segmentos, a emoção vai além da razão. E, caso não seja punido devidamente, ainda corremos o risco de uma reeleição.

#forabolsonaro

Imagem: Isac Nóbrega / Site Fotos Públicas 

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BSV Especial Coronavírus #43 As autoridades também sofrem

Geórgia Santos
3 de fevereiro de 2021

No episódio desta semana, as repercussões da eleição que escolheu o deputado Arthur Lira como o novo presidente da Câmara dos Deputados. O saldo é um Rodrigo Maia derrotado, Jair Bolsonaro (talvez) renascido e Lira abusando do poder – e depois voltando atrás – no primeiro momento em que teve a oportunidade. 

No filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, Cabo 70 fala para um João Grilo falsamente surpreso que as autoridades também sofrem. Pois é verdade na ficção e é verdade na realidade. E quem prova é o emotivo Rodrigo Maia, que se despediu da presidência da Câmara dos Deputados com lágrimas nos olhos e a certeza de que falhou.

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No embate entre Maia e Bolsonaro, o presidente que adora leite condensado venceu
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Mas não nos enganemos. Bolsonaro se fortaleceu, sim, com a vitória de Arthur Lira (PP-AL). Mas foi uma vitória cara. Ele está nas mãos do novo presidente da Câmara, que assumiu tirando os opositores da mesa diretora, mas voltou atrás e fez acordo. E o deputado do Progressistas do Alagoas fez festinha, com aglomeração, filha de Roberto Jeferson e Joyce Hasselman.

Na peça – ou livro – do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, o autor diz que se trata de uma história altamente moral, um apelo a misericórdia. Ao que João Grilo responde: ele diz à misericórdia porque sabe que, se fossemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada. Estamos presos em uma peça de literatura. Em uma novela que parece não ter fim.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

 

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #43 As autoridades também sofrem
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BSV Especial Coronavírus #40 “Nosso Capitólio” invadido em 2022?

Geórgia Santos
13 de janeiro de 2021
No episódio desta semana, como será o nosso capitólio invadido em 2022?

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No último dia seis, apoiadores de Donald Trump adentraram o Capitólio, a casa do legislativo dos Estados Unidos, para impedir que o Congresso aceitasse o resultado do pleito que elegeu o democrata Joe Biden como o novo presidente. Os manifestantes foram incitados pelo próprio Trump, que disse que foi roubado. Ou melhor, que MENTIU que houve fraude na eleição.

Mas não termina por aí, porque o episódio inédito na história da política dos Estados Unidos andou dando ideias a Jair Bolsonaro.

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O presidente do Brasil disse que se a eleição não for no papel em 2022, se ainda houver urna eletrônica, aqui “pode acontecer pior” que nos EUA
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O problema é que enquanto Bolsonaro se preocupa com 2022, o coronavírus avança no Brasil, deixando um rastro de mais de 200mil mortos e poucas perspectivas de vacina no curto prazo. O ministro da saúde, Eduardo Pazzuelo, é a cara da tragédia. Segundo ele, vamos nos vacinar “no dia D, na hora H”.

Para discutir esses e outros assuntos participam as jornalistas Geórgia Santos e Flávia Cunha e os jornalistas Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

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Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #40 “Nosso Capitólio” invadido em 2022?
Voos Literários

O cadete e o capitão, um livro necessário

Flávia Cunha
22 de maio de 2020

Estava lendo o livro O Cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel quando soube pelas redes sociais da morte do autor da obra. Luiz Maklouf Carvalho era jornalista e escritor, e trabalhava como repórter do jornal O Estado de São Paulo desde 2016. Morreu com 67 anos, depois de uma longa luta contra um câncer no pulmão. Mesmo antes de saber do ocorrido, eu pensava no trabalho exaustivo que o jornalista teve para chegar ao resultado de seu último livro, ao ter acesso à cópia do processo do julgamento de Bolsonaro no Superior Tribunal Militar, que resultou na ida para a reserva do então jovem capitão. 

O PROCESSO

Bolsonaro foi acusado de participação no planejamento de atentados a bomba, em 1987, como forma de pressionar por melhores salários para oficiais. Luiz Maklouf Carvalho ouviu diversas pessoas envolvidas de alguma forma com o caso antes de publicar a obra. Menos o protagonista da história, que sequer respondeu aos diversos pedidos de entrevista. Como o bom repórter que foi, o autor consegue contextualizar as circunstâncias do incidente que levou ao processo em âmbito militar, além de lembrar aos leitores mais jovens o contexto político da época. O presidente José Sarney governava um país recém-saído de longos anos de ditadura militar. O clima na caserna era de ressentimento não expresso em relação ao governo civil. 

