Voos Literários

Hidra de Lerna, esquemas de corrupção e a CPI da Pandemia

Flávia Cunha
19 de julho de 2021

 

O que a Hidra de Lerna tem a ver com a CPI da Pandemia? Muita coisa, de acordo com o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O senador comparou o monstro mitológico aos múltiplos esquemas de superfaturamento de vacinas investigados pela CPI. Recordando a lenda, Randolfe explicou que a Hidra tinha muitas cabeças que, ao serem cortadas, regeneravam-se. Ou seja, quanto mais a investigação avança, mais indícios de corrupção aparecem, em diferentes “tentáculos”.

A Lenda

Nos dias atuais, a Hidra é mais lembrada por fazer parte da lenda dos 12 Trabalhos de Hércules (ou Héracles, para os gregos). O herói mitológico teve como segundo desafio matar o monstro com corpo de dragão e múltiplas cabeças de serpente – uma delas imortal. Para alcançar esse objetivo, ele usou de astúcia. Depois de cortar cada cabeça, cauterizava o local da ferida, impedindo sua regeneração. Já a cabeça imortal foi cortada e enterrada. Em cima, Hércules colocou uma grande pedra. De acordo com análises psicanalíticas, a cabeça imortal da Hidra representa os vícios humanos. Estes, mesmo controlados, ainda estão vivos e precisam ser vigiados. Se pensarmos na comparação recente, nada mais é recorrente (e imortal) que a corrupção brasileira. Presente em solo brasileiro desde antes do Brasil República, é insistentemente combatida e ressurge, igual a uma Fênix, outro ser mitológico.

Mais comparações com o Brasil 2021

Mas me permitam prosseguir nas comparações mitológicas. De acordo com versões mais consagradas, a Hidra de Lerna tinha três irmãos. Um deles era o cão Cérbero, guardião do portal do Inferno. Sua função era impedir a saída de quem tentasse fugir daquele lugar de sofrimento. Tal qual Jair Bolsonaro e sua equipe, que fizeram de tudo para dificultar o início da vacinação contra Covid no Brasil, postergando um cenário com milhares de mortes diárias. 

Outro irmão da Hidra era o cão Ortro, que tinha como função vigiar o rebanho de gado do gigante Gerião. Pois coube novamente a Hércules a tarefa de libertar o gado. Hoje, é de todos nós a missão de tentar esclarecer o “gado” bolsonarista, ainda apegado a um governo incompetente e corrupto.

O monstro da incoerência

Para completar esta família mitológica, vamos falar da terceira irmã da Hidra: Quimera. Este monstro é muitas vezes representado com corpo de leão, cabeça de cabra e cauda de dragão. Sua estranha aparência leva a um de seus significados mais usuais, o da incoerência. E nada mais incoerente do que os argumentos do presidente da República para refutar as inúmeras denúncias de irregularidades envolvendo seu governo.

Sem heróis

Por fim, é imprescindível que deixemos os heróis para as lendas mitológicas. Ninguém no Brasil 2021 deve esperar um Hércules para matar a Hidra de Lerna metafórica e outros monstros da má política. Precisamos mesmo é de conscientização e luta  por mudanças estruturais na sociedade. Estas, só virão com muita pressão e consciência de classe. E sempre é bom lembrar que, certamente, Bolsonaro nada tem de mito, como já abordei nesse texto.

Para ir além

Aos interessados em aprofundar o conhecimento sobre mitologia, sugiro duas leituras: Mitologia grega, de Pierre Grimal, e A sabedoria dos mitos gregos, de Luc Ferry.

Imagem: Pinterest/Reprodução



   

 

 

Voos Literários

Quatro livros para refletir sobre o vexame de Juliana Paes

Flávia Cunha
6 de junho de 2021

Juliana Paes está entre os assuntos mais comentados dos últimos dias, ao postar um vídeo para rebater críticas por sua defesa à médica Nise Yamaguchi. Após a repercussão negativa da gravação, com muitas críticas e alguns famosos voltando atrás na defesa à atriz,  o tiro parece ter saído pela culatra. Mas o que podemos aprender com o vexame de Juliana Paes?   

