Igor Natusch

Um dia de tédio no Judiciário de Alagoas

Igor Natusch
13 de outubro de 2020
23/08/2017- Alagoas- Lula recebe título de Doutor Honoris Causa da Uneal, em Arapiraca. Foto: Ricardo Stuckert

Há um lugar, em meio ao sobrecarregado Judiciário brasileiro, no qual a ausência do que fazer parece ter virado um problema desesperador. Na 4ª Vara Cível de Arapiraca (AL), o único movimento deve ser o das moscas, elas mesmas um tanto contagiadas pela pasmaceira que toma conta do ar.

Imagino os funcionários entediados, sentados o dia inteiro diante de mesas perfeitamente arrumadas, vazias de processos, petições, notificações. A única emoção, imagino, é levantar da mesa até o bebedouro, servir um pouco de água em um copo plástico, retornar ao escritório, voltar a sentar. Um cenário exasperante, o da 4ª Vara Cível de Arapiraca. Quase consigo sentir no ar a frustração por mais um dia ocioso, ouvir a respiração funda de homens e mulheres perdendo mais um dia de vida, todos e todas aguardando com sofreguidão que surja algo para fazer. Uma sentencinha que seja. Qualquer coisa.

Foi nesse cenário de desespero, imagino, que o juiz Carlos Bruno de Oliveira Ramos decidiu que era necessário anular, pela força de um canetaço, o título de doutor honoris causa que o ex-presidente Lula recebeu da Universidade Estadual de Alagoas em 2017. Olhou para os lados, viu a moral dos funcionários e assistentes lá embaixo, e decidiu: tenho que fazer alguma coisa. Um gesto de desprendimento, portanto. Uma atitude corajosa, pensando no coletivo, com o nobre objetivo de dar a uma equipe de desanimados alguma coisa com que se distrair.

Só pode ser isso. Afinal, utilidade e interesse público inexistem na medida; a coisa toda é tão inútil e vazia de mérito que o próprio Ministério Público, à época, pediu o arquivamento do processo. O ex-presidente segue cheio de títulos honorários (trinta e cinco agora, para ser mais preciso), e duvido que o cidadão comum sequer lembrasse dessa honraria específica, que dirá ansiasse por uma solução para um problema inexistente. Desperdiçar tempo e recursos com semelhante bobagem seria muito condenável caso a 4ª Vara Cível de Arapiraca estivesse cheia de coisas para fazer, de forma que só posso acreditar que não é esse o caso.

Além disso, a decisão do senhor juiz fere escandalosamente a autonomia universitária – uma coisa um tanto grave e, digamos, inconstitucional para se fazer. Imagino eu, do alto do meu respeito e admiração pelo senhor juiz Carlos Bruno de Oliveira Ramos, que ele só tomaria uma atitude dessas com o coração pesado, depois de pesar os prós e contras, premido pela mais absoluta necessidade. Não posso imaginar que fizesse uma ilegalidade dessas de forma irrefletida, movido por sentimentos menores. É claro que não. Que ideia!

Sim, tem que ter sido um gesto muito calculado e absolutamente necessário. Porque, se não acreditarmos que assim é, a porteira estará aberta para pensamentos um tanto inquietantes. Seremos levados a pensar, por exemplo, que o senhor juiz simplesmente não gosta de Lula e, movido por uma mesquinharia dessas, usou o poder de sua caneta de forma não condizente com a importância de seu cargo. Nos ocorreria imaginar, quem sabe, que o mundo dos doutores não admite ver um operário com título de doutor. E de jeito nenhum, o que é isso?, jamais poderíamos nos permitir semelhante pensamento.

Pior ainda: talvez nos passasse pela cabeça que ver um “bandido condenado” recebendo honrarias é algo que incomoda muito o senhor juiz e seus chegados, porque demonstra que não há nenhuma unanimidade em torno do julgamento que condenou o ex-presidente Lula. Talvez nos fizesse pensar que há gente no Judiciário que se preocupa mais com Lula do que com o resto das pessoas. Ao ponto de (o horror, o horror!) desejar ativamente que se pense mal dele, que nada de positivo a respeito de Lula possa prosperar. Ou seja, se não acreditarmos que a decisão contra o título de doutor de Lula foi absolutamente necessária, surge margem até para pensar que o juiz seria não apenas recalcado, mas parcial e movido por razões políticas.

Deus me livre, pensar uma coisa dessas. Deve estar faltando o que fazer na 4ª Vara Cível de Arapiraca, isso sim. Só pode ser isso.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

A respeito de cachorros comedores de ovelha

Igor Natusch
4 de abril de 2020

No Rio Grande do Sul (e em boa parte do Brasil, imagino), é comum o uso de cães junto a rebanhos de ovelhas – seja para ajudar no pastoreio, seja para manter predadores (e ladrões) afastados. O Estado tem até sua própria versão de cão pastor, o ovelheiro-gaúcho, talhado especificamente para esse tipo de tarefa. De modo geral, os animais gostam de se sentir úteis, e realizam as tarefas com grande dedicação. Alguns cachorros, porém, acabam se desviando: pegam gosto por caçar as ovelhas e devorá-las.

Esses, como diz o gaúcho do campo, só matando.

Lembro do meu pai contando, quando eu ainda era bem novo, sobre as experiências que tivera com cachorros comedores de ovelha. Ele morava na zona rural de São Gabriel, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, e dizia ter visto uma ovelha caçada por cachorro, ainda viva. O processo é tão brutal quanto eficaz: o cachorro corre, a ovelha tenta fugir, e o caçador, ao invés de atacar no pescoço ou no lombo da presa, apenas agarra a lã com os dentes, dando um puxão que, em meio à correria, acaba causando ferimentos graves. Às vezes, a ovelha consegue fugir mesmo assim; às vezes, não. A ovelha que meu pai viu quando garoto tinha fugido, mas estava mal: o puxão tinha arrancado um grande naco de carne, deixando as costelas à mostra.