E Bolsonaro aproveitou-se da situação para provocar tumulto. Um ano antes do vazamento do plano dos ataques com bombas, ele escreveu um artigo à revista Veja,  reclamando a respeito das condições salariais no Exército. Uma clara insubordinação à rígida hierarquia militar. Pouco tempo depois, é citado em uma reportagem sobre a ideia dos atentados e acaba processado. 

“SEM MÁGOAS, SEM MÁGOAS”

 A obra de Luiz Maklouf Carvalho vai e volta no tempo para nos mostrar como os incidentes da década de 1980 influenciam na política atual. O autor cita um relato de bastidores antes da entrevista dada pelo então candidato à presidência ao Jornal Nacional em agosto de 2018, aos jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos> 

“O diretor de jornalismo Ali Kamel o conduziu à bancada minutos antes de entrarem no ar, para  que sentisse o ambiente e conhecesse a posição das câmeras, robotizadas. ‘Parece uma mesa para metralhadora’, ele brincou, fazendo o gesto de atirar. ‘Fique certo de que não é’, retrucou Bonner, brincando também.
[…] De repente ele se virou para o diretor de jornalismo Ali Kamel. ‘Ali […], a gente já se cruzou por telefone ali pelos anos de 1988, não?’ Quem viu a cena, conta que Kamel hesitou uns segundos – não esperava a pergunta -, e disse: ‘Sim, sim, eu tinha 25 e era chefe de redação da Veja no Rio.’ Bolsonaro respondeu: ‘Sem mágoas, sem mágoas.’ 
Kamel replicou, na hora: ‘Mágoas? Mas como assim? Foi depois daquela reportagem que o senhor se lançou na vida política!’. Bolsonaro riu, a seu estilo, e emendou: ‘É isso mesmo. Sabe que há uns dez anos eu encontrei num aeroporto a Cassia Maria Rodrigues. Eu não a reconheci, tinha muitos anos que não a via. Mas ela disse: ‘Deputado, sou a Cassia, aquela repórter da Veja que denunciou o senhor’. Eu disse para ela: ‘Que denunciou que nada! Você me catapultou para a política!”
LEITURA NECESSÁRIA

No momento, prossigo a penosa leitura do livro O Cadete e o capitão. Não por ser mal escrito, pelo contrário. O texto é fluido e não é nada entediante. Porém, as imagens mentais que faço do sorriso de escárnio de Bolsonaro durante a pandemia que vivemos me impede de avançar com mais rapidez.

De qualquer forma, aconselho a leitura da obra, lembrando a famosa máxima de Sun Tzu, em A Arte da Guerra:

“Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas.”
TRAJETÓRIA DE LUIZ MAKLOUF CARVALHO

Em 16 de maio, a editora Todavia publicou em suas redes sociais essa nota de pesar:

“A Todavia lamenta profundamente a morte do grande jornalista e escritor Luiz Maklouf Carvalho. Um dos maiores repórteres do Brasil em atividade, Maklouf atuava no jornal Estado de S. Paulo desde janeiro de 2016. Passou pelas redações da Piauí, Veja, Jornal da Tarde, entre outros veículos. Apurador meticuloso e incansável, foi autor de livros e reportagens fundamentais.

Vencedor de dois prêmios Jabuti de livro-reportagem – “Mulheres que foram à luta armada” (Globo) e “Já vi esse filme: Reportagens (e polêmicas) sobre Lula e/ou o PT” (Geração Editorial) – , lançou pela Todavia, no ano passado, seu último livro: “O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel”, com uma apuração irretocável que revelou fatos controversos da biografia do atual presidente. 

Uma grande perda para o jornalismo e para a cultura brasileira.”

Imagens: Facebook Editora Todavia/Reprodução

 

 

Igor Natusch

Jair Bolsonaro perdeu o pulso das massas

Igor Natusch
18 de março de 2020
O presidente Jair Bolsonaro acompanhou, da área externa do Palácio do Planalto, em Brasília, a manifestação de apoiadores de seu governo, que está sendo realizada neste domingo (15) na capital federal e em outras cidades do país.

Ao que parece, a opinião pública se cansou de Jair Bolsonaro.

