Voos Literários

Caio Fernando Abreu: “Eu quero a vida”

Flávia Cunha
12 de setembro de 2020

Neste sábado, 12 de setembro, o escritor da paixão, como foi descrito por Lygia Fagundes Telles, completaria 72 anos se estivesse neste plano. Parece clichê, mas o legado literário de Caio Fernando Abreu permanece vivo, mesmo ele tendo partido no já longínquo ano de 1996. A obra de Caio F. (como ele gostava de assinar em cartas, em uma referência ao livro e filme cult Christiane F.), atingiu um patamar de universalidade, por conseguir abordar temáticas que permanecem atuais.

SEM TABUS

Um desses assuntos é o suicídio. Enquanto o tema era considerado tabu até recentemente pela mídia brasileira, Caio teve coragem para abordá-lo. Há referências à ideação de morte em textos de obras como Inventário do Irremediável (lançado em 1970), O ovo apunhalado (publicado pela primeira vez em 1975) e Morangos mofados, livro mais conhecido do grande público e que fez sucesso desde seu lançamento, em 1982.

SOBREVIVER É MELHOR

As tentativas de suicídio não foram apenas conteúdo ficcional. Caio chegou a reconhecer, em  entrevista na década de 1980,  que havia tentado se matar, mas tinha percebido que a vida era a melhor escolha:

Você nunca pensou em suicídio?
Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.

Confira a entrevista completa aqui.

EU QUERO A VIDA

Antes disso, na década de 1970, Caio escreveu um poema em que cita a palavra suicídio, mas desde a primeira estrofe enfatiza a importância de permanecer vivo:

“(sem título)

Eu quero a vida.

Com todo o riscos

eu quero a vida.

Com os dentes em mau estado

eu quero a vida

insone, no terceiro comprimido para dormir

no terceiro maço de cigarro

depois do quarto suicídio

depois de todas as perdas

durante a calvície incipiente

dentro da grande gaiola do país

de pequena gaiola do meu corpo

eu quero a vida

eu quero porque quero a vida.

É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu

deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal

certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.

Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.

A VIDA

À VIDA.”

Para quem ficou interessado em conhecer a faceta poética do escritor, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreude Letícia Chaplin e Marcia Ivana de Lima e Silva, reúne mais de 100 poemas do autor.

Este é o primeiro de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Acervo Caio F. Abreu – DELFOS/PUCRS.

 

 

Voos Literários

Mês Caio F. – Carta para muito além do muro

Flávia Cunha
26 de fevereiro de 2019

Impossível falar sobre o legado de Caio Fernando Abreu na literatura sem abordar seu hábito compulsivo de escrever cartas para amigos, familiares e pessoas do meio cultural. Era uma forma de desabafar, parabenizar outros escritores por suas obras, divagar sobre o seu processo criativo ou simplesmente expressar afeto pelos amigos que fez nas diferentes cidades e países por onde passou ao longo de sua vida.

Importante ressaltar que era uma época ainda pré-Internética, apesar do advento da informática ir avançando lentamente. Caio faleceu em 1996 e digitou seus últimos textos no Robocop, apelido carinhoso dado a um laptop que ele teve muita resistência em usar, por achar mais fácil seguir datilogrando sua querida máquina de escrever, batizada de Virginia Woolf. Hoje em dia, provavelmente Caio F. escreveria e-mails e mensagens frequentes  pelo whatsapp, porque o que importava para ele era comunicar-se.

Ítalo Moriconi, estudioso responsável pela publicação e organização do livro Cartas, lançado em 2002, considera que essa correspondência faz parte do trabalho de Caio como escritor, como comenta na introdução dessa obra:

Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais. suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário, ainda não revelado ao público. Tudo produto de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentado-se de vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza.”

Em uma carta escrita à amiga Maria Lídia Magliani, Caio F. antecipa o desejo de revelar publicamente seu diagnóstico de HIV positivo.

Logo em seguida a essa carta, o escritor utiliza sua coluna no jornal O Estado de São Paulo para informar aos leitores sobre o assunto, um fato ainda considerado tabu na década de 1990. Primeira Carta Para Além dos MurosSegunda Carta Para Além dos Muros e Última Carta Para Além dos Muros são crônicas cheias de coragem e lirismo. Os três textos podem ser encontrados no livro Pequenas Epifanias, uma coletânea com crônicas incríveis do escritor.

Mas é em sua correspondência que podemos ver seu primeiro movimento nesse sentido, o de não tornar