Todo Dia Oito #8 Aracy, a justa que adorava batom vermelho
Geórgia Santos
8 de outubro de 2021
Todo Dia Oito. Todo dia oito, uma história, todo dia oito, uma mulher
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No oitavo episódio do podcast, Aracy, a justa que adorava batom vermelho. Ela conviveu com uma das grandes injustiças enfrentadas por mulheres casadas com homens notáveis. Viver à sombra do marido. Ser a “esposa de alguém”. Aracy Guimarães Rosa é a Ara a quem é dedicada uma das maiores obras da literatura brasileira. Mas como uma certa ironia do destino, para uma mulher que tanto enfrentou injustiças, depois de viúva, ela foi reconhecida como uma Justa Entre As Nações.
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Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos
Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha
Locução: Raquel Grabauska, como Aracy Carvalho Guimarães Rosa
Apresentação e edição: Geórgia Santos
Trilha sonora original: Gustavo Finkler
Os áudios com a vozes de Eduardo Tess, Margarethe Levy e Bella Herson foram extraídos do documentário “Esse viver ninguém me tira”, de Caco Ciocler. Além dos livros citados ao longo do episódio e do documentário, para a pesquisa sobre a vida de Aracy foram consultados artigos de Daniel Reizinger Bonomo , Tânia Biazoli e Neuma Cavalcante, e reportagem da jornalista Eliane Brum publicada na revista Época em 2008. Além da trilha original, ouve-se trecho de Casinha Feliz, de Gilberto Gil, e o tema de abertura da minissérie da Globo, Grande Sertão: Veredas.
Todo Dia Oito #3 Olga, a revolucionária que jamais perdeu a ternura
Geórgia Santos
8 de maio de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No terceiro episódio do podcast, Olga, a revolucionária que jamais perdeu a ternura. Ou, na letra batida a máquina dos arquivos da Gestapo, a polícia secreta do Terceiro Reich,uma mulher plenamente judia. Uma comunista ousada e astuta. Uma comunista convicta que casou com Luis Carlos Prestes e foi entregue a Adolf Hitler. Olga Benário poderia ter sido apenas uma alemã que viveu no Brasil.Mas quando Getúlio Vargas a expulsa daqui, ela se torna nossa.
O título do livro de Marcos Guterman, Nazistas Entre Nós, pode ser usado como um alerta para o episódio do discurso com inspiração nazista envolvendo o agora ex-secretário especial da Cultura. Nazistas já foram tolerados por cidadãos de bem, como aponta a obra do jornalista e historiador que tem como subtítulo A Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Guerra. Por isso que mesmo com a saída de Roberto Alvim do governo, precisamos estar alertas e ter medo, parafraseando a nova secretária especial da Cultura. Regina Duarte sorri mais e é mais ponderada, pois defende que não haja radicalismos na política. Por outro lado, minimiza as falas racistas, machistas e homofóbicas do presidente da República, o que não deixa de ser uma postura radical em pleno século 21. Com isso, não estou afirmando que a eterna namoradinha do Brasil é nazista, mas uma conservadora que, por temer a esquerda e ter convicção na direita, posiciona-se publicamente dizendo considerar ”doce” o comportamento truculento de Bolsonaro, um “homem dos anos 50”.
Voltando ao discurso de origem nazista propagado por Alvim, não podemos esquecer dos horrores provocados pelo regime liderado por Adolf Hitler. Na apresentação do livro Nazistas Entre Nós, Marcos Guterman questiona como muitos ex-nazistas ficaram livres após o fim da II Guerra Mundial:
“O Holocausto – o massacre industrial de milhões de judeus e de integrantes de outras minorias durante a Segunda Guerra Mundial – foi o ponto mais baixo a que a humanidade já chegou em sua história. E foi graças a esse inominável crime que os nazistas ganharam um lugar especial entre os maiores vilões de todos os tempos. Sendo assim, como explicar que muitos desses vilões tenham conseguido, depois da guerra, encontrar um lugar entre nós, isto é, desfrutar da vida em liberdade como se nada tivessem feito, como se fossem parte da mesma sociedade civilizada que eles tanto se esforçaram em destruir? […] Isso só foi possível porque, aos olhos de muita gente, os principais líderes nazistas já haviam sido punidos e a vida tinha de continuar. Afinal, a guerra já era ‘coisa do passado’ – e era no passado que o regime assassino de Adolf Hitler e seus inúmeros cúmplices tinham de ficar.”