Eu nunca vi um cachorro comedor de ovelha, mas quem viu diz que o bicho fica viciado – tanto na carne crua recém-abatida, quanto na adrenalina da caçada. Alguns caçam apenas por prazer, sem sequer devorar de fato a presa; outros, ao contrário, param de comer da tigela e recusam qualquer outra comida que lhes seja servida, só demonstrando interesse pelo gosto do sangue fresco.

Em qualquer caso, a sabedoria do gaúcho diz que só existe um jeito de evitar o prejuízo na criação: levar o cachorro ovelheiro para um lugar isolado e matá-lo. Mesmo que goste muito dele, mesmo que seja um animal fiel e tudo o mais. Porque cachorro viciado em ovelha não se emenda. Não presta para mais nada. Só matando.

Imagino que muitos gaúchos tenham, no decurso das décadas, tentado salvar a vida de cachorros viciados em ovelha. Às vezes os piás gostam do bicho, e o pai não quer deixar as crianças tristes. Às vezes o cão livrou o dono de situações difíceis, o que gera um sentimento de gratidão. Talvez, no passado, o animal tenha sido o melhor pastor de ovelhas da fazenda, e o dono sinta pena de se desfazer de uma criatura que foi tão eficiente no passado. Ou pode ser que o gaúcho rude simplesmente não queira a missão de abater um cachorro, um animal tão próximo, com que se desenvolve laços diferentes do que se tem por uma vaca, um porco, uma ovelha.

Um esforço quase bonito, dependendo do caso – mas, ainda assim, infrutífero.

É a vida, simples assim. Alguns não se emendam – sejam animais selvagens, domesticados ou seres humanos, mesmo. Para alguns indivíduos, o desvio é sua própria natureza: é o que os define, o comportamento mais natural, o resumo de tudo que são e ambicionam ser.

Eles caçam ovelhas, reais ou figuradas. Eles buscam o cheiro de sangue, sentem um impulso incontrolável pela destruição.

Um viciado em ovelhas, seja de que espécie for, pode tentar mudar a rota, sim. Pode tentar modular seu discurso, por exemplo. Mas funciona por um ou dois dias, no máximo: logo volta a espalhar dor e discórdia, a cometer gestos vis, dizer todas as barbaridades que habitam sua mente doentia.

Pode ser que o caçador faça sinais de conciliação, ou talvez ele prefira gritar aos quatro ventos seus delírios homicidas. Nesses casos, não se deve levar em conta a primeira fala, e é preciso prestar toda a atenção na segunda.

Você pode adestrá-lo, pode pedir que se controle, implorar que tome juízo. Pode torcer que o ambiente o eduque, que as pressões sobre ele consigam colocá-lo na linha, que o risco da punição definitiva seja suficiente para evitar que ele continue matando. Pode inclusive achar que, depois de devorar algumas ovelhas, ele vá ficar de estômago cheio e parar com a matança, ao menos por algum tempo.

Tudo ilusão: ele não vai parar. Nunca.

Diante da caça, o cachorro que devora ovelhas entrará sempre em frenesi. Não parará nem mesmo diante do fim, podem acreditar. Mesmo isolado, mesmo encurralado ou na iminência do tiro fatal, ele vai sempre lembrar do gosto do sangue. E vai arreganhar os dentes. Ansiando por mais.

Sou gaúcho, mas não sou do campo, como vocês sabem. Ainda assim, creio que a sabedoria de quem vive no pampa é correta: quando se conclui que o cachorro virou caçador de ovelhas, o tempo de esperar que algo aconteça já passou. Quanto mais rápido a gente se livra dele, melhor.

Foto: Pxhere / Creative Commons

Igor Natusch

Jair Bolsonaro perdeu o pulso das massas

Igor Natusch
18 de março de 2020
O presidente Jair Bolsonaro acompanhou, da área externa do Palácio do Planalto, em Brasília, a manifestação de apoiadores de seu governo, que está sendo realizada neste domingo (15) na capital federal e em outras cidades do país.

Ao que parece, a opinião pública se cansou de Jair Bolsonaro.

Embora seja um marco que entrará para a história, o gesto de cumprimentar lunáticos de verde e amarelo que pediam golpe em pleno temor do coronavírus não é exatamente um ponto de partida. Na verdade, a impressão é de que Bolsonaro, eleito pela capacidade de ser o avatar dos recalques e preconceitos de uma nação inteira, perdeu há algum tempo o pulso das massas. Lembremos da patética insinuação de fraude no primeiro turno das eleições de 2018 – cometida, segundo o presidente, para impedir que ele fosse eleito em primeiro turno. A maluquice, ao que parece, tinha o objetivo de energizar sua massa de fanáticos e pressionar a Justiça Eleitoral; fora algumas falas discretas de TSE e Congresso, não teve efeito algum. Passou em branco.

Estamos acostumados a pensar em quanto as barbaridades de Jair Bolsonaro passam em branco para prejuízo da nação. Talvez precisemos começar a pensar em quanto esse passar em branco é prejudicial para o próprio Bolsonaro.

No exercício vulgar da política que Bolsonaro faz, uma polêmica que não acontece é uma agenda perdida. E a percepção de que os protestos de 15 de março falhariam – os protestos tão acalentados, propagandeados com uso da máquina pública, capazes de dar fôlego ao sonho autocrático de quem sempre detestou a democracia – parece ter pesado sobre a mente do presidente. Até Luiz Henrique Mandetta, o até então discreto ministro da Saúde, recebia aplausos na imprensa, jogando o presidente (em sua visão, ao menos) para segundo plano.

Cego pelos piores sentimentos políticos, Bolsonaro não enxergou a sombra do coronavírus pairando sobre o país.

Diante de uma doença potencialmente trágica e que apavora todo o mundo, era hora de recuar. Mas Bolsonaro, animal político xucro que é, não recua jamais. Avançou aos pinotes, sonhando com os aplausos da claque, com multidões reacionárias enfrentando o medo do Covid-19 em nome de um Brasil livre dos comunistas. Decidiu ignorar os médicos e a decência, rompendo o próprio isolamento para apertar mãos e tirar selfies junto à turba demente que gritava seu nome.

