Voos Literários

Caio F. Em 30 anos, nada mudou

Flávia Cunha
18 de setembro de 2018

Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido? Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos”

O trecho da crônica Adeus, agosto. Alô, setembro! de Caio Fernando Abreu, de 1987, foi lido para um grande público no Sarau Voador dedicado ao escritor gaúcho, que completaria 70 anos no dia 12 de setembro. Morto precocemente após um diagnóstico de HIV positivo, em 1996, os textos de Caio F. sempre nos surpreendem pela atualidade. O trecho acima poderia ser uma bela resposta aos que falam, em pleno século 21, que bandido bom é bandido morto.

Na abertura do Sarau Voador dedicado a Caio, a atriz e amiga do escritor, Débora Finocchiaro, interpretou, com seu habitual talento, um trecho de Zero Grau de Libra, um texto muito conhecido do autor em que ele faz um série de pedidos a “isso que chamamos de Deus”. Pede um olho bom para o planeta, para a cidade de São Paulo e para quase todas as pessoas. Mas faz uma ressalva:

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio. Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça.”

E finaliza:

Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse Zero Grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.”

O sarau em homenagem a Caio F. foi apenas uma das minhas atividades realizadas em diferentes cidades brasileiras  relembrando a trajetória e a relevância do chamado escritor da paixão. Até o Doodle do Google lembrou a data do aniversário de Caio, como destaca essa matéria aqui.

Em Brasília, uma exposição foi montada no Museu Nacional da República, com visitação até o dia 27 de outubro. Para quem é do interior do Rio Grande do Sul, uma dica é conhecer a cidade natal de Caio Fernando Abreu. Em Santiago do Boqueirão, tem uma mostra em homenagem ao autor e até um restaurante onde seus escritos estão em destaque, como pode ser conferido nesse vídeo.

Por fim, é relevante destacar ser um ato de resistência à intolerância e à homofobia celebrar o trabalho de um autor como Caio Fernando Abreu. Por mais  que segmentos conservadores brasileiros tentem impor de forma arbitrária seus conceitos obtusos, a literatura libertária de Caio permanece para a posteridade, em contos com enredo homoafetivo (como Aqueles Dois, do livro Morangos Mofados, publicado em 1982, e lido no Sarau Voador que tive o privilégio de assistir).

E o que diria Caio F. desse avanço do conservadorismo em 2018? Certamente estaria com uma postura “enfrentativa”, termo que ele gostava muito de usar. E poderia nos dizer, como consolo:

Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.”

Foto: Acervo Paula Dip

Voos Literários

Tem ziriguidum na literatura brasileira

Flávia Cunha
28 de fevereiro de 2017

“Vadinho, o primeiro marido de Dona Flor, morreu num domingo de Carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior animação, no Largo Dois de Julho, não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no Cabeça, onde o uísque correra farto à custa de um certo Moyses Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.”

Assim começa o romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, do baiano Jorge Amado. Essa forma de apresentação de um dos personagens principais é considerada por especialistas em literatura uma das qualidades do livro. O leitor é levado imediatamente ao centro da trama e consegue visualizar como é Vadinho, com sua malandragem e boemia, por meio do relato da sua morte em plena manhã de Carnaval.

Não apenas pelo seu início, mas pelo encadeamento bem estruturado ao longo de quase 500 páginas (dependendo da edição), essa é uma das obras de maior sucesso de Jorge Amado, tendo obtido igual popularidade no cinema, teatro e televisão.

Conhecido por exalar brasilidade em seus textos, o escritor baiano lançou-se no gênero romance com outro livro que fala da festa de Momo: O País do Carnaval. A obra foi lançada em 1931, quando Jorge Amado tinha apenas 18 anos, e conta a história de um jovem que retorna ao Brasil depois de passar anos estudando na Europa. Filho de um rico produtor de cacau, o protagonista tem uma postura crítica em relação ao Carnaval, por considerar que a folia traz alienação ao povo. Considerado subversivo na época da ditadura de Getúlio Vargas, o livro foi queimado em praça pública, assim como outras obras do escritor, que teve uma reconhecida trajetória na militância comunista.

Outro texto literário que tem como tema o Carnaval é o conto Terça-Feira Gorda, de Caio Fernando Abreu. O escritor gaúcho, conhecido por sua prosa urbana e nada ligada às tradições brasileiras, usa o contexto de um baile de carnaval para narrar o envolvimento afetivo entre dois homens, que acabam sendo perseguidos e agredidos devido ao preconceito. O conto integra o livro Morangos Mofados, lançado na década de 1980, quando o tema da homofobia ainda era pouco comentado na mídia e na literatura.

Outras obras

Para passar a régua e fechar a conta desse Carnaval 2017, mesmo para quem não tem samba no pé como eu, seguem mais algumas indicações de livros que abordam de alguma forma o Carnaval:

  • Antes do Baile Verde, Lygia Fagundes Telles (lançado em 1970, com reedição da Companhia das Letras)
  • O Jovem Noel Rosa, Guca Domenico (Editora Nova Alexandria)
  • Orfeu da Conceição, Vinicius de Moraes (estreou no teatro em 1956 e conta com edição atualizada da Companhia de Bolso)