Voos Literários

Livros sem taxação: um dos legados de Jorge Amado

Flávia Cunha
22 de agosto de 2020

A absurda proposta de taxação de livros no Brasil, sob a alegação de que tratam-se de produtos para a elite, trouxe à tona o histórico da isenção de impostos para o setor livreiro. Pois foi durante a constituinte de 1946, que um jovem deputado, já famoso como escritor, apresentou uma emenda sobre o assunto. Trata-se de Jorge Amado, que elegeu-se pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). 

ROMANCISTA DO POVO

O escritor recordou sua curta mas marcante trajetória política em Navegação de Cabotagem, livro de memórias publicado em 1992:

“Em janeiro de 1946 tomei posse na Câmara Federal de Deputados da cadeira para a qual fora designado pelos votos dos eleitores de São Paulo. Assumira com Prestes o compromisso de exercer o mandato durante três meses, voltando em seguida a meu trabalho de escritor. Fiquei dois anos, até que, num dia de janeiro de 1948, fomos expulsos do Parlamento, eu e meus companheiros de bancada.”

Outra emenda de Jorge Amado que manteve-se na Constituição de 1988 foi a liberdade de culto religioso, outro assunto que vem sendo colocado em risco com a ascensão da extrema-direita ao poder. 

Para saber mais sobre a trajetória de Jorge como político, acesse aqui.

UM FUTURO COM MENOS LIVROS

O legado de Jorge Amado em relação à isenção tributária dos livros permaneceu intacto durante décadas, tendo sido respeitado inclusive durante os longos anos de ditadura militar. O que parece estar em curso pela proposta do ministro da economia, Paulo Guedes, é um projeto de país onde o poder de escolha sobre a leitura fica restrito à elite. Já os mais pobres, merecem apenas livros doados pelo governo. 

Entre as perguntas que ficam a respeito dos frágeis argumentos para a taxação de livros (e a manutenção da isenção sobre outros produtos e bens de luxo), destaco duas: 

  1. Quais seriam os critérios para a escolha das obras que seriam doadas aos que não têm dinheiro para a compra? 
  2. Haveria uma curadoria disposta a escolher autores negros, periféricos, mulheres e LGBTQA+?

Além disso, vivemos um momento de crise no setor editorial e livreiro. A taxação poderia significar o fim de uma cadeia produtiva já fragilizada, em um país que têm, historicamente, baixos índices de leitura. Em um cenário desolador como esse, não podemos permitir mais uma tentativa de fragilizar (ainda mais) a Educação e o acesso à leitura no Brasil.

#defendaolivro
#naoataxacaodelivros

Imagens: Reprodução/Internet

Voos Literários

Manifesto antifascista

Flávia Cunha
20 de dezembro de 2019

Precisamos falar sobre o avanço do reacionarismo no Brasil e, por mais pífia que tenha sido em termos de adesão, sobre a manifestação de integralistas saudando as ideias ultraconservadoras de Plínio Salgado, realizada há poucos dias em São Paulo. É importante, em primeiro lugar, ressaltar as semelhanças da Ação Integralista Brasileira com o nazismo e o fascismo. Para isso, recorro à análise do renomado crítico literário Antonio Candido, no prefácio da primeira edição do livro O Integralismo de Plinio Salgado, de autoria de J. Chasin, lançado em 1978, apenas três anos após a morte do controverso líder político. Candido não tem dúvidas da proximidade ideológica entre o movimento brasileiro e o extremismo nazifascista:

“Com efeito assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade. No principal livro que escreveu como definição do movimento Plinio Salgado deixa tudo isso evidente. Ataca a liberal-democracia e diz que o integralismo será a democracia verdadeira. Reconhece afinidades com o socialismo, mas vê nele o perigo máximo contra a sociedade, negando-lhe o caráter revolucionário que, alega, caberia ao integralismo (exatamente como diziam Mussolini e Hitler sobre os seus movimentos).” 

Antonio Candido prossegue, nessa introdução, com a comparação do integralismo com o nazifascismo e minimiza as peculiaridades brasileiras do movimento integralista, que seriam mais na forma do que no conteúdo ideológico:

“De fato, a Ação Integralista·Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme; nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaros), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de flechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado ‘Anauê’. Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral.”