Apostou errado, em mais de um sentido. Para praticamente todo o mundo que assistiu do lado de fora, os atos ficaram marcados como o que de fato são: um desfile de gente louca e inconsequente. Bolsonaro, por sua vez, surge coma figura vil que quer virar ditador e não tem vergonha de fazer política rasteira em meio à promessa de cadáveres – algo que, sejamos justos, descreve de modo exato o que ele efetivamente é. Longe de ficarem emparedados pelos protestos, Congresso e STF saíram com uma disposição renovada para anulá-lo de vez – com direito a humilhação pública, na figura de um gabinete de crise no qual o Presidente da República sequer foi convidado a tomar assento.

Com protestos de adesão modestíssima, analistas internacionais enojados e uma economia em queda livre, o que os nobres deputados e magistrados têm a temer de Bolsonaro?

Atacou fraco. Abriu o flanco. E agora está sofrendo – e sentindo – o contra-ataque.

Desde ontem, panelas e gritos de Fora Bolsonaro se fazem ouvir das janelas em quarentena do Brasil. Janaína Paschoal, que esteve perto de ser vice na chapa que o elegeu, desancou Bolsonaro com fúria quase inédita; Reale Jr., por sua vez, pediu uma junta médica para avaliar a sanidade mental do presidente. Ninguém, absolutamente ninguém ergueu-se em seu auxílio. Mesmo os militares, sempre evocados como força capaz de impor a ordem a um país de devassidão e petismo, seguem guardando um significativo silêncio. E as ruas, que sempre acreditou serem suas (o que era verdade até a facada, e nunca mais voltou a ser depois disso), agora cospem em seu rosto.

A irresponsabilidade de Bolsonaro não despertou apoio, mas fúria. Deu aos que se opõem a ele uma oportunidade e um sentimento coletivo.

O que todos sabiam, mas nem todos expressavam, agora ganhou voz e significado: o presidente é um imbecil. Uma figura asquerosa e vulgar, que não se importa com nada que não nutra relação direta e imediata com seus delírios de autocrata. Um fraco. Alguém que ri e tira selfies enquanto o povo sofre e tem medo. O pretenso homem do povo é uma caricatura tosca do flautista do conto de fábulas, conduzindo ratos golpistas cheios de doença em uma melodia de talkeis.

Que golpe poderá Bolsonaro dar, em semelhante cenário? Aí está: nenhum. E o que poderá fazer Bolsonaro para recuperar o pulso perdido das massas, em um horizonte que pode trazer longos meses consecutivos de quarentena coletiva? Isso mesmo: nada.

Na política, nada é irreversível. Talvez as coisas mudem rapidamente, e nas próximas semanas já tenhamos de novo um Jair Bolsonaro confiante e dono da situação. Hoje, contudo, parece claro que Bolsonaro não tem mais as rédeas em mãos. As decisões que importam sobre o coronavírus estão sendo tomadas à revelia, enquanto o suposto líder fica murmurando ameaças frouxas via imprensa. Um pedido de impeachment, bem ou mal elaborado que seja, já está na mesa de Rodrigo Maia. E os edifícios do país começam a bater panela, exigindo que o presidente pegue o boné e vá embora de uma vez. Se gritarem bem alto, não duvido que consigam, mais cedo ou mais tarde.

A verdade é que os ventos da política brasileira viraram. Desde domingo, o afastamento de Bolsonaro tornou-se uma possibilidade real, ainda que não imediata. O sonho de golpe virou um bumerangue, que tem tudo para acertá-lo na cara.

Foto:  José Cruz / Agência Brasil
Igor Natusch

Ou a gente enfrenta o golpe, ou o golpe já venceu

Igor Natusch
26 de fevereiro de 2020
O presidente Jair Bolsonaro conversa com turistas no Palácio da Alvorada.

Vamos começar com um exercício simples.

Projete sua mente para o início de 2023. A posse presidencial, toda aquela festa da democracia em Brasília, bandeiras verde-amarelas tremulando em todo o entorno do Planalto. Ao fim da rampa, Jair Bolsonaro – talvez sorridente, talvez ressabiado – segura a faixa presidencial, que ostentou sem necessidade inúmeras vezes durante os quatro anos anteriores, pela última vez. A seu lado, o homem ou mulher que assumirá a República em seu lugar. E Bolsonaro, de forma republicana, colocando a faixa no peito de seu sucessor ou sucessora, completando um ciclo de governo e dando início ao outro – tudo dentro da mais absoluta ordem democrática, com as instituições funcionando normalmente.

Agora, abra os olhos e responda, com sinceridade. Você realmente consegue visualizar isso acontecendo?

Nem eu.

E não estamos malucos, de forma alguma. O fato é que as eleições de 2022 não estão nem um pouco garantidas, e não existe nada suficientemente sólido para nos garantir que elas irão ocorrer. Nada. Nadica de coisa nenhuma.

A gente sabe, mesmo não querendo admitir. E a gente também sabe qual o motivo de tanta incerteza: o próprio Jair Bolsonaro e seu governo. Para essa aliança sombria, a democracia é um inimigo ou, na melhor das hipóteses, um incômodo a ser retirado do caminho. E estão agindo para destruir todos os alicerces democráticos, sem nenhum disfarce, diante dos nossos olhos.

Tem gente que escolhe a cegueira, mas mesmo esses enxergam muito bem o que está acontecendo.

O compartilhamento de mensagens convocando para protestos que pedem o fechamento do Congresso Nacional é apenas mais um dos muitos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro desde que tomou posse. É uma corda, que vem sendo esticada todos os dias e, por vezes, é submetida a violentos puxões. Não resta dúvida de qual seja a linha de chegada dessa corrida mórbida: o fechamento do Congresso e do STF, a criminalização do dissenso, a instauração de um regime de exceção com alicerces criminosos.

Pode levar vários meses, talvez um ano, talvez mais. Mas é essa a meta. E nenhuma ponderação, nenhum esforço racional ou freio democrático tem feito com que esse impulso sombrio seja contido. Há recuos, mas nenhum sinal de trégua, nada que sequer se aproxime de uma domesticação.