Em uma gravação com pouco mais de cinco minutos de duração, a atriz destila um festival de falsas simetrias, ignorância política e argumentos vazios. A defesa falaciosa de não ter um posicionamento político é feita sob o argumento de não ser “bolsominion”. Em seguida, Juliana Paes garante não apoiar “os ideais arrogantes de extrema direita nem os delírios comunistas da extrema esquerda”. Também cita querer – sem dizer como – mais empatia entre as mulheres, uma máquina pública enxuta e Estado democrático. Além disso, faz uma estranha relação entre neutralidade e maturidade, sem justificativas que pudessem embasar o acerto da falta de posicionamento.

Empatia entre mulheres

Ao citar a sororidade entre seus ideais para um futuro melhor para o Brasil, a atriz parece ter dois alvos específicos. Primeiro, uma indireta à Samantha Schmütz, a colega de profissão a quem direciona o vídeo, sem citar o nome. Também poderia ser uma explicação por defender a médica Nise Yamaguchi, conhecida pelo apelido Doutora Cloroquina, de supostos ataques machistas durante a CPI da Pandemia. Porém, é sempre bom recordar que Juliana Paes não teve a mesma atitude solidária em relação a mulheres de esquerda que são agredidas com comentários misóginos, como a ex-presidente Dilma Rousseff. E mesmo dizendo-se isenta, a atriz compareceu abertamente a manifestações pró-impeachment de Dilma. Mesmo afirmando ser neutra, já deu entrevista dizendo ser contrária a excessos do feminismo. Sendo assim, a “empatia entre mulheres” desejada por Juliana parece mais um discurso sem embasamento do que algo realmente almejado. 

Para quem não quer cair nos mesmos erros da atriz, recomendo a leitura da obra Sororidade: quando a mulher ajuda outra mulher, escrito pela jornalista Paula Roschel. No livro, o conceito apresentado vai além da solidariedade e respeito entre mulheres. De acordo com a autora, a sororidade, ao ser posta em prática, resultaria na luta por equidade de direitos sociais, políticos e econômicos. Coisas que a atriz já declarou ser contrária: “Existe uma linha do feminismo com a qual eu não concordo muito. Acho errado esse desejo de igualdade com os homens a todo custo.”

Os delírios comunistas

Voltando ao vídeo polêmico, ao mencionar “os delírios comunistas da extrema esquerda”, a atriz propaga desinformação disfarçada de discurso isentão. Além da extrema esquerda não ter a força política apontada por ela, a ameaça comunista é um fantasma antigo. Juliana – e uma parcela de brasileiros que concorda com ela – precisa ir além das fake news. Para isso, é necessário conhecer fatos históricos, como o Plano Cohen. O documento, que continha um suposto plano para a tomada do poder por comunistas, foi forjado por Getúlio Vargas, em 1937. Como hoje se sabe, o objetivo de Vargas  com essa farsa era implementar um regime autoritário. Para saber mais detalhes sobre essa fraude, leiam a obra A ameaça vermelha: o Plano Cohen, de Hélio Silva. 

Porque repercutiu tanto

Além de irmos em busca de conhecimento sobre o passado brasileiro, precisamos estar conectados ao presente. E se você aí é do time que torce o nariz para influenciadores digitais e celebridades do meio artístico, saiba que é importante nos informarmos a respeito deste fenômeno de comunicação. Apesar de Juliana Paes não ser uma influencer surgida nas redes sociais, tem quase 30 milhões de seguidores apenas no Instagram, onde postou o vídeo que virou notícia. Justamente por seu poder de influência foi criticada por Samantha Schmütz, que tem procurado demonstrar como os famosos podem ajudar a pressionar por mais vacinas e também incentivar, quem puder, a ficar em casa.

