Voos Literários

Nazistas entre nós

Flávia Cunha
24 de janeiro de 2020

O título do livro de Marcos Guterman, Nazistas Entre Nós, pode ser usado como um alerta para o episódio do discurso com inspiração nazista envolvendo o agora ex-secretário especial da Cultura. Nazistas já foram tolerados por cidadãos de bem, como aponta a obra do jornalista e historiador que tem como subtítulo A Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Guerra. Por isso que mesmo com a saída de Roberto Alvim do governo, precisamos estar alertas e ter medo, parafraseando a nova secretária especial da Cultura. Regina Duarte sorri mais e é mais ponderada, pois defende que não haja radicalismos na política. Por outro lado, minimiza as falas racistas, machistas e homofóbicas do presidente da República, o que não deixa de ser uma postura radical em pleno século 21. Com isso, não estou afirmando que a eterna namoradinha do Brasil é nazista, mas uma conservadora que, por temer a esquerda e ter convicção na direita, posiciona-se publicamente dizendo considerar ”doce” o comportamento truculento de Bolsonaro, um “homem dos anos 50”. 

Voltando ao discurso de origem nazista propagado por Alvim, não podemos esquecer dos horrores provocados pelo regime liderado por Adolf Hitler. Na apresentação do livro Nazistas Entre Nós, Marcos Guterman questiona como muitos ex-nazistas ficaram livres após o fim da II Guerra Mundial:   

“O Holocausto – o massacre industrial de milhões de judeus e de integrantes de outras minorias durante a Segunda Guerra Mundial – foi o ponto mais baixo a que a humanidade já chegou em sua história. E foi graças a esse inominável crime que os nazistas ganharam um lugar especial entre os maiores vilões de todos os tempos. Sendo assim, como explicar que muitos desses vilões tenham conseguido, depois da guerra, encontrar um lugar entre nós, isto é, desfrutar da vida em liberdade como se nada tivessem feito, como se fossem parte da mesma sociedade civilizada que eles tanto se esforçaram em destruir? […] Isso só foi possível porque, aos olhos de muita gente, os principais líderes nazistas já haviam sido punidos e a vida tinha de continuar. Afinal, a guerra já era ‘coisa do passado’ – e era no passado que o regime assassino de Adolf Hitler e seus inúmeros cúmplices tinham de ficar.”

A amnésia proposital por parte dos cidadãos de bem a respeito da adesão ao nazismo de muitos oficiais pode nos parecer absurda, mas foi o que de fato ocorreu, como explica Guterman:

“Nesse contexto, o Holocausto passou a ser descrito quase como uma extravagância, fruto unicamente da mente criminosa de Hitler e de seus sequazes próximos, numa tentativa pouco sutil de isentar todos os demais de responsabilidade. Esse conveniente acordo tácito para aplacar consciências permitiu que muitos nazistas reconstruíssem suas biografias depois da guerra e, já reintegrados à sociedade, ajudassem a circunscrever o Holocausto ao cantinho das curiosidades da Segunda Guerra – como se o genocídio dos judeus não tivesse tido a participação de grande parte dos alemães e a colaboração de quase toda a Europa. Estava aberto o caminho para a impunidade de terríveis criminosos de guerra, vergonha da qual o mundo jamais se recuperou.”

Por isso, um (ex)-integrante do governo brasileiro disparar frases nazistas em um vídeo oficial, em pleno 2020, é no mínimo vergonhoso (para não dizer coisa pior). A impunidade para essa situação absurda não pode ser permitida. Principalmente porque a saída dele do governo não foi pelo projeto de aplicar ideais nacionalistas à Arte (uma das características de governos fascistas – vale lembrar) mas pela repercussão negativa ao plagiar trechos do discurso de Goebbels, o famigerado ministro da Propaganda de Hitler. Não houvesse pressão, Bolsonaro certamente teria mantido Alvim no cargo, já que antes havia elogiado sua postura à frente da secretaria.

Um famoso ditado alemão, bastante lembrado nas redes sociais nesses últimos dias, precisa ser compreendida pelos seguidores mais fervorosos de Bolsonaro:

“Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa.”