O cenário pode não ser dos mais agradáveis, mas seu enunciado é, na verdade, bastante simples. Ou as ditas instituições reagem, ou serão fechadas.

No momento, eu não apostaria nessa reação, infelizmente. Não sem um sacolejão violento por parte da sociedade.

Por agora, o governo Bolsonaro não tem força (política e bruta) para instaurar uma ditadura. E é meio por isso que ainda não estamos em uma. Pouco coeso, cravejado por disputas internas, em um clima de deslealdade aberta entre seus integrantes, o regime ainda tem o problema extra de ter um presidente que não consegue ser um líder – e tudo isso impede (talvez felizmente) ações sistemáticas de vulto. Tudo isso é verdade, e precisa ser levado em conta nesta complicada e tensa equação.

Não se pense, porém, que esse pessoal não vai buscar concretizar suas taras autoritárias. Está buscando, sim – e será cada vez mais vulgar e agressivo nessas tentativas, porque esta é a sua natureza, este é o cenário em que se sente mais confortável para atuar.

Apostar que a eleição de 2022 é um horizonte consolidado é pouco mais que um delírio desejoso, um alegre devaneio de verão. A única chance de existir um 2022 é forçando que ele exista.

A luta – desde já, e com urgência cada vez maior – é para interromper ou, pelo menos, enfraquecer essa enxurrada das trevas. É punir quem comete crimes contra a democracia. É fazer com que os delírios autocratas voltem a oferecer riscos àqueles que os acalentam, é garantir que o ataque à Constituição volte a ter consequências. Mesmo que isso signifique expulsar da cadeira presidencial aquele que a vê como um trono, como uma propriedade da qual não pretende abrir mão jamais. E apenas o sucesso nesse enfrentamento pode garantir a sobrevivência de um edifício democrático com alicerces fragilizados, que se esfarela a cada ataque e balança cada vez mais.

É preciso impor 2022 aos que anseiam por cancelá-lo. Desde agora. Ou talvez a profecia sinistra se confirme, e não seja mesmo necessário mais do que um cabo e um soldado para apagar a luz.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Igor Natusch

Deixem a família Bolsonaro em paz!

Igor Natusch
19 de fevereiro de 2020

A família Bolsonaro não tem nada, absolutamente nada a ver com a morte de Adriano da Nóbrega, miliciano, assassino de aluguel e chefe do Escritório do Crime. Nadinha de nada, coisíssima nenhuma. Estão completamente inocentes, sem culpa nenhuma no cartório. Qualquer um consegue ver: é só querer enxergar.

Por exemplo: vocês não viram o presidente Jair Bolsonaro no Twitter, deixando clara sua preocupação com a aparente execução do ex-PM? Ninguém perguntou nada, ninguém disse um ai, e lá estava ele, cedo de manhã em plena terça-feira, desviando de seus muitos compromissos para deixar claro que estava muito, muito preocupado com a morte de Adriano da Nóbrega. Exigindo uma perícia independente, temendo que inocentes sejam acusados no caso Marielle, que sejam forjadas mensagens e áudios nos celulares apreendidos junto ao morto. Um homem preocupado com a verdade!

Vocês acham que Jair Bolsonaro agiria assim, de forma tão desprendida, pedindo justiça para a morte de uma pessoa como Adriano da Nóbrega, se tivesse algo a ver com a história?

Ora, é claro que não!

Quanta tolice, quantas insinuações cruéis desse bando de malvados esquerdopatas!

E o advogado dos Bolsonaro, Frederick Wassef, dando entrevista para dizer que a morte do miliciano é uma farsa e que querem incriminar a família presidencial no crime? A maldade chegou a tal ponto que ele precisou vir a público defender os pobres Jair e Flávio das cretinas e cruéis insinuações! Teve até que defender o morto, denunciar as horríveis torturas que a perícia com certeza vai revelar, dizer que o miliciano não era miliciano! Pede para federalizar o caso, e é claro que isso é com a melhor das intenções, com o objetivo exclusivo de esclarecer essa situação toda!

Longe de tentar desviar a atenção para longe de seu cliente, Wassef quer apenas nos chamar à razão. O que Marielle tinha que Adriano não tem?

Respondam, bando de hipócritas, corações de pedra, malvados!

É bonito ver que mesmo Flávio Bolsonaro, perseguido por acusações absurdas de rachadinha, desviou-se de seus inúmeros problemas para defender o santo homem que morreu sozinho em solo baiano. Postou um vídeo da autópsia em seu perfil de Twitter, vejam só. Tudo para denunciar as torturas sofridas pelo corpo! Dirão que é excesso de preocupação, que está querendo esconder algo, mas é o contrário: um homem sério, desinteressado, que se importa com seu povo e quer revelar a verdade, doa a quem doer! Quanta dignidade, a de nosso querido Flávio!

E essa imprensa sem-vergonha, que inventa que Adriano foi morto na fazenda de um filiado ao PSL, que fica lembrando que parentes próximos de Adriano da Nóbrega trabalhavam no gabinete de Flávio Bolsonaro? Ora bolas, o que há de suspeito nisso? Claro está que é apenas uma coincidência. Terem homenageado Adriano em plenário, as muitas falas defendendo milicianos como gente “do bem”, o fato de alguns dos prováveis assassinos de Marielle Franco morarem no mesmo condomínio em que Jair Bolsonaro reside, talvez até tocando em seu interfone para pedir autorização para entrar – qual o sentido de supervalorizar todas essas coisas? É uma maquinação diabólica, coisa de gente que vende o corpo para ter matéria, pessoas que não têm um pingo da moral ostentada pelos sempre impolutos, sérios e respeitáveis membros do clã Bolsonaro!

Como se vê, não existe motivo algum para desconfianças e insinuações. Vocês estão entendendo? Ficou claro? Será que precisamos frisar mais duzentas, quinhentas, mil vezes que os Bolsonaros não têm nada a ver com nada disso daí?

Não existe nada acontecendo. Nada. Circulando. Deixem a família Bolsonaro em paz!