Embora seja um marco que entrará para a história, o gesto de cumprimentar lunáticos de verde e amarelo que pediam golpe em pleno temor do coronavírus não é exatamente um ponto de partida. Na verdade, a impressão é de que Bolsonaro, eleito pela capacidade de ser o avatar dos recalques e preconceitos de uma nação inteira, perdeu há algum tempo o pulso das massas. Lembremos da patética insinuação de fraude no primeiro turno das eleições de 2018 – cometida, segundo o presidente, para impedir que ele fosse eleito em primeiro turno. A maluquice, ao que parece, tinha o objetivo de energizar sua massa de fanáticos e pressionar a Justiça Eleitoral; fora algumas falas discretas de TSE e Congresso, não teve efeito algum. Passou em branco.

Estamos acostumados a pensar em quanto as barbaridades de Jair Bolsonaro passam em branco para prejuízo da nação. Talvez precisemos começar a pensar em quanto esse passar em branco é prejudicial para o próprio Bolsonaro.

No exercício vulgar da política que Bolsonaro faz, uma polêmica que não acontece é uma agenda perdida. E a percepção de que os protestos de 15 de março falhariam – os protestos tão acalentados, propagandeados com uso da máquina pública, capazes de dar fôlego ao sonho autocrático de quem sempre detestou a democracia – parece ter pesado sobre a mente do presidente. Até Luiz Henrique Mandetta, o até então discreto ministro da Saúde, recebia aplausos na imprensa, jogando o presidente (em sua visão, ao menos) para segundo plano.

Cego pelos piores sentimentos políticos, Bolsonaro não enxergou a sombra do coronavírus pairando sobre o país.

Diante de uma doença potencialmente trágica e que apavora todo o mundo, era hora de recuar. Mas Bolsonaro, animal político xucro que é, não recua jamais. Avançou aos pinotes, sonhando com os aplausos da claque, com multidões reacionárias enfrentando o medo do Covid-19 em nome de um Brasil livre dos comunistas. Decidiu ignorar os médicos e a decência, rompendo o próprio isolamento para apertar mãos e tirar selfies junto à turba demente que gritava seu nome.

Apostou errado, em mais de um sentido. Para praticamente todo o mundo que assistiu do lado de fora, os atos ficaram marcados como o que de fato são: um desfile de gente louca e inconsequente. Bolsonaro, por sua vez, surge coma figura vil que quer virar ditador e não tem vergonha de fazer política rasteira em meio à promessa de cadáveres – algo que, sejamos justos, descreve de modo exato o que ele efetivamente é. Longe de ficarem emparedados pelos protestos, Congresso e STF saíram com uma disposição renovada para anulá-lo de vez – com direito a humilhação pública, na figura de um gabinete de crise no qual o Presidente da República sequer foi convidado a tomar assento.

Com protestos de adesão modestíssima, analistas internacionais enojados e uma economia em queda livre, o que os nobres deputados e magistrados têm a temer de Bolsonaro?

Atacou fraco. Abriu o flanco. E agora está sofrendo – e sentindo – o contra-ataque.

Desde ontem, panelas e gritos de Fora Bolsonaro se fazem ouvir das janelas em quarentena do Brasil. Janaína Paschoal, que esteve perto de ser vice na chapa que o elegeu, desancou Bolsonaro com fúria quase inédita; Reale Jr., por sua vez, pediu uma junta médica para avaliar a sanidade mental do presidente. Ninguém, absolutamente ninguém ergueu-se em seu auxílio. Mesmo os militares, sempre evocados como força capaz de impor a ordem a um país de devassidão e petismo, seguem guardando um significativo silêncio. E as ruas, que sempre acreditou serem suas (o que era verdade até a facada, e nunca mais voltou a ser depois disso), agora cospem em seu rosto.

A irresponsabilidade de Bolsonaro não despertou apoio, mas fúria. Deu aos que se opõem a ele uma oportunidade e um sentimento coletivo.

O que todos sabiam, mas nem todos expressavam, agora ganhou voz e significado: o presidente é um imbecil. Uma figura asquerosa e vulgar, que não se importa com nada que não nutra relação direta e imediata com seus delírios de autocrata. Um fraco. Alguém que ri e tira selfies enquanto o povo sofre e tem medo. O pretenso homem do povo é uma caricatura tosca do flautista do conto de fábulas, conduzindo ratos golpistas cheios de doença em uma melodia de talkeis.