Igor Natusch

As duas pontes incendiadas de Roberto Alvim

Igor Natusch
23 de janeiro de 2020

Assisti, no começo desta semana, um trecho em vídeo de uma entrevista do agora ex-secretário da Cultura Roberto Alvim ao Terça Livre. Não é algo que eu assistiria normalmente, pois costumo manter meu consumo de jornalismo limitado a fontes bem menos lamentáveis, mas passou pela linha do tempo do Twitter e, dado aos últimos acontecimentos (vamos, eu sei que você não esteve em Marte no final da semana passada), achei válido assistir.

No vídeo (que, deduzo eu, era bem anterior à situação envolvendo Goebbels, Wagner, a Cruz de Lorena etc), Alvim lamenta uma suposta perseguição esquerdista contra ele. Desde sua conversão, ele teria virado um proscrito, cuspido fora por seus pares. E conclui: ao sair do governo (o que, então, era só uma hipótese), teria que ir pro interior criar galinhas, pois não teria emprego em um ambiente teatral contaminado pelos esquerdopatas.

Temo que esteja absolutamente certo. De fato, a sua carreira artística muito provavelmente está encerrada. E não acho nada errado que seja assim.

Tenho dito muitas vezes, e vou repetir: as coisas precisam voltar a ter consequências.

Antes da conversão ao catolicismo, motivada pela cura de um tumor no intestino, Roberto Alvim era um dramaturgo e diretor respeitado, embora talvez não tão consagrado quanto desejava. Seu trabalho ousado e cheio de riscos, porém, tinha garantido amigos importantes (Chico Buarque e Vladimir  Safatle, citando apenas dois exemplos) e um respeito generalizado dentro do cenário teatral brasileiro.

Evidente que virar devoto de Jesus, por si só, não transforma ninguém em maldito na arte brasileira: o problema é se aproximar da ala mais reacionária  dessa devoção, e mais ainda de uma figura como Jair Bolsonaro, que declarou guerra aberta a qualquer tipo de arte livre. Nada mais natural do que um artista querer distância de reacionários, que nutrem ódio visceral pelo que a arte livre é representa – e passar a ver alguém que se abraça a esse pessoal como uma pessoa, no mínimo, pouco digna de confiança.

Essa é a primeira ponte incendiada. A segunda ele queimou junto a seus novos e transitórios amigos, quando o desastrado vídeo da semana passada despertou ultraje generalizado.

A mão pesada em Goebbels e Wagner não me parece desprovida de significado: para alguém sem padrinhos importantes e que não tem currículo político anterior, reforçar aspectos ideológicos é uma forma de tentar se manter no poder. Talvez ele encarasse seu jogo de cena como uma demonstração de força e convicção política, ou que promover uma “arte genuinamente brasileira” garantiria uma adesão capaz de consolidar sua posição. Seja como for, o rebote foi mais forte do que o esperado – suficiente para comprometer sua efêmera ascensão entre os reacionários com quem escolheu andar. Foi cuspido fora, sem constrangimento. E como poderia esperar outra coisa?

Essa gente não sabe o que é lealdade. Para eles, Roberto Alvim é carne morta, não serve para mais nada.

Rapidamente surgirão outros memes ambulantes, outras figuras dispostas a cumprir o papel de ex-esquerdopatas na legitimação de uma agenda de emburrecimento e destruição. E ao ex-secretário, caído em desgraça pela falta de sutileza, restará o galinheiro, torcendo para que os ovos caipiras se valorizem no mercado.

Não é questão de excesso ou falta de piedade. É dever urgente de todos nós, que resistimos à enxurrada de insensatez vulgar e autoritária que ameaça nos carregar, permitir e contribuir para que as consequências existam, sejam visíveis e se façam sentir. E Roberto Alvim é um exemplo muito adequado da necessidade de colher os frutos – o que não tem absolutamente nada a ver com vingança. Se quiser voltar para o lado de cá, é preciso reconstruir as pontes incendiadas – e a nenhum de nós cabe pegar o martelo e os pregos, juntar as madeiras e as cordas para a reconstrução.

Construir o que está sendo posto em chamas levou muito, muito tempo; ninguém pode pretender carregar as tochas como se fosse apenas detalhe, como se nada fosse.

Foto: Reprodução/YouTube