Não há nada a temer, de qualquer forma. Uma explicação surge no submundo das redes sociais: Adriano foi executado pela PM da Bahia, estado governado pelo PT, o que deixa evidente que a queima de arquivo foi para favorecer os malvados do PT! Vão forjar provas contra Bolsonaro, vocês não percebem? Ninguém nunca enxergou qualquer conexão entre Adriano e os petistas, e muita gente enxergou inúmeras conexões entre a família Bolsonaro e as mílicas, mas quem se importa? Problema é o Rui Costa, que é amigo de bandidos como Lula! E os mandantes da facada em Bolsonaro, onde estão? É tudo fraude, tudo fruto de fake news, a imprensa protege os petistas e persegue os que querem salvar o país!

Do Celso Daniel ninguém fala nada nunca nunca nunca, já perceberam?

Que coisa.

Foto: Polícia Federal / reprodução

Igor Natusch

O Brasil de Paulo Guedes sonha em excluir ainda mais

Igor Natusch
13 de fevereiro de 2020
O ministro da Economia, Paulo Guedes, faz palestra de encerramento do Seminário de Abertura do Legislativo de 2020

Um dos aspectos mais insuportáveis do governo Bolsonaro é o modo como ele nos abriga a tratar sempre dos mesmos assuntos. É uma consequência natural de qualquer processo humano movido pelo recalque: por mais que se disfarce a ideia fixa detrás de discursos elaborados e tergiversações diversas, a mancha suja está sempre na mente. O recalcado não consegue esquecer o foco de seu rancor nem quando toma um copo d’água: é o que é, ou pelo menos aquilo em que permitiu a si mesmo se transformar.

Paulo Guedes não é exatamente um recalcado. Possivelmente o seja em alguns ou vários aspectos, é claro: porém, não é em nome de sua mágoa individual que comete frases odiosas como a que comemora a alta do dólar, dizendo que isso de empregada doméstica viajar para a Europa já tinha virado bagunça. É em nome do recalque alheio, isso sim.

O ministro da Economia sabe que, no imaginário brasileiro, existir é ter alguma coisa. E que essa distinção passa também pelo não-ter dos outros: se eu ganho ou tenho um pouco mais, eu tenho alguma ascendência sobre os que menos (ou nada) têm.

É por isso, por exemplo, que os auto-proclamados patriotas desprezam tudo que remeta ao “povão”: o povo é pobre, e ser pobre é personificar tudo que não presta, em mais de um sentido. Para alguém que vive a ilusão de ser rico um dia, o pobre é tudo de que se quer distância. Se uma empregada doméstica (uma serviçal, uma lacaia!) se torna capaz de juntar uns trocados e planejar uma viagem, a fronteira fica mais tênue. O que se acha alguma coisa fica mais próximo daqueles que não têm direito a nada, apenas a serem pobres e morrer.

O governo Bolsonaro joga desde o início com esse ressentimento. E Paulo Guedes sempre esteve nesse barco: a diferença é que agora está se sentindo mais à vontade para usar o ódio de classe como cartada de legitimação.

É um discurso cruel. E que dá à política econômica um papel ativo na construção da grande ilusão, no resgate da pátria que sempre esteve lá e, ao mesmo tempo, nunca existiu. Não pode restar dúvida de para qual lado se espera que a economia cresça, nesse caso.

O Brasil reacionário segue excludente, mas sente saudades de excluir ainda mais. E Guedes diz: excluiremos. Essa festa danada de pobre achar que é gente vai acabar. Podem deixar com a gente.

Ninguém pode abraçar uma perversidade tão explícita e achar que não é perverso. Pode fingir não ser, e talvez até engane algumas – ou muitas – pessoas. Mas a perversidade estará lá, como uma mancha que estraga o vermelho da maçã, podridão que consome de dentro para fora.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil
Igor Natusch

No Brasil, ser patriota é odiar o povo brasileiro

Igor Natusch
5 de fevereiro de 2020
(Brasília - DF, 09/12/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro, se despede ao término do almoço.rFoto: Marcos Corrêa/PR

O patriota brasileiro pode ser definido a partir de uma característica muito curiosa: ele adora odiar seu próprio povo. Para grande parcela dos valorosos brasileiros de bandeira adesivada no carro e camiseta verde e amarela, o povo brasileiro é formado por vagabundos, preguiçosos, incompetentes e bandidos em potencial.

Os valores desejáveis para uma nação forte e poderosa não estão entre nós, mas em outros lugares, e tudo seria muito melhor se nosso povo letárgico, burro e animalizado seguisse esses lindos exemplos – ou mesmo se sumisse de vez, dando espaço para braços realmente dispostos a trabalhar por um grande país.

Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro concorda, ao menos parcialmente, com esse enunciado. Afinal, retuitou para seus milhões de seguidores um vídeo de Alexandre Garcia, no qual o jornalista (um dos mais empolgados puxa-sacos do atual governo) teoriza, de forma irônica, sobre como seria lindo o Brasil se nosso povo de molengas submissos fosse trabalhador, sério e concentrado como os japoneses.

 

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Sim, no fim das contas é isso aí mesmo: o Presidente da República concordando publicamente com quem diz que o povo brasileiro não presta para nada. Curioso caso de um nacionalista que ama o povo dos outros e despreza o próprio
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(Sim, todos sabemos que provavelmente foi o tresloucado Carlos Bolsonaro, filho do presidente e dono das senhas das redes sociais do pai, quem postou a estupidez. Mas a verdade é que isso muda pouco o argumento: continua sendo um endosso a um discurso rasteiro sobre a população brasileira, vindo de gente muito próxima ao topo do poder.)

Esse patriotismo à brasileira que acha que xingar brasileiros de vagabundos é ser patriota é ridículo, é claro. Mas não é exatamente difícil de entender. Afinal, o amor à pátria aqui se confunde com coisas bem mais profundas: o racismo e o ódio a gente pobre.

No Brasil, o que define a cidadania é o que se tem, desde tempos imemoriais. Ser bom é ser dono, é ter algum tipo de propriedade sobre o Brasil – ou, pelo menos, ser (ou achar que é) amigo de quem a tenha. Aos que não têm quase nada, cabe a sina de sempre ficar com um pouco menos – e quando já se tirou tudo que se pode levar embora com as mãos, resta esvaziá-los também da capacidade de gerar coisas novas, de serem um povo pelos próprios termos, de existir sem pedir licença.