Que golpe poderá Bolsonaro dar, em semelhante cenário? Aí está: nenhum. E o que poderá fazer Bolsonaro para recuperar o pulso perdido das massas, em um horizonte que pode trazer longos meses consecutivos de quarentena coletiva? Isso mesmo: nada.

Na política, nada é irreversível. Talvez as coisas mudem rapidamente, e nas próximas semanas já tenhamos de novo um Jair Bolsonaro confiante e dono da situação. Hoje, contudo, parece claro que Bolsonaro não tem mais as rédeas em mãos. As decisões que importam sobre o coronavírus estão sendo tomadas à revelia, enquanto o suposto líder fica murmurando ameaças frouxas via imprensa. Um pedido de impeachment, bem ou mal elaborado que seja, já está na mesa de Rodrigo Maia. E os edifícios do país começam a bater panela, exigindo que o presidente pegue o boné e vá embora de uma vez. Se gritarem bem alto, não duvido que consigam, mais cedo ou mais tarde.

A verdade é que os ventos da política brasileira viraram. Desde domingo, o afastamento de Bolsonaro tornou-se uma possibilidade real, ainda que não imediata. O sonho de golpe virou um bumerangue, que tem tudo para acertá-lo na cara.

Foto:  José Cruz / Agência Brasil
Igor Natusch

Ou a gente enfrenta o golpe, ou o golpe já venceu

Igor Natusch
26 de fevereiro de 2020
O presidente Jair Bolsonaro conversa com turistas no Palácio da Alvorada.

Vamos começar com um exercício simples.

Projete sua mente para o início de 2023. A posse presidencial, toda aquela festa da democracia em Brasília, bandeiras verde-amarelas tremulando em todo o entorno do Planalto. Ao fim da rampa, Jair Bolsonaro – talvez sorridente, talvez ressabiado – segura a faixa presidencial, que ostentou sem necessidade inúmeras vezes durante os quatro anos anteriores, pela última vez. A seu lado, o homem ou mulher que assumirá a República em seu lugar. E Bolsonaro, de forma republicana, colocando a faixa no peito de seu sucessor ou sucessora, completando um ciclo de governo e dando início ao outro – tudo dentro da mais absoluta ordem democrática, com as instituições funcionando normalmente.

Agora, abra os olhos e responda, com sinceridade. Você realmente consegue visualizar isso acontecendo?

Nem eu.

E não estamos malucos, de forma alguma. O fato é que as eleições de 2022 não estão nem um pouco garantidas, e não existe nada suficientemente sólido para nos garantir que elas irão ocorrer. Nada. Nadica de coisa nenhuma.

A gente sabe, mesmo não querendo admitir. E a gente também sabe qual o motivo de tanta incerteza: o próprio Jair Bolsonaro e seu governo. Para essa aliança sombria, a democracia é um inimigo ou, na melhor das hipóteses, um incômodo a ser retirado do caminho. E estão agindo para destruir todos os alicerces democráticos, sem nenhum disfarce, diante dos nossos olhos.

Tem gente que escolhe a cegueira, mas mesmo esses enxergam muito bem o que está acontecendo.

O compartilhamento de mensagens convocando para protestos que pedem o fechamento do Congresso Nacional é apenas mais um dos muitos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro desde que tomou posse. É uma corda, que vem sendo esticada todos os dias e, por vezes, é submetida a violentos puxões. Não resta dúvida de qual seja a linha de chegada dessa corrida mórbida: o fechamento do Congresso e do STF, a criminalização do dissenso, a instauração de um regime de exceção com alicerces criminosos.

Pode levar vários meses, talvez um ano, talvez mais. Mas é essa a meta. E nenhuma ponderação, nenhum esforço racional ou freio democrático tem feito com que esse impulso sombrio seja contido. Há recuos, mas nenhum sinal de trégua, nada que sequer se aproxime de uma domesticação.

O cenário pode não ser dos mais agradáveis, mas seu enunciado é, na verdade, bastante simples. Ou as ditas instituições reagem, ou serão fechadas.

No momento, eu não apostaria nessa reação, infelizmente. Não sem um sacolejão violento por parte da sociedade.

Por agora, o governo Bolsonaro não tem força (política e bruta) para instaurar uma ditadura. E é meio por isso que ainda não estamos em uma. Pouco coeso, cravejado por disputas internas, em um clima de deslealdade aberta entre seus integrantes, o regime ainda tem o problema extra de ter um presidente que não consegue ser um líder – e tudo isso impede (talvez felizmente) ações sistemáticas de vulto. Tudo isso é verdade, e precisa ser levado em conta nesta complicada e tensa equação.