A amnésia proposital por parte dos cidadãos de bem a respeito da adesão ao nazismo de muitos oficiais pode nos parecer absurda, mas foi o que de fato ocorreu, como explica Guterman:
“Nesse contexto, o Holocausto passou a ser descrito quase como uma extravagância, fruto unicamente da mente criminosa de Hitler e de seus sequazes próximos, numa tentativa pouco sutil de isentar todos os demais de responsabilidade. Esse conveniente acordo tácito para aplacar consciências permitiu que muitos nazistas reconstruíssem suas biografias depois da guerra e, já reintegrados à sociedade, ajudassem a circunscrever o Holocausto ao cantinho das curiosidades da Segunda Guerra – como se o genocídio dos judeus não tivesse tido a participação de grande parte dos alemães e a colaboração de quase toda a Europa. Estava aberto o caminho para a impunidade de terríveis criminosos de guerra, vergonha da qual o mundo jamais se recuperou.”
Por isso, um (ex)-integrante do governo brasileiro disparar frases nazistas em um vídeo oficial, em pleno 2020, é no mínimo vergonhoso (para não dizer coisa pior). A impunidade para essa situação absurda não pode ser permitida. Principalmente porque a saída dele do governo não foi pelo projeto de aplicar ideais nacionalistas à Arte (uma das características de governos fascistas – vale lembrar) mas pela repercussão negativa ao plagiar trechos do discurso de Goebbels, o famigerado ministro da Propaganda de Hitler. Não houvesse pressão, Bolsonaro certamente teria mantido Alvim no cargo, já que antes havia elogiado sua postura à frente da secretaria.
Um famoso ditado alemão, bastante lembrado nas redes sociais nesses últimos dias, precisa ser compreendida pelos seguidores mais fervorosos de Bolsonaro:
“Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa.”
Assisti, no começo desta semana, um trecho em vídeo de uma entrevista do agora ex-secretário da Cultura Roberto Alvim ao Terça Livre. Não é algo que eu assistiria normalmente, pois costumo manter meu consumo de jornalismo limitado a fontes bem menos lamentáveis, mas passou pela linha do tempo do Twitter e, dado aos últimos acontecimentos (vamos, eu sei que você não esteve em Marte no final da semana passada), achei válido assistir.
No vídeo (que, deduzo eu, era bem anterior à situação envolvendo Goebbels, Wagner, a Cruz de Lorena etc), Alvim lamenta uma suposta perseguição esquerdista contra ele. Desde sua conversão, ele teria virado um proscrito, cuspido fora por seus pares. E conclui: ao sair do governo (o que, então, era só uma hipótese), teria que ir pro interior criar galinhas, pois não teria emprego em um ambiente teatral contaminado pelos esquerdopatas.
Temo que esteja absolutamente certo. De fato, a sua carreira artística muito provavelmente está encerrada. E não acho nada errado que seja assim.
Tenho dito muitas vezes, e vou repetir: as coisas precisam voltar a ter consequências.
Antes da conversão ao catolicismo, motivada pela cura de um tumor no intestino, Roberto Alvim era um dramaturgo e diretor respeitado, embora talvez não tão consagrado quanto desejava. Seu trabalho ousado e cheio de riscos, porém, tinha garantido amigos importantes (Chico Buarque e Vladimir Safatle, citando apenas dois exemplos) e um respeito generalizado dentro do cenário teatral brasileiro.
Evidente que virar devoto de Jesus, por si só, não transforma ninguém em maldito na arte brasileira: o problema é se aproximar da ala mais reacionária dessa devoção, e mais ainda de uma figura como Jair Bolsonaro, que declarou guerra aberta a qualquer tipo de arte livre. Nada mais natural do que um artista querer distância de reacionários, que nutrem ódio visceral pelo que a arte livre é representa – e passar a ver alguém que se abraça a esse pessoal como uma pessoa, no mínimo, pouco digna de confiança.
Essa é a primeira ponte incendiada. A segunda ele queimou junto a seus novos e transitórios amigos, quando o desastrado vídeo da semana passada despertou ultraje generalizado.