A cultura do povo não é a cultura brasileira: é a cultura do povão. Os desmatamentos não são consequência de um modelo predatório e assassino de capitalismo: são o gesto ignorante de quem não tem o que comer. A crise econômica não é falta de emprego: é falta de imaginação de quem não consegue ser empreendedor e fica esperando que os patrões deem tudo de mão beijada. Se os pobres brasileiros nada têm, é porque nada produzem; se vivem com fome, é porque são preguiçosos esperando que o sustento caia do céu, prontos a vender o voto pelas esmolas de um programa assistencial qualquer.

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Em última análise, o patriota à brasileira representado na fala nojenta de Alexandre Garcia não ama o Brasil: na verdade, se acha dono dele, enquanto recursos, território e conceito. E faz questão de dizer que os não-donos do Brasil não são nada, não podem ser nada, jamais serão coisa alguma. Mesmo que isso seja uma mentira deslavada
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A patriotada, nesse contexto, nada mais é que um recurso retórico, um argumento sonoro repetido por elitistas preconceituosos enrolados na bandeira nacional. O Brasil dessas pessoas só existe no espelho de casa, nos próprios delírios de ascensão social – ou nas gordas contas bancárias de quem usa o verde e amarelo para seguir sem riscos no topo da pirâmide. Alexandre Garcia, porta-voz fiel desse raciocínio excludente até os ossos, ofereceu a ração confirmatória da vez. E Jair Bolsonaro – um misto de presidente, entreguista patológico e avatar de todos os preconceitos de uma nação que cansou de festa e resolveu odiar – faz o que pode para cometer o desaforo supremo: o de um governante que ri e despreza a desgraça aqueles que foi eleito para governar.

Foto: Marcos Corrêa/PR

Igor Natusch

As duas pontes incendiadas de Roberto Alvim

Igor Natusch
23 de janeiro de 2020

Assisti, no começo desta semana, um trecho em vídeo de uma entrevista do agora ex-secretário da Cultura Roberto Alvim ao Terça Livre. Não é algo que eu assistiria normalmente, pois costumo manter meu consumo de jornalismo limitado a fontes bem menos lamentáveis, mas passou pela linha do tempo do Twitter e, dado aos últimos acontecimentos (vamos, eu sei que você não esteve em Marte no final da semana passada), achei válido assistir.

No vídeo (que, deduzo eu, era bem anterior à situação envolvendo Goebbels, Wagner, a Cruz de Lorena etc), Alvim lamenta uma suposta perseguição esquerdista contra ele. Desde sua conversão, ele teria virado um proscrito, cuspido fora por seus pares. E conclui: ao sair do governo (o que, então, era só uma hipótese), teria que ir pro interior criar galinhas, pois não teria emprego em um ambiente teatral contaminado pelos esquerdopatas.

Temo que esteja absolutamente certo. De fato, a sua carreira artística muito provavelmente está encerrada. E não acho nada errado que seja assim.

Tenho dito muitas vezes, e vou repetir: as coisas precisam voltar a ter consequências.

Antes da conversão ao catolicismo, motivada pela cura de um tumor no intestino, Roberto Alvim era um dramaturgo e diretor respeitado, embora talvez não tão consagrado quanto desejava. Seu trabalho ousado e cheio de riscos, porém, tinha garantido amigos importantes (Chico Buarque e Vladimir  Safatle, citando apenas dois exemplos) e um respeito generalizado dentro do cenário teatral brasileiro.

Evidente que virar devoto de Jesus, por si só, não transforma ninguém em maldito na arte brasileira: o problema é se aproximar da ala mais reacionária  dessa devoção, e mais ainda de uma figura como Jair Bolsonaro, que declarou guerra aberta a qualquer tipo de arte livre. Nada mais natural do que um artista querer distância de reacionários, que nutrem ódio visceral pelo que a arte livre é representa – e passar a ver alguém que se abraça a esse pessoal como uma pessoa, no mínimo, pouco digna de confiança.

Essa é a primeira ponte incendiada. A segunda ele queimou junto a seus novos e transitórios amigos, quando o desastrado vídeo da semana passada despertou ultraje generalizado.

A mão pesada em Goebbels e Wagner não me parece desprovida de significado: para alguém sem padrinhos importantes e que não tem currículo político anterior, reforçar aspectos ideológicos é uma forma de tentar se manter no poder. Talvez ele encarasse seu jogo de cena como uma demonstração de força e convicção política, ou que promover uma “arte genuinamente brasileira” garantiria uma adesão capaz de consolidar sua posição. Seja como for, o rebote foi mais forte do que o esperado – suficiente para comprometer sua efêmera ascensão entre os reacionários com quem escolheu andar. Foi cuspido fora, sem constrangimento. E como poderia esperar outra coisa?

Essa gente não sabe o que é lealdade. Para eles, Roberto Alvim é carne morta, não serve para mais nada.

Rapidamente surgirão outros memes ambulantes, outras figuras dispostas a cumprir o papel de ex-esquerdopatas na legitimação de uma agenda de emburrecimento e destruição. E ao ex-secretário, caído em desgraça pela falta de sutileza, restará o galinheiro, torcendo para que os ovos caipiras se valorizem no mercado.

Não é questão de excesso ou falta de piedade. É dever urgente de todos nós, que resistimos à enxurrada de insensatez vulgar e autoritária que ameaça nos carregar, permitir e contribuir para que as consequências existam, sejam visíveis e se façam sentir. E Roberto Alvim é um exemplo muito adequado da necessidade de colher os frutos – o que não tem absolutamente nada a ver com vingança. Se quiser voltar para o lado de cá, é preciso reconstruir as pontes incendiadas – e a nenhum de nós cabe pegar o martelo e os pregos, juntar as madeiras e as cordas para a reconstrução.

Construir o que está sendo posto em chamas levou muito, muito tempo; ninguém pode pretender carregar as tochas como se fosse apenas detalhe, como se nada fosse.