Não se pense, porém, que esse pessoal não vai buscar concretizar suas taras autoritárias. Está buscando, sim – e será cada vez mais vulgar e agressivo nessas tentativas, porque esta é a sua natureza, este é o cenário em que se sente mais confortável para atuar.

Apostar que a eleição de 2022 é um horizonte consolidado é pouco mais que um delírio desejoso, um alegre devaneio de verão. A única chance de existir um 2022 é forçando que ele exista.

A luta – desde já, e com urgência cada vez maior – é para interromper ou, pelo menos, enfraquecer essa enxurrada das trevas. É punir quem comete crimes contra a democracia. É fazer com que os delírios autocratas voltem a oferecer riscos àqueles que os acalentam, é garantir que o ataque à Constituição volte a ter consequências. Mesmo que isso signifique expulsar da cadeira presidencial aquele que a vê como um trono, como uma propriedade da qual não pretende abrir mão jamais. E apenas o sucesso nesse enfrentamento pode garantir a sobrevivência de um edifício democrático com alicerces fragilizados, que se esfarela a cada ataque e balança cada vez mais.

É preciso impor 2022 aos que anseiam por cancelá-lo. Desde agora. Ou talvez a profecia sinistra se confirme, e não seja mesmo necessário mais do que um cabo e um soldado para apagar a luz.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Igor Natusch

Deixem a família Bolsonaro em paz!

Igor Natusch
19 de fevereiro de 2020

A família Bolsonaro não tem nada, absolutamente nada a ver com a morte de Adriano da Nóbrega, miliciano, assassino de aluguel e chefe do Escritório do Crime. Nadinha de nada, coisíssima nenhuma. Estão completamente inocentes, sem culpa nenhuma no cartório. Qualquer um consegue ver: é só querer enxergar.

Por exemplo: vocês não viram o presidente Jair Bolsonaro no Twitter, deixando clara sua preocupação com a aparente execução do ex-PM? Ninguém perguntou nada, ninguém disse um ai, e lá estava ele, cedo de manhã em plena terça-feira, desviando de seus muitos compromissos para deixar claro que estava muito, muito preocupado com a morte de Adriano da Nóbrega. Exigindo uma perícia independente, temendo que inocentes sejam acusados no caso Marielle, que sejam forjadas mensagens e áudios nos celulares apreendidos junto ao morto. Um homem preocupado com a verdade!

Vocês acham que Jair Bolsonaro agiria assim, de forma tão desprendida, pedindo justiça para a morte de uma pessoa como Adriano da Nóbrega, se tivesse algo a ver com a história?

Ora, é claro que não!

Quanta tolice, quantas insinuações cruéis desse bando de malvados esquerdopatas!

E o advogado dos Bolsonaro, Frederick Wassef, dando entrevista para dizer que a morte do miliciano é uma farsa e que querem incriminar a família presidencial no crime? A maldade chegou a tal ponto que ele precisou vir a público defender os pobres Jair e Flávio das cretinas e cruéis insinuações! Teve até que defender o morto, denunciar as horríveis torturas que a perícia com certeza vai revelar, dizer que o miliciano não era miliciano! Pede para federalizar o caso, e é claro que isso é com a melhor das intenções, com o objetivo exclusivo de esclarecer essa situação toda!

Longe de tentar desviar a atenção para longe de seu cliente, Wassef quer apenas nos chamar à razão. O que Marielle tinha que Adriano não tem?

Respondam, bando de hipócritas, corações de pedra, malvados!

É bonito ver que mesmo Flávio Bolsonaro, perseguido por acusações absurdas de rachadinha, desviou-se de seus inúmeros problemas para defender o santo homem que morreu sozinho em solo baiano. Postou um vídeo da autópsia em seu perfil de Twitter, vejam só. Tudo para denunciar as torturas sofridas pelo corpo! Dirão que é excesso de preocupação, que está querendo esconder algo, mas é o contrário: um homem sério, desinteressado, que se importa com seu povo e quer revelar a verdade, doa a quem doer! Quanta dignidade, a de nosso querido Flávio!

