Igor Natusch

Uma viagem no tempo em marcha a ré

Igor Natusch
20 de novembro de 2019

O governo brasileiro está determinado a descobrir a fórmula para a viagem no tempo. De acordo com algumas correntes da física, a viagem ao futuro é teoricamente possível – mas o governo Bolsonaro detesta a ciência com grande paixão, então a opção natural é seguir em sentido oposto. Aos invés de descobrir as maravilhas do futuro, o esforço é para reviver o  passado – fazendo uso de métodos arcaicos e grosseiros, mas que até aqui se mostram bastante funcionais.

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É a viagem no tempo em marcha a ré
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A paixão pelo passado, como a gente sabe, é uma característica fundamental dos movimentos reacionários. Mas não é um passado qualquer, é claro: tem que ser um passado idealizado, onde só aconteceram as coisas que sejam do agrado, com o mínimo de nuances possível. Se for o caso, dá até para editar o passado, ou fazer uma espécie de peça teatral dele, mesmo que fique bem pouco parecido com o passado que de fato existiu. Antigamente é que era bom, dirão os viajantes do tempo em marcha ré – e, como nos filmes e livros de ficção científica, vão alterando o mundo do passado sem pensar nas consequências.

Para ser um bom viajante do tempo em marcha a ré, é fundamental ser uma figura lamentável no presente. Ajuda muito se você mentir qualificações acadêmicas que não tem, combater ameaças conspiratórias que não existem ou sentir um recalque imenso pela diversão que os outros talvez nem tenham de verdade, mas que você não consegue suportar nem imaginar que tenham. Do mesmo modo que o bom soldado de guerra é o que odeia o inimigo sem fazer a menor ideia do porquê, o bom viajante ao passado precisa ter raiva do presente – e, é claro, precisa morrer de medo de qualquer coisa que está por vir.

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Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil

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A viagem no tempo em marcha a ré é uma tarefa que se cumpre em duas esferas. Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil. A partir daí, é o esforço para vender o pacote ideológico básico: que o presente é nojento, podre e corrompido, e que o futuro ideal não é uma caminhada para frente, mas o resgate do passado tão lindo que os malvados destruíram com suas conspirações e libertinagens.

Parece absurdo, mas convence muita gente. Porque a angústia une as pessoas: todo mundo tem seus medos, suas incertezas, suas próprias carências e recalques. Quando se consegue direcionar toda essa frustração em um único feixe de energia, abre-se enfim o túnel para o passado: a vontade coletiva vira combustível, e o surto reacionário direciona nossa máquina do tempo rumo ao que está lá longe e, ao mesmo tempo, nunca existiu.

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O lado mais funcional desse método é que não há surpresas: a gente encontra lá atrás, no fim do túnel, exatamente o mundo que nossa imaginação inventou antes de partir
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No Brasil que os viajantes de marcha a ré querem a todo custo resgatar, o Império foi uma maravilha, a família imperial guiava a nação mais progressista do mundo, sorriam todos em um Brasil cosmopolita e pulsante de prosperidade. A Proclamação da República foi, nessa curiosa fibra do tempo, um erro que, quem sabe, ainda dá tempo de corrigir. Um Brasil onde racismo não existia – afinal de conta, ninguém falava em racismo, e o racismo só existe porque insistimos em falar nele, não é? Onde as mulheres eram felizes servindo aos maridos como donas do lar, onde a arte não falava de bandalheiras, onde os índios morriam em silêncio sem encher o saco. Onde a Terra inteira flutuava no espaço, perfeita em sua planitude sem curvas, com os astros celestes flutuando sobre o berço esplêndido tal móbiles em um quarto de bebê.

Se você olhar com cuidado, vai perceber que se trata de um passado horroroso: nele, a grande maioria das pessoas só existe para sofrer, ou nem isso. Mas não tem problema. Na revolucionária anti-ciência da viagem no tempo em marcha a ré, dá sempre para ir arrumando o passado pelo caminho, e qualquer coisa é só colocar a culpa nos malvados esquerdopatas de sempre.

Foto: Reprodução/YouTube

Voos Literários

O príncipe e o plebeu

Flávia Cunha
15 de novembro de 2019

Nesta sexta-feira, chegamos a 130 anos do fim da monarquia no Brasil. E para o espanto republicano, cá estamos nós vendo um “príncipe” brasileiro em destaque nos noticiários.

A transição para a república, em 1889, ocorreu por meio de um golpe militar e temos um governo brasileiro no século 21 que dá poder e visibilidades aos militares. Conforme análise de historiadores, o Império só caiu no Brasil por problemas de Dom Pedro II com o próprio Exército e também por não ter se aliado à Igreja Católica. No Brasil de 2019, são os evangélicos que dão as cartas. Os conservadores da época do império temiam que uma mulher assumisse o poder depois da morte do imperador, já que ele não tinha herdeiros homens. No Brasil dos anos 2010, uma mulher presidente sofreu críticas misóginas à sua atuação na política, que passavam por ofender sua aparência, fato irrelevante para homens no governo. (Alguém acha o Bolsonaro bonito? Pois ele venceu do boa pinta Haddad, mostrando que beleza não é relevante para o sexo masculino na política brasileira. Já as mulheres, são consideradas “musas” ou “dragões” e esse fato é extremamente destacado pela mídia e redes sociais.)   

Mas voltemos ao autoproclamado “príncipe” –  afinal, não vivemos mais na monarquia. O presidente Bolsonaro comentou que Luiz Philippe de Orleans e Bragança, deputado federal pelo PSL de São Paulo e descendente da família imperial, é quem deveria ter sido o vice dele na chapa para as eleições de 2018. 

O que explica o fascínio de Bolsonaro por figuras da realeza?

Recentemente, o presidente brasileiro também fez elogios ao príncipe da Arábia Saudita, dizendo que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente as mulheres”. Qual seria o motivo desse deslumbramento com a realeza tantos anos depois da proclamação da República?

No livro As Barbas do Imperador, de Lilia Moritz Schwarcz, podemos ter uma ideia do que a realeza evoca no imaginário popular:

Transcendendo a figura humana do rei, as representações simbólicas do poder imperial evocavam elementos de ‘longa duração’ que associavam o soberano à ideia de justiça, ordem, paz e equilíbrio. […] Talvez seja essa a razão da pouca legitimidade inicial dos símbolos republicanos, em um país ainda atrelado à eficácia e à inserção alargada dos emblemas da realeza. O fato de os ícones da República mais bem-sucedidos — como o hino e a bandeira — estarem de alguma maneira ligados à simbologia monárquica evidencia não apenas o pequeno impacto da ‘invenção de tradições’ republicanas, como sobretudo a penetração de uma simbologia imperial, para além dos marcos políticos oficiais.”

Mesmo que Luiz Philippe de Orleans e Bragança não pertença ao ramo da família que assumiria o trono no remotíssimo caso do retorno da monarquia ao Brasil,  ele é um símbolo da família imperial e demonstra ter valores ultraconservadores e reacionários. Começou a se interessar por política ao se aliar ao movimento que atuou para tirar Dilma Rousseff da presidência da República. Trabalhou forte para a eleição de Bolsonaro e, pelo menos até agora, mantém-se leal ao presidente. 

Fica a pergunta: Dom Pedro II, que preferiu se manter afastado do Exército e dos religiosos durante seu reinado no Brasil, concordaria com as decisões políticas de seu descendente?