Foto: Reprodução/YouTube

Igor Natusch

Pequeno conto paulistano de Natal

Igor Natusch
25 de dezembro de 2019

Essa história é antiga – na verdade, está completando dez anos. Escrevi em 2009, quando estava morando em São Paulo. Uma cidade na qual não cheguei a me fixar, mas que foi generosa comigo e pela qual nutro, até hoje, um carinho bastante especial. Sempre que o Natal se aproxima, eu me lembro desse texto: não apenas por ter sido um momento marcante (sério mesmo, lembro os detalhes do acontecido até hoje), mas por ser exemplo de um espírito que eu não descreveria exatamente como natalino, mas que se manifesta claramente quando há uma convergência positiva entre as pessoas. Eu acredito em mágica, como uma espécie de coincidência-que-não-é-coincidência que se manifesta em vários cenários, e acho que momentos de alegria coletiva podem ser mágicos – por mais que o Natal tenha se tornado (e mais ainda depois que as forças por trás de Jair Bolsonaro fizeram o favor de destruir conexões familiares em nome do trono presidencial) um momento tenso e cheio de desconforto para tanta gente.

Não é a primeira vez que republico essa historinha, mas acho que vale a pena fazê-lo uma vez mais. Fica a sugestão: na medida do possível, abra a mente e o coração para o Universo. Eu acredito, muito sinceramente, que ele responde. E que cada um de nós é capaz de, direcionando seus privilégios para o bem, criar aos pouquinhos um mundo menos escroto, menos raivoso e hostil.

Feliz Natal, gurizada.

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São Paulo. Cercanias do Natal. Voltava para meu refúgio, pensando na vida e no que ainda precisava resolver para a viagem de fim de ano até o sul, quando o típico barulho na janela do ônibus despertou minha atenção. Chuva — uma rajada forte, violenta, do tipo que aparece quase de surpresa para jogar São Paulo no caos. Companheira de todos os atrasos e engarrafamentos, alguém poderia dizer. Vinha tão distraído que nem imaginei que pudesse chover, e é claro que não trazia comigo nenhum guarda-chuva nem nada do tipo. Assim que eu saísse daquele ônibus, estaria à mercê do poder inclemente da Natureza — ou, falando sem poesia, ia tomar um belo de um caldo.

Pensei rapidamente nas minhas chances de fuga e concluí que a melhor coisa seria descer uma parada depois do originalmente previsto. Nesse caso, além de me proteger embaixo do teto da parada de ônibus, mais amplo do que o de onde geralmente descia, teria a chance de me esconder no toldo de uma padaria logo à frente, caso a coisa continuasse preta como estava. Não era o plano mais infalível do mundo, mas era o que tínhamos para o momento, de modo que o segui à risca. Fui até a parada, desci rapidamente para não me molhar e ali fiquei, totalmente ilhado, já que a chuva estava pesada e não tinha jeito de que ia aliviar de jeito nenhum.

Situação complicada, essa: próximo do abrigo definitivo, mas sem a menor perspectiva de conseguir chegar até ele naquelas condições. Nessas horas, sempre penso que deveria arranjar um guarda-chuva para mim um dia desses — mas nunca gostei de carregar guarda-chuva, além de ser uma pessoa patologicamente acomodada, então vou levando e pensando com meus botões que desta vez passa, que na próxima oportunidade eu compro um, sim Deus, eu prometo. Sempre em vão. Deus já deve ter se acostumado, a essa altura.

Fiquei sozinho na parada até que duas mulheres chegaram, um pouco apressadas e conversando alto entre si. Pararam debaixo da parada de ônibus, fecharam seus guarda-chuvas e ficaram ali, retomando o fôlego enquanto esperavam o ônibus que as levaria para casa. Imagino, pela semelhança física e pela diferença de idade, que fossem parentes, talvez mãe e filha; uma senhora com o rosto emoldurado pelos primeiros cabelos brancos e uma moça de vinte e poucos anos, ambas de pele negra, roupas simples e o ar de dignidade despreocupada típico das pessoas humildes que nada devem a ninguém. A mais jovem, aliás, era uma moça muito bonita — cheia daquela beleza que, por não encaixar nos padrões que tentam jogar todos os dias para cima de nós, acaba sendo assumida por muitos como beleza menor, ou como se nem beleza fosse.

Era bonito o modo como ela sorria enquanto falava, um sorriso de dentes perfeitos e de uma alegria despretensiosa e sem disfarces. Era bonito o modo como ela prendia o cabelo em um pequeno coque logo acima da nuca, e era bonito o pescoço que surgia pela gola da blusa cor de vinho que aquela moça vestia. Era bonita a cintura que às vezes se revelava entre a mesma blusa cor de vinho e o jeans sem cinto que a moça usava, e era bonita a maneira como ela se inclinava de leve para ver se o ônibus vinha de trás da curva da rua. E eu confesso que fiquei ali, admirando discretamente aquela beleza que talvez nem se soubesse bonita, um pequeno e agradável consolo no meio daquela metrópole encharcada de trânsito, de chuva e de solidão.

Ficaram as duas ali talvez uns cinco minutos, rindo e conversando, até que o ônibus chegou e as levou para algum lugar longe do meu mundo e da minha vista. Fiquei de novo sozinho. Passei com certeza uns dez minutos mais ali, sozinho, as pilhas do mp3 player gastas, ouvindo apenas o som da chuva e o compasso repetitivo dos meus pensamentos. Até que alguma coisa me ocorreu, um impulso repentino que me fez dar uma olhada para trás, para os assentos de ferro cobertos de gotas de chuva. E o que eu vi?

Um guarda-chuva. Um guarda-chuva enorme, vermelho e chamativo — que logo reconheci como o guarda-chuva da moça bonita que até menos de quinze minutos havia estado ali, naquela parada de ônibus, colocando um pouco de poesia no meu fim de tarde enquanto esperava condução para a casa. Aparentemente, a moça o deixou ali por algum motivo qualquer, talvez para que o excesso de água escorresse, talvez para ajeitar alguma coisa nas suas roupas ou pegar algo na bolsa ou qualquer coisa do tipo. E, na pressa de subir no ônibus, o esqueceu atrás de si, deixando-o deitado entre os assentos pronto para ser útil a algum anônimo da cidade. Mais especificamente, para mim.