E essa imprensa sem-vergonha, que inventa que Adriano foi morto na fazenda de um filiado ao PSL, que fica lembrando que parentes próximos de Adriano da Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro? Ora bolas, o que há de suspeito nisso? Claro está que é apenas uma coincidência. Terem homenageado Adriano em plenário, as muitas falas defendendo milicianos como gente “do bem”, o fato de alguns dos prováveis assassinos de Marielle Franco morarem no mesmo condomínio em que Jair Bolsonaro reside, talvez até tocando em seu interfone para pedir autorização para entrar – qual o sentido de supervalorizar todas essas coisas? É uma maquinação diabólica, coisa de gente que vende o corpo para ter matéria, pessoas que não têm um pingo da moral ostentada pelos sempre impolutos, sérios e respeitáveis membros do clã Bolsonaro!

Como se vê, não existe motivo algum para desconfianças e insinuações. Vocês estão entendendo? Ficou claro? Será que precisamos frisar mais duzentas, quinhentas, mil vezes que os Bolsonaros não têm nada a ver com nada disso daí?

Não existe nada acontecendo. Nada. Circulando. Deixem a família Bolsonaro em paz!

Não há nada a temer, de qualquer forma. Uma explicação surge no submundo das redes sociais: Adriano foi executado pela PM da Bahia, estado governado pelo PT, o que deixa evidente que a queima de arquivo foi para favorecer os malvados do PT! Vão forjar provas contra Bolsonaro, vocês não percebem? Ninguém nunca enxergou qualquer conexão entre Adriano e os petistas, e muita gente enxergou inúmeras conexões entre a família Bolsonaro e as mílicas, mas quem se importa? Problema é o Rui Costa, que é amigo de bandidos como Lula! E os mandantes da facada em Bolsonaro, onde estão? É tudo fraude, tudo fruto de fake news, a imprensa protege os petistas e persegue os que querem salvar o país!

Do Celso Daniel ninguém fala nada nunca nunca nunca, já perceberam?

Que coisa.

Foto: Polícia Federal / reprodução

Igor Natusch

Greta Thunberg: a pirralha que você respeita (ou deveria)

Igor Natusch
11 de dezembro de 2019

Está sendo uma ótima semana para a jovem ativista sueca Greta Thunberg. Afinal, ela acaba de ser confirmada como personalidade do ano pela revista Time, um dos maiores reconhecimentos que uma pessoa pública pode receber da mídia internacional. É um indicativo claro de que, nesse 2019 de céus carregados e promessas de tempestade, Greta foi capaz de nos apontar um horizonte além das nuvens. Reconhecimento merecido e, mais do que isso, importante para todos nós.

Além dessa honraria, ela recebeu outra deferência marcante – vindo, como era de se esperar, do caleidoscópio de demência em que se transformou o Brasil. Jair Bolsonaro, o Minúsculo, chamou Greta Thunberg de “pirralha”, ao responder sobre o inaceitável assassinato de dois indígenas da etnia Guajajara no último dia 7.

“A Greta já falou que os índios morreram porque estavam defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí. Pirralha!” – BOLSONARO, Jair

O porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, ainda tentou uma acrobática relativização, dizendo que a fala não foi “descortês”, já que chamar alguém de pirralha é apenas mencionar sua “pequena estatura”. Não precisava ter se submetido ao ridículo papel, convenhamos. Afinal, a própria Greta Thunberg ostentou, durante cerca de 24h, a palavra “Pirralha” como descrição no perfil oficial do Twitter – sinal de que sentiu-se honrada, e não insultada, pela fala tosca de nosso presidente. E eu concordo com ela: foi, de fato, um elogio daqueles. Quase uma medalha, daquelas que a gente ostenta com orgulho nas ocasiões especiais.

Afinal, quando somos governados pelos velhos escrotos e pelos adultos mau-caráter, ser um pirralho ou pirralha é um predicado fabuloso.

A reação raivosa que homens deploráveis como Jair Bolsonaro sentem diante de Greta Thunberg é um misto de antagonismo e admissão de irrelevância. A sueca tem 16 anos e, como é natural para todas as pessoas de sua idade, se permite sonhar com um mundo diferente – algo que provoca pavor em homens poderosos, enrugados e bolorentos que extraem da ausência coletiva de sonhos a sua força. A esperança e o otimismo são esmagados por esses senhores de terno desalinhado porque é desses sentimentos que podem surgir a indignação, a recusa e a vontade de algo diferente – e é tudo isso que Greta Thunberg simboliza, em uma potência mobilizadora que vai muito além das concordâncias ou discordâncias que se possa ter quanto a ela, seus métodos e posições.