A mão pesada em Goebbels e Wagner não me parece desprovida de significado: para alguém sem padrinhos importantes e que não tem currículo político anterior, reforçar aspectos ideológicos é uma forma de tentar se manter no poder. Talvez ele encarasse seu jogo de cena como uma demonstração de força e convicção política, ou que promover uma “arte genuinamente brasileira” garantiria uma adesão capaz de consolidar sua posição. Seja como for, o rebote foi mais forte do que o esperado – suficiente para comprometer sua efêmera ascensão entre os reacionários com quem escolheu andar. Foi cuspido fora, sem constrangimento. E como poderia esperar outra coisa?
Essa gente não sabe o que é lealdade. Para eles, Roberto Alvim é carne morta, não serve para mais nada.
Rapidamente surgirão outros memes ambulantes, outras figuras dispostas a cumprir o papel de ex-esquerdopatas na legitimação de uma agenda de emburrecimento e destruição. E ao ex-secretário, caído em desgraça pela falta de sutileza, restará o galinheiro, torcendo para que os ovos caipiras se valorizem no mercado.
Não é questão de excesso ou falta de piedade. É dever urgente de todos nós, que resistimos à enxurrada de insensatez vulgar e autoritária que ameaça nos carregar, permitir e contribuir para que as consequências existam, sejam visíveis e se façam sentir. E Roberto Alvim é um exemplo muito adequado da necessidade de colher os frutos – o que não tem absolutamente nada a ver com vingança. Se quiser voltar para o lado de cá, é preciso reconstruir as pontes incendiadas – e a nenhum de nós cabe pegar o martelo e os pregos, juntar as madeiras e as cordas para a reconstrução.
Construir o que está sendo posto em chamas levou muito, muito tempo; ninguém pode pretender carregar as tochas como se fosse apenas detalhe, como se nada fosse.
OUÇA Bendita Sois Vós #43 O nazismo no governo Bolsonaro
Geórgia Santos
20 de janeiro de 2020
O governo Bolsonaro começou o ano de 2020 surpreendendo um total de zero pessoas com ofensas a jornalistas, uso indevido da máquina pública na Secretaria de Comunicação e erros inadmissíveis com as notas do Enem, comprometendo o futuro de milhares de jovens. Mas na última semana, o agora ex-secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, ultrapassou os limites.
Alvim publicou um vídeo em que aparece defendendo a criação de uma nova identidade para a arte no Brasil. Ao fundo, Wagner e a obra favorita de Adolf Hitler. A estética é idêntica à adotada por regimes totalitários. E o discurso é um plágio de Joseph Goebbels, Ministro da propaganda de Hitler.
Roberto Alvim foi demitido quando o plágio veio à tona. Mas o discurso em si não foi questionado. Aliás, o texto em si havia sido elogiado. E até agora, não sabemos se o projeto absurdo para a proposta de reconstrução da cultura no brasil será implementado ou não. Até porque ficou claro, até aqui, que o nazismo incomoda mais pelo termo do que pelo que representa. Tanto é assim que agora, nas redes sociais, há quem diga que Alvim foi vítima de uma trama da esquerda, que colocou o trecho de Goebbels de propósito para derrubá-lo. Embora toda a construção estética do vídeo deixa claro que tudo foi pensado com muito cuidado.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol.
Precisamos falar sobre o avanço do reacionarismo no Brasil e, por mais pífia que tenha sido em termos de adesão, sobre a manifestação de integralistas saudando as ideias ultraconservadoras de Plínio Salgado, realizada há poucos dias em São Paulo. É importante, em primeiro lugar, ressaltar as semelhanças da Ação Integralista Brasileira com o nazismo e o fascismo. Para isso, recorro à análise do renomado crítico literário Antonio Candido, no prefácio da primeira edição do livro O Integralismo de Plinio Salgado, de autoria de J. Chasin, lançado em 1978, apenas três anos após a morte do controverso líder político. Candido não tem dúvidas da proximidade ideológica entre o movimento brasileiro e o extremismo nazifascista:
“Com efeito assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade. No principal livro que escreveu como definição do movimento Plinio Salgado deixa tudo isso evidente. Ataca a liberal-democracia e diz que o integralismo será a democracia verdadeira. Reconhece afinidades com o socialismo, mas vê nele o perigo máximo contra a sociedade, negando-lhe o caráter revolucionário que, alega, caberia ao integralismo (exatamente como diziam Mussolini e Hitler sobre os seus movimentos).”