Hesitei um pouco, admito. Me pareceu coincidência demais, um guarda-chuva enorme daqueles, esquecido em cima de uma fileira de assentos em um momento em que chovia tanto naquela área da cidade. Em um dos cantos do tecido, estava o logo do Shopping Pátio Paulista, além de uma mensagem alusiva ao 455º aniversário de São Paulo. Estaria quebrado? Peguei-o e testei rapidamente: o tecido de uma das hastes estava solto, mas fora isso funcionava perfeitamente. Ninguém em sã consciência deixaria intencionalmente para trás aquele guarda-chuva só por causa disso. Pensei um pouco, medi os prós e contras da situação, e não deu para disfarçar um sorriso quando finalmente decidi aceitar a gentil oferta do Destino, abrir o guarda-chuva e encarar, agora totalmente protegido da tormenta, o caminho de volta para o lar.

Ainda não me decidi se foi a moça quem, sem saber, me deu um singelo presente de Natal, ou se foi a cidade de São Paulo que, por meio dela, resolveu mandar um sinal de que vai com a minha cara. Na verdade, podem ser as duas coisas ao mesmo tempo, por que não? Seja como for, fiquei sinceramente muito agradecido, e fui embora desejando Feliz Natal para a moça bonita da parada de ônibus, para a cidade de São Paulo e para todos os que amo, amei e ainda virei a amar. Imagino que o espírito natalino esteja em pequenos milagres do tipo, no fim das contas.

Dezembro de 2009

Foto: André Solnick

Igor Natusch

Um fim de tarde qualquer em um bairro brasileiro de classe média

Igor Natusch
18 de dezembro de 2019
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– Eu estava pensando…

– Pelo amor de Deus, amor, não fale isso em voz alta!

– Sim, desculpe – baixou o tom de voz. – Eu estive pensando, sabe.

– Mas como assim? Desde quando você pensa?

– Ah, não faz muito tempo. Umas duas semanas, talvez. Três, no máximo.

– E por que não me disse nada antes?

– Acho que tive um pouco de… Receio – a voz, além de quase cochichada, era cautelosa, escolhendo as palavras. – Nunca se sabe como os outros vão reagir, sabe como é.

– Mas de mim você não precisa ter medo.

– Sim, eu sei. Mas, logo que comecei a pensar, eu fiquei em dúvida. E preferi esperar um pouco. Entende? Vai que é só uma fase. Vai que, no dia seguinte, eu parasse de pensar.

– É, faz sentido. Mas, pelo jeito, você segue pensando.

– Isso. E não está passando, sabe. Pelo contrário. Estou pensando cada vez mais.

– Você precisa tomar cuidado.

– Eu sei, amor. Eu sei. Mas tento ser discreto. Penso só quando estou sozinho. Com o celular desligado.

– Mas desligar o celular é proibido! Não brinque assim – Chegou a gaguejar de preocupação. – Vai que… Eles acreditam.

– Desculpe, amor. Você tem toda a razão. Foi uma brincadeira fora de hora. Me perdoe.

Seu aparelho celular estava no bolso. Logo após falar, ele voltou os olhos para a esposa e disse, apenas movendo os lábios:
“Eu espero descarregar a bateria.”

Ela entendeu e, um pouco alarmada, fez que sim com a cabeça.

– Mas enfim, a verdade é que ando pensando – recomeçou ele. – Ainda não é crime, eu sei, mas as leis mudam tão rápido! Ando um pouco preocupado com isso. Talvez eu precise de tratamento.

– E como é pensar? – perguntou ela, em um impulso. – Eu… Não lembro muito bem como era.

– É esquisito. Você pega as frases e, tipo, junta elas na cabeça. E aí algumas frases não fazem sentido juntas. Mas outras fazem, e quando elas se juntam surgem… Outras coisas. Não sei explicar direito.

– Isso parece bem perigoso.

– Eu diria que é mais cansativo, sabe. Eu começo a pensar e, logo em seguida, fico exausto e preciso parar. Deve ser falta de prática.

– Não, estou falando sério. É perigoso. Como ficam as informações que recebemos todos os dias no celular, se a gente começa a fazer… Isso daí que você faz? Como ficam as nossas certezas? Daqui a pouco vão achar que bandido bom é bandido vivo, ou que o nazismo… – Fez o sinal da cruz. – Não é de esquerda!

– Pare com isso! – Agora era ele quem parecia alarmado. – Não pensei nada disso. Não fique colocando ideologias na minha cabeça! Inclusive, olhe como está bonita a minha suástica – Apontou para o bracelete nazista, bastante vistoso, que ostentava no braço esquerdo.

– Sim, é realmente linda – concordou ela.

– Mas… Esse é o problema de pensar – retomou ele, novamente cauteloso. –  Porque, se o nazismo é de esquerda, e a esquerda é a personificação de todo o mal… Então por que nós, que somos da direita divina, somos encorajados a usar um bracelete nazista? Ele não é um símbolo dos nossos inimigos? De tudo que a gente detesta?

– Credo – quase gritou ela, enquanto espantava ideias com a mão. – Não fale bobagem. O nazismo é de esquerda, as suásticas são uma forma de humilhar os esquerdinhas. Está tudo claro. Não comece a inventar moda!

– Você tem razão – assentiu, respirando fundo.

O silêncio foi longo. Do lado de lá da janela, começava a surgir entre as nuvens um bonito pôr-do-sol.

– Amor?

– Sim?

– No que você estava pensando?

– Deixe para lá – sua voz era pensativa e, ao mesmo tempo, receosa.

– Ah, não faça assim. Você pode confiar em mim.

– Posso?

– Pode.

– Bem, então… Eu estava pensando e, pela lógica… A Terra não pode ser plana.

– AH NÃO, AMOR! PELO AMOR DE DEUS!!!

Foto: Sheila Tostes / Flickr