É de pirralhas como Greta Thunberg que o mundo está carente. E que ela nos ajude a encontrar a pirralhice perdida dentro de nós, que nos faz resistir diante desse cinismo ponderado e adulto, que insiste em nos dizer que não existe alternativa ao abismo.

Existe, sim, desde que nos recusemos a aderir a esses senhores lamentáveis e suas sufocantes certezas. E que se incomodem bastante, porque o papel de pirralhos e pirralhas é mesmo irritar os mais velhos – e, se eles estão indignados e passando recibo, é sinal claro de que se está tocando no nervo certo.

Foto: Leonhard Lenz / WikiMedia Commons

Igor Natusch

Uma viagem no tempo em marcha a ré

Igor Natusch
20 de novembro de 2019

O governo brasileiro está determinado a descobrir a fórmula para a viagem no tempo. De acordo com algumas correntes da física, a viagem ao futuro é teoricamente possível – mas o governo Bolsonaro detesta a ciência com grande paixão, então a opção natural é seguir em sentido oposto. Aos invés de descobrir as maravilhas do futuro, o esforço é para reviver o  passado – fazendo uso de métodos arcaicos e grosseiros, mas que até aqui se mostram bastante funcionais.

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É a viagem no tempo em marcha a ré
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A paixão pelo passado, como a gente sabe, é uma característica fundamental dos movimentos reacionários. Mas não é um passado qualquer, é claro: tem que ser um passado idealizado, onde só aconteceram as coisas que sejam do agrado, com o mínimo de nuances possível. Se for o caso, dá até para editar o passado, ou fazer uma espécie de peça teatral dele, mesmo que fique bem pouco parecido com o passado que de fato existiu. Antigamente é que era bom, dirão os viajantes do tempo em marcha ré – e, como nos filmes e livros de ficção científica, vão alterando o mundo do passado sem pensar nas consequências.

Para ser um bom viajante do tempo em marcha a ré, é fundamental ser uma figura lamentável no presente. Ajuda muito se você mentir qualificações acadêmicas que não tem, combater ameaças conspiratórias que não existem ou sentir um recalque imenso pela diversão que os outros talvez nem tenham de verdade, mas que você não consegue suportar nem imaginar que tenham. Do mesmo modo que o bom soldado de guerra é o que odeia o inimigo sem fazer a menor ideia do porquê, o bom viajante ao passado precisa ter raiva do presente – e, é claro, precisa morrer de medo de qualquer coisa que está por vir.

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Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil

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A viagem no tempo em marcha a ré é uma tarefa que se cumpre em duas esferas. Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil. A partir daí, é o esforço para vender o pacote ideológico básico: que o presente é nojento, podre e corrompido, e que o futuro ideal não é uma caminhada para frente, mas o resgate do passado tão lindo que os malvados destruíram com suas conspirações e libertinagens.

Parece absurdo, mas convence muita gente. Porque a angústia une as pessoas: todo mundo tem seus medos, suas incertezas, suas próprias carências e recalques. Quando se consegue direcionar toda essa frustração em um único feixe de energia, abre-se enfim o túnel para o passado: a vontade coletiva vira combustível, e o surto reacionário direciona nossa máquina do tempo rumo ao que está lá longe e, ao mesmo tempo, nunca existiu.

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O lado mais funcional desse método é que não há surpresas: a gente encontra lá atrás, no fim do túnel, exatamente o mundo que nossa imaginação inventou antes de partir
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No Brasil que os viajantes de marcha a ré querem a todo custo resgatar, o Império foi uma maravilha, a família imperial guiava a nação mais progressista do mundo, sorriam todos em um Brasil cosmopolita e pulsante de prosperidade. A Proclamação da República foi, nessa curiosa fibra do tempo, um erro que, quem sabe, ainda dá tempo de corrigir. Um Brasil onde racismo não existia – afinal de conta, ninguém falava em racismo, e o racismo só existe porque insistimos em falar nele, não é? Onde as mulheres eram felizes servindo aos maridos como donas do lar, onde a arte não falava de bandalheiras, onde os índios morriam em silêncio sem encher o saco. Onde a Terra inteira flutuava no espaço, perfeita em sua planitude sem curvas, com os astros celestes flutuando sobre o berço esplêndido tal móbiles em um quarto de bebê.