Antonio Candido prossegue, nessa introdução, com a comparação do integralismo com o nazifascismo e minimiza as peculiaridades brasileiras do movimento integralista, que seriam mais na forma do que no conteúdo ideológico:
“De fato, a Ação Integralista·Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme; nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaros), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de flechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado ‘Anauê’. Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral.”
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Passado modernista
Candido cita o nacionalismo exacerbado dos integralistas e considero importante ressaltar o passado literário de Plínio Salgado. Antes de desenvolver seu ideário político conservador, ele foi um poeta parnasiano. Porém, aos poucos, foi se identificando com a estética do modernismo e chegou a lançar um manifesto modernista em 1927 chamado A Anta e o Curupira. No mesmo ano, lança O curupira e o carão, em colaboração com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo. Em 1926, já havia publicado o romance O Estrangeiro, considerado o primeiro do gênero de estética modernista. Era um desafeto de Oswald de Andrade dentro do movimento modernista, pelas ligações de Oswald com o comunismo e ideias libertárias. Aparentemente, Plínio Salgado apropriou-se de alguns elementos do modernismo, como a exaltação da cultura nacional, para criar seu ideário político. Em 1933, lança o livro O Que é O Integralismo. No ano seguinte, é alçado a chefe nacional do partido Ação Integralista Brasileira.
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Ligações com o nazifascismo
Para quem ainda duvida da proximidade das ideias de Plinio Salgado com o nazismo, é bom destacar que nesse período dos anos 30 a AIB chegou a dividir sedes com o Partido Nazista em cidades catarinenses e recebia dinheiro do governo fascista italiano. Era um movimento majoritariamente branco e classe média, composto principalmente por descendentes italianos e germânicos. Apesar dos líderes integralistas dessa época publicamente rejeitarem o racismo e antissemitismo, há registro de espancamentos de negros por parte de integrantes da AIB. Um dos casos mais emblemáticos de violência racial ocorreu após uma manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, em 1936, quando militantes agrediram centenas de negros.
Os integralistas foram freados pela ditadura de Getúlio Vargas, que extinguiu os partidos políticos em 1937. Plínio Salgado acabou sendo exilado em 1939 e só retornou ao Brasil em 1945, com o fim do Estado Novo. Então, fundou o Partido de Representação Popular (PRP), procurando esconder o passado fascista e apresentando as ideias integralistas como alinhadas à democracia. Concorreu à presidência em 1955, tendo obtido 8% do total de votos. De 1958 até 1964, é deputado federal pelo PRP. Antes disso, em 1962 é um dos oradores da Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, contra o presidente João Goulart. Plínio Salgado apoiou o regime militar e, com a introdução do sistema bipartidário, acaba integrando-se à Arena, partido de direita, onde obtém mais dois mandatos como deputado federal, antes de sair da vida pública.
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Respingos no presente
Percebemos então que os elementos ultraconservadores do integralismo estão mais próximos do que podemos imaginar da nossa política atual, já que os resquícios da ditadura militar ainda reverberam no Brasil reacionário do século 21. Por isso, precisamos ficar atentos a mais um partido conservador tentando ingressar na política brasileira atual. A Ação Integralista Brasileira, que em nada nega as ideias de Plinio Salgado, pretende participar das eleições de 2020. Será que as ligações históricas com o nazismo não deveriam ser razão suficiente para barrar a restauração desse partido?
Para fechar com uma inspiração literária, resgato o trecho de uma crônica de 1943 de Jorge Amado, publicado no livro póstumo A Hora da Guerra. No texto, o escritor baiano, um comunista declarado, demonstra sua aversão ao integralismo a partir de um incidente registrado na época no Nordeste brasileiro:
“No Ceará encontraram, enterradas num buraco, camisas e insígnias integralistas. Enterradas, porém não destruídas. O dono de tais enfeites verdes estava evidentemente embaraçado, sem saber o que fazer deles no momento. Por outro lado não estava disposto a queimá-los certo de que camisas e insígnias ainda viriam a ter utilidade. Eis aí um exemplo claro, a atitude integralista no Brasil, a atitude fascista nos países onde se desenvolve a guerra contra o Eixo: esconder as camisas e insígnias, guardá-las bem guardadas, esperando o momento em que possam voltar a reluzi-las ao sol meridiano. Esse acontecimento do Ceará não é uma coisa isolada é apenas o símbolo de um fenômeno mundial.”