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Passado modernista

Candido cita o nacionalismo exacerbado dos integralistas e considero importante ressaltar o passado literário de Plínio Salgado. Antes de desenvolver seu ideário político conservador, ele foi um poeta parnasiano. Porém, aos poucos, foi se identificando com a estética do modernismo e chegou a lançar um manifesto modernista em 1927 chamado A Anta e o Curupira. No mesmo ano, lança O curupira e o carão, em colaboração com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo. Em 1926, já havia publicado o romance O Estrangeiro, considerado o primeiro do gênero de estética modernista.  Era um desafeto de Oswald  de Andrade dentro do movimento modernista, pelas ligações de Oswald com o comunismo e ideias libertárias. Aparentemente, Plínio Salgado apropriou-se de alguns elementos do modernismo, como a exaltação da cultura nacional, para criar seu ideário político. Em 1933, lança o livro O Que é O Integralismo. No ano seguinte, é alçado a chefe nacional do partido Ação Integralista Brasileira.

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Ligações com o  nazifascismo

Para quem ainda duvida da proximidade das ideias de Plinio Salgado com o nazismo, é bom destacar que nesse período dos anos 30 a AIB chegou a dividir sedes com o Partido Nazista em cidades catarinenses e recebia dinheiro do governo fascista italiano. Era um movimento majoritariamente branco e classe média, composto principalmente por descendentes italianos e germânicos. Apesar dos líderes integralistas dessa época publicamente rejeitarem o racismo e antissemitismo, há registro de espancamentos de negros por parte de integrantes da AIB. Um dos casos mais emblemáticos de violência racial ocorreu após uma manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, em 1936, quando militantes agrediram centenas de negros.

Os integralistas foram freados pela ditadura de Getúlio Vargas, que extinguiu os partidos políticos em 1937. Plínio Salgado acabou sendo exilado em 1939 e só retornou ao Brasil em 1945, com o fim do Estado Novo. Então, fundou o Partido de Representação Popular (PRP), procurando esconder o passado fascista e apresentando as ideias integralistas como alinhadas à democracia. Concorreu à presidência em 1955, tendo obtido 8% do total de votos. De 1958 até 1964, é deputado federal pelo PRP. Antes disso, em 1962 é um dos oradores da Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, contra o presidente João Goulart. Plínio Salgado apoiou o regime militar e, com a introdução do sistema bipartidário, acaba integrando-se à Arena, partido de direita, onde obtém mais dois mandatos como deputado federal, antes de sair da vida pública.

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Respingos no presente

Percebemos então que os elementos ultraconservadores do integralismo estão mais próximos do que podemos imaginar da nossa política atual, já que os resquícios da ditadura militar ainda reverberam no Brasil reacionário do século 21. Por isso, precisamos ficar atentos a mais um partido conservador tentando ingressar na política brasileira atual. A Ação Integralista Brasileira, que em nada nega as ideias de Plinio Salgado, pretende participar das eleições de 2020. Será que as ligações históricas com o nazismo não deveriam ser razão suficiente para barrar a restauração desse partido?  

Para fechar com uma inspiração literária, resgato o trecho de uma crônica de 1943 de Jorge Amado, publicado no livro póstumo A Hora da Guerra. No texto, o escritor baiano, um comunista declarado, demonstra sua aversão ao integralismo a partir de um incidente registrado na época no Nordeste brasileiro:

“No Ceará encontraram, enterradas num buraco, camisas e insígnias integralistas. Enterradas, porém não destruídas. O dono de tais enfeites verdes estava evidentemente embaraçado, sem saber o que fazer deles no momento. Por outro lado não estava disposto a queimá-los certo de que camisas e insígnias ainda viriam a ter utilidade. Eis aí um exemplo claro, a atitude integralista no Brasil, a atitude fascista nos países onde se desenvolve a guerra contra o Eixo: esconder as camisas e insígnias, guardá-las bem guardadas, esperando o momento em que possam voltar a reluzi-las ao sol meridiano. Esse acontecimento do Ceará não é uma coisa isolada é apenas o símbolo de um fenômeno mundial.”

No final dessa crônica, Jorge Amado defende a ideia de que as camisas verdes integralistas apodrecerão nos esconderijos, pois nunca mais serão usadas. Imaginem o desgosto do escritor, falecido em 2001, se ficasse sabendo de integralistas nas ruas do Brasil novamente. É pelo nosso futuro e pela memória de quem lutou contra os conservadores desde o início do século 20 é que bradamos:

Fascistas, não passarão!

Sugestão de leitura antifascista: A Revoada dos Galinhas Verdes, de Fúlvio Abramo, que mostra a batalha entre integralistas e esquerdas na São Paulo da década de 1930.