Se você olhar com cuidado, vai perceber que se trata de um passado horroroso: nele, a grande maioria das pessoas só existe para sofrer, ou nem isso. Mas não tem problema. Na revolucionária anti-ciência da viagem no tempo em marcha a ré, dá sempre para ir arrumando o passado pelo caminho, e qualquer coisa é só colocar a culpa nos malvados esquerdopatas de sempre.

Foto: Reprodução/YouTube

Igor Natusch

A política brasileira precisa sextar mais vezes

Igor Natusch
13 de novembro de 2019

Foi forte o sextou do último dia 8 de novembro. Dá para dizer, inclusive, que foi o mais longo sextou de 2019: começou ainda na quinta-feira, com a decisão sobre a prisão em segunda instância no STF, e estendeu-se pelo menos até o domingo, quando os informes do golpe na Bolívia surgiram para azedar novamente nosso noticiário. Um momento que, é claro, teve na concretização do Lula Livre seu momento de maior euforia.

A noite da sexta-feira passada foi, para boa parte desse povo que tentamos resumir com o termo “esquerda”, um gigantesco desafogo. Festiva, alcoólica, eufórica, transante. Esperançosa, acima de tudo. Diante de tantas tristezas e decepções com a política, a chance de um momento como esse foi a senha para a celebração – uma alegria represada que libertou-se, ao menos temporariamente, dos muros cada vez mais sólidos de uma amargura generalizada.

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Porque é isso, não é?

Está faltando alegria e sobrando amargura no Brasil

E isso está nos envenenando

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Corta para a morte estúpida e deprimente da engenheira agrônoma Júlia Barbosa de Souza, 28 anos, que levou um tiro na cabeça dentro do carro em Sorriso (MT) no último sábado. Seu assassino, Jackson Furlan, não estava cometendo um assalto ou algo assim: simplesmente se irritou porque achou que o carro onde Júlia estava com o namorado estava lento demais. Resolveu o problema iniciando uma perseguição e, finalmente, metendo bala em desconhecidos, que sequer moravam na cidade.

A caminhonete dirigida por Jackson trazia um adesivo a favor da reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Em suas redes sociais, postagens favoráveis ao agora presidente eram fáceis de encontrar. E isso é, sim, significativo.

Jair Bolsonaro não é, ao menos até onde se sabe, um assassino. Não foi ele quem apertou o gatilho que fulminou Júlia. Mas ele é um dos responsáveis por criar o cenário aterrador onde crimes horríveis e sem sentido como esse se tornam muito mais possíveis.

Estamos mergulhados em uma política do ressentimento. O ódio aos petistas/esquerdistas não é inédito, mas foi instrumentalizado de forma a tornar-se uma poderosa (e eficiente) arma política, capaz de eleger presidente uma figura abjeta como Bolsonaro. O problema é que esse sentimento ruim transbordou. Contaminou relações familiares, amizades, convivências do dia a dia. Transformou nossos dias em confronto. Deixou todo mundo infeliz.

O rancor gera votos, mas também multiplica a angústia. É uma batalha permanente contra o inimigo, gigantesco e ao mesmo tempo quase invisível, que se esconde em todos os cantos, em todas as pessoas. Nesse cenário de infelicidade coletiva, toda divergência é drástica, toda vitória é cruel, todo rompimento é brutal e definitivo. Qualquer frustração pode ser a gota d’água, e qualquer engarrafamento pode ser um motivo para matar.

Para os que odeiam Lula e tudo que ele representa, sua soltura foi a senha para uma noite de amargura. Para quem o apoia e sofreu com sua prisão, porém, foi a largada para um fim de semana de euforia. E me desculpem a franqueza, mas não é por acaso que Lula aparece em público abraçando os netos, beijando a namorada, citando longas listas de gratidão. Não é por ele ser um santo, um anjo que lança gotas de bondade sobre os meros mortais: é por entender, até de forma intuitiva, que era por isso que seu público ansiava. Que todos queriam, no fundo, um motivo para sorrir.

Muito se falou no discurso pesado de Lula contra os opositores, e ele de fato se fez presente. Mas acho mais importante pensar sobre a alegria intensa e genuína que sua soltura causou – uma alegria de grupo, dos seus para os seus. Se o ressentimento virou o fiador de um governo de trevas, talvez seja preciso alegrar-se mais, sextar mais, insistir no brilho no olho contra todas as desgraças que se empilham para apagá-lo. Não pelo bem do político da vez, mas pelo nosso próprio.

Foto: REUTERS/Nacho Doce