No final dessa crônica, Jorge Amado defende a ideia de que as camisas verdes integralistas apodrecerão nos esconderijos, pois nunca mais serão usadas. Imaginem o desgosto do escritor, falecido em 2001, se ficasse sabendo de integralistas nas ruas do Brasil novamente. É pelo nosso futuro e pela memória de quem lutou contra os conservadores desde o início do século 20 é que bradamos:
Fascistas, não passarão!
Sugestão de leitura antifascista:A Revoada dos Galinhas Verdes, de Fúlvio Abramo, que mostra a batalha entre integralistas e esquerdas na São Paulo da década de 1930.
Um fim de tarde qualquer em um bairro brasileiro de classe média
Igor Natusch
18 de dezembro de 2019
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– Eu estava pensando…
– Pelo amor de Deus, amor, não fale isso em voz alta!
– Sim, desculpe – baixou o tom de voz. – Eu estive pensando, sabe.
– Mas como assim? Desde quando você pensa?
– Ah, não faz muito tempo. Umas duas semanas, talvez. Três, no máximo.
– E por que não me disse nada antes?
– Acho que tive um pouco de… Receio – a voz, além de quase cochichada, era cautelosa, escolhendo as palavras. – Nunca se sabe como os outros vão reagir, sabe como é.
– Mas de mim você não precisa ter medo.
– Sim, eu sei. Mas, logo que comecei a pensar, eu fiquei em dúvida. E preferi esperar um pouco. Entende? Vai que é só uma fase. Vai que, no dia seguinte, eu parasse de pensar.
– É, faz sentido. Mas, pelo jeito, você segue pensando.
– Isso. E não está passando, sabe. Pelo contrário. Estou pensando cada vez mais.
– Você precisa tomar cuidado.
– Eu sei, amor. Eu sei. Mas tento ser discreto. Penso só quando estou sozinho. Com o celular desligado.
– Mas desligar o celular é proibido! Não brinque assim – Chegou a gaguejar de preocupação. – Vai que… Eles acreditam.
– Desculpe, amor. Você tem toda a razão. Foi uma brincadeira fora de hora. Me perdoe.
Seu aparelho celular estava no bolso. Logo após falar, ele voltou os olhos para a esposa e disse, apenas movendo os lábios:
“Eu espero descarregar a bateria.”
Ela entendeu e, um pouco alarmada, fez que sim com a cabeça.
– Mas enfim, a verdade é que ando pensando – recomeçou ele. – Ainda não é crime, eu sei, mas as leis mudam tão rápido! Ando um pouco preocupado com isso. Talvez eu precise de tratamento.
– E como é pensar? – perguntou ela, em um impulso. – Eu… Não lembro muito bem como era.
– É esquisito. Você pega as frases e, tipo, junta elas na cabeça. E aí algumas frases não fazem sentido juntas. Mas outras fazem, e quando elas se juntam surgem… Outras coisas. Não sei explicar direito.
– Isso parece bem perigoso.
– Eu diria que é mais cansativo, sabe. Eu começo a pensar e, logo em seguida, fico exausto e preciso parar. Deve ser falta de prática.
– Não, estou falando sério. É perigoso. Como ficam as informações que recebemos todos os dias no celular, se a gente começa a fazer… Isso daí que você faz? Como ficam as nossas certezas? Daqui a pouco vão achar que bandido bom é bandido vivo, ou que o nazismo… – Fez o sinal da cruz. – Não é de esquerda!
– Pare com isso! – Agora era ele quem parecia alarmado. – Não pensei nada disso. Não fique colocando ideologias na minha cabeça! Inclusive, olhe como está bonita a minha suástica – Apontou para o bracelete nazista, bastante vistoso, que ostentava no braço esquerdo.
– Sim, é realmente linda – concordou ela.