Para entender melhor esse fenômeno, nada melhor do que uma fonte segura de informação. É o caso do livro De blogueira a influenciadora, de Issaaf Karhawi. Esta obra, resultado de uma pesquisa de quatro anos feita na Universidade de São Paulo, é a primeira no país sobre a profissão digital.

Efeitos da pós-modernidade?

Aos leitores que seguem avessos a redes sociais ou reviram os olhos para influencers, acreditando ser um efeito colateral do século 21, saibam que o culto aos famosos não é nada recente. É o que comprova o livro A invenção da celebridade (1750-1850). Na obra, o francês Antoine Lilti desvenda como era a fama vivida por personalidades históricas como Maria Antonieta, Napoleão Bonaparte, o filósofo Voltaire e o compositor Franz Liszt.

Sem neutralidade

Para além do caso específico da atriz Juliana Paes, o episódio demonstra o quanto a ignorância política é uma realidade assustadora no Brasil. Por isso, precisamos seguir batalhando para evitar a isenção dos abastados e a alienação dos mais pobres. 

“Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor.”

Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz de 1984 

Imagem: Instagram/Reprodução

Voos Literários

CPI da Pandemia: o fim do mito?

Flávia Cunha
18 de abril de 2021

A CPI da Pandemia pode desgastar ainda mais a imagem do presidente Jair Bolsonaro ao longo dos próximos meses. A investigação sobre omissões e erros do governo federal no combate à disseminação do coronavírus parece ser um trabalho bastante fácil para os parlamentares. Pois apesar de irritado com a instalação da CPI, Bolsonaro segue querendo “mitar” nas redes sociais e em declarações públicas. Sua crença, ainda inabalável, é de que sairá impune e com popularidade da crise sanitária e econômica gerada pela pandemia.

Nem é preciso investigar

De cara, percebemos que as provas da má conduta do presidente e de seu governo são evidentes. Aposta reiterada no anticientífico tratamento preventivo da covid. Falta de planejamento compra de vacinas em 2020.  Testagem baixíssima da população brasileira. Além disso, Bolsonaro desdenhou das mortes. Minimizou os riscos da doença.  Promoveu constantes aglomerações e questiona o uso de máscaras.

Para seus seguidores, todos esses atos são justificáveis e o capitão Messias segue sendo o mito. Porém, até quando terá essa força política e apoio popular?

Mito?

A origem do apelido de Bolsonaro vem mais da Internet do que do sentido original do termo. Nas redes sociais, “mitar” significa fazer comentários polêmicos e que chamam a atenção. É o que constantemente o presidente faz com a imprensa, por exemplo. Afinal, o mito não gosta de perguntas que considera inconvenientes. Porque, obviamente, um mito quer ser apenas idolatrado.

E para muitos de seus apoiadores, Bolsonaro é uma espécie de herói antissistema. Ao colocar como inimigos o STF, a mídia, a esquerda, os artistas, os professores e o Congresso Nacional, se transforma em mártir. Ao mesmo tempo, se blinda das críticas desses setores, pois é um perseguido por não aceitar o jogo de seus opositores. Mas o que transforma alguém em um herói? 

Coragem e falta de rancor

Para Joseph Campbell, mitologista e escritor norte-americano, o herói é “aquele que participa corajosa e decentemente da vida, no rumo da natureza e não em função do rancor, da frustração e da vingança pessoais.” Na obra  O Poder dos Mitos, o especialista descreve em diferentes trechos a figura heróica, presente nas mitologias e no dia a dia contemporâneo:

“Há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem.”

Por mais boa vontade que eu pudesse tentar ter com um líder incompetente como Bolsonaro, não consigo enxergar em sua atuação nada que o faça um herói ou “mito”. Sendo assim, minha esperança é que a CPI da Pandemia se encarregue de expor seus erros de forma eficiente, ao ponto de fazê-lo perder sua base fiel de seguidores. Contudo, como acontece com ídolos de diferentes segmentos, a emoção vai além da razão. E, caso não seja punido devidamente, ainda corremos o risco de uma reeleição.

#forabolsonaro

Imagem: Isac Nóbrega / Site Fotos Públicas