Imagem: Reprodução/Internet

 

Voos Literários

“Toma lá, da cá” (na política e na literatura)

Flávia Cunha
11 de julho de 2017

O que uma eleição fictícia na Academia Brasileira de Letras na década de 1940 tem a ver com o cenário político atual no Brasil? As tramóias de bastidores para conseguir obter resultados favoráveis.

O enredo do livro Farda, Fardão, Camisola de Dormir, de Jorge Amado, é uma crítica ao período do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Com a morte de um poeta libertário, abre-se a vaga na Academia. Forças conservadoras tentam alçar um coronel à vaga de Imortal. O trecho da obra revela as barganhas entre o militar em questão e um integrante do Judiciário para obter a vitória na eleição:

“Impossível candidato de maior prestígio, contando com o apoio das figuras mais poderosas do regime, com trânsito livre… Tão livre assim? Haverá quem queira discutir, torcer o nariz, argumentando com as posições políticas do candidato, mas nenhum irá além do resmungo, terminando todos por engolir a pílula e comparecer com o 29 voto. Eleição líquida e certa.

[…]

Ah! depois colher a merecida recompensa: a primeira vaga no Supremo Tribunal Federal, pois, como se sabe, uma mão lava a outra. Toma lá a Academia, coronel, dá cá o Supremo.

[…]

— Candidato único? Acha possível, querido amigo?”

Os elementos mostrados no diálogo ficcional criado por Jorge Amado podem ser comparados a diversos episódios recentes. Para ficar nos últimos acontecimentos, o que se pode dizer da troca de integrantes na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados para tentar garantir um resultado que favoreça Michel Temer?

Até o presidente da CCJ, Rodrigo Pacheco (PMDB), considerou a atitude questionável.

Aguardemos os próximos episódios da tragicomédia no Planalto Central. Sem deixar de lado o senso crítico, o jeito é rir. Para não chorar. De raiva.

Voos Literários

Tem ziriguidum na literatura brasileira

Flávia Cunha
28 de fevereiro de 2017

“Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça, onde o uísque correra farto à custa de um certo Moyses Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.”

Assim começa o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, do baiano Jorge Amado. Essa forma de apresentação de um dos personagens principais é considerada por especialistas em literatura uma das qualidades do livro. O leitor é levado imediatamente ao centro da trama e consegue visualizar como é Vadinho, com sua malandragem e boemia, por meio do relato da sua morte em plena manhã de Carnaval.

Não apenas pelo seu início, mas pelo encadeamento bem estruturado ao longo de quase 500 páginas (dependendo da edição), essa é uma das obras de maior sucesso de Jorge Amado, tendo obtido igual popularidade no cinema, teatro e televisão.

Conhecido por exalar brasilidade em seus textos, o escritor baiano lançou-se no gênero romance com outro livro que fala da festa de Momo: O País do Carnaval. A obra foi lançada em 1931, quando Jorge Amado tinha apenas 18 anos, e conta a história de um jovem que retorna ao Brasil depois de passar anos estudando na Europa. Filho de um rico produtor de cacau, o protagonista tem uma postura crítica em relação ao Carnaval, por considerar que a folia traz alienação ao povo. Considerado subversivo na época da ditadura de Getúlio Vargas, o livro foi queimado em praça pública, assim como outras obras do escritor, que teve uma reconhecida trajetória na militância comunista.

Outro texto literário que tem como tema o Carnaval é o conto Terça-Feira Gorda, de Caio Fernando Abreu. O escritor gaúcho, conhecido por sua prosa urbana e nada ligada às tradições brasileiras, usa o contexto de um baile de carnaval para narrar o envolvimento afetivo entre dois homens, que acabam sendo perseguidos e agredidos devido ao preconceito. O conto integra o livro Morangos Mofados, lançado na década de 1980, quando o tema da homofobia ainda era pouco comentado na mídia e na literatura.

Outras obras

Para passar a régua e fechar a conta desse Carnaval 2017, mesmo para quem não tem samba no pé como eu, seguem mais algumas indicações de livros que abordam de alguma forma o Carnaval:

  • Antes do Baile Verde, Lygia Fagundes Telles (lançado em 1970, com reedição da Companhia das Letras)
  • O Jovem Noel Rosa, Guca Domenico (Editora Nova Alexandria)
  • Orfeu da Conceição, Vinicius de Moraes (estreou no teatro em 1956 e conta com edição atualizada da Companhia de Bolso)