– Mas… Esse é o problema de pensar – retomou ele, novamente cauteloso. – Porque, se o nazismo é de esquerda, e a esquerda é a personificação de todo o mal… Então por que nós, que somos da direita divina, somos encorajados a usar um bracelete nazista? Ele não é um símbolo dos nossos inimigos? De tudo que a gente detesta?
– Credo – quase gritou ela, enquanto espantava ideias com a mão. – Não fale bobagem. O nazismo é de esquerda, as suásticas são uma forma de humilhar os esquerdinhas. Está tudo claro. Não comece a inventar moda!
– Você tem razão – assentiu, respirando fundo.
O silêncio foi longo. Do lado de lá da janela, começava a surgir entre as nuvens um bonito pôr-do-sol.
– Amor?
– Sim?
– No que você estava pensando?
– Deixe para lá – sua voz era pensativa e, ao mesmo tempo, receosa.
– Ah, não faça assim. Você pode confiar em mim.
– Posso?
– Pode.
– Bem, então… Eu estava pensando e, pela lógica… A Terra não pode ser plana.
Virou lugar comum falar sobre o ódio disseminado nas redes sociais, principalmente entre pessoas com visões políticas (e de mundo) opostas. Como se a culpa fosse da tecnologia e não do momento tenso que vivemos no Brasil. Mas em meio a comentários intolerantes, trocas de ofensas e robôs com mensagens prontas, muitas vezes achamos conteúdo valioso e interessante para reflexão e aprendizado.
Se não fosse por uma postagem compartilhada por diversas pessoas na minha rede no facebook talvez eu não ficasse sabendo sobre a existência de Sophie Scholl, uma das poucas alemãs a combater ativamente o nazismo e a ser morta em função disso.
O episódio assusta pela singeleza dos atos praticados por um grupo de universitários: eles apenas distribuíram panfletos contra o governo de Hitler. A trajetória do movimento de resistência Rosa Branca é contada por Inge, irmã de Sophie e de Hans, irmão das duas que também foi executado pelo regime nazista, no livro A Rosa Branca, lançado apenas em 2014 no Brasil.
Na sexta edição dos manifestos, Sophie foi detida após atirar os panfletos de cima de um prédio da Universidade de Munique. Saiu do campus universitário presa pela Gestapo, em companhia de seu irmão. Em um julgamento-relâmpago, Sophie e os outros integrantes do Rosa Branca foram condenados à morte e guilhotinados.
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A ousadia de Sophie custou-lhe a vida, assim como acontece com diversas mulheres ao redor do mundo ainda hoje
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E a verdade é que, em plena década de 1940, em uma sociedade entorpecida pelo totalitarismo, a maior parte dos alemães preferia mesmo não enxergar os horrores cometidos pelo nazismo. Um dos panfletos, reproduzido no livro escrito por Inge Scholl, publicado originalmente em 1952, parece-me bem atual:
“Não há nada mais indigno para um povo civilizado do que se deixar ‘governar’ sem resistência por uma corja de déspotas irresponsáveis, movida por instintos obscuros”.
Por isso, precisamos seguir na resistência. Se na época do nazismo eram necessários mimeógrafos e panfletos, hoje podemos usar a Internet com esse objetivo. Não precisamos de ódio. Precisamos ter paciência para abrir os olhos de quem prefere ver pureza e boas intenções no bolsonarismo.
(Quase) toda a nudez será castigada nas redes sociais
Flávia Cunha
3 de outubro de 2017
A arte nunca esteve tão em evidência. Pena que o motivo seja o conservadorismo, que voltou com força total, com a defesa de que exposições de arte e performances não apresentem transgressões, como a nudez. No país do Carnaval, do fio dental nas praias e dos filmes pornô conhecidos mundo afora, de uma hora para outra parece que ficar pelado em cena ou retratar o sexo nas artes visuais tornou-se um tabu.
Em se tratando de literatura, é bom não esquecer a queima de livros em praça pública em cidades universitárias da Alemanha nazista. Capitaneada pelo governo e com o apoio de jovens (alô, MBL!!), o objetivo era buscar obras que fossem consideradas impuras, decadentes ou degeneradas. Tudo isso, claro, de acordo com o juízo de valor do regime nazista da época.
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Perceberam o perigo que existe na patrulha ideológica da atualidade?
Quem vai considerar o que é arte e o que é “sem vergonhice”?
Qual o critério?
E, principalmente, quem vai estudar a sério o assunto antes de destilar ódio e histeria nas redes sociais?
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No Brasil, Nelson Rodrigues foi um dos que sofreu duras críticas e censura por suas obras, principalmente ao escrever para o teatro. O curioso é ele não era de esquerda nem libertário, autodenominava-se reacionário e chegou a defender o regime militar. Porém, a criação de enredos com questionamento à hipocrisia das famílias tradicionais e recorrentes personagens levados ao incesto, fizeram com que os conservadores ficassem de cabelo em pé com Nelson, classificando-o como um autor maldito.
A terceira peça teatral rodrigueana, Álbum de Família, foi a primeira dele a ser proibida nacionalmente. O espetáculo Senhora dos Afogados também foi censurado e depois liberado. Apenas em São Paulo seguiu sendo proibida na época, por pressão da Liga das Senhoras Católicas. O mesmo fato ocorreu com Perdoa-me por me traíres. Essa liga devia ser muito forte em São Paulo nesse período, pelo jeito.
A reação de Nelson? Aproveitar a publicidade gerada pela censura para conseguir mais público depois da liberação. É o que podemos ver nesse cartaz da peça Anjo Negro.
Já Toda nudez será castigada gerou polêmica foi no cinema. O enredo criado por Nelson Rodrigues no filme dirigido por Arnaldo Jabor foi considerado imoral pela censura. Três meses após sua liberação, os rolos da película foram apreendidos em todo o território nacional. Na mesma época, o longa-metragem foi premiado no Festival Internacional de Berlim, sendo então permitida sua exibição nas salas de cinema, com muitos cortes. Hoje, é considerado um dos melhores filmes brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema.
Moral da história? Os cidadãos de bem têm uma certa miopia para avaliar o que é Arte ou não. Existem longos debates no meio acadêmico justamente com essa questão. Nas minhas incursões no mundo das Letras, participei de muitas aulas onde era avaliado o que faz um texto ser considerado literário. E, só para constar, Nelson Rodrigues faz parte do cânone literário, mesmo tendo sido considerado um “imoral” lá nos idos de 1960/1970.
A tragédia do fim de semana em Charlottesville traz um alerta sobre o avanço do neonazismo e dos supremacistas brancos nos Estados Unidos. Muito já se falou sobre o assunto na mídia, mas ao pensar em que livro poderia trazer uma reflexão sobre o assunto, pensei em pesquisar sobre a obra de Nietzsche, erroneamente associado ao nazismo e ao anti-semitismo.
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Em sua obra Para Além do Bem e do Mal, o filósofo alemão demonstra não ter preconceito contra os judeus:
“É certo que os judeus [por serem a raça mais forte e mais rija que vive na Europa], se quisessem – ou, se fossem obrigados a tal, como os anti-semitas parecem querer -, poderiam desde já ter a preponderância, mais ainda, falando de modo completamente literal, o domínio da Europa; é também certo que não trabalham nem fazem projetos nesse sentido. Ao contrário, o que pretendem e querem, no momento, até com certa insistência, é ser absorvidos e integrados à Europa, pela Europa; desejam se fixar seja onde for e ser admitidos, respeitados e dar um fim à vida nômade, ao “judeu errante”
Já no livro Ecce Homo, Nietzsche, posteriormente reverenciado por Hitler, demonstra seu desprezo pelos próprios alemães.
O filósofo, que morreu no ano de 1900, foi associado postumamente ao nazismo em razão de sua irmã, Elizabeth Foster-Nietzsche, ter utilizado e deturpado suas obras em favor da ideologia de extrema-direita. Ela foi a responsável por uma compilação chamada Der Wille zur Macht (Vontade de Potência) e ajudou a construir essa associação equivocada de Nietzsche com o regime criado por Hitler.
Quem dera os extremistas da atualidade entendessem que propagar o ódio, o racismo e a intolerância não passam da mais pura estupidez e a prova de que o conceito de Super-Homemcriado pela filosofia nada tem a ver com esse tipo de comportamento (para dizer o mínimo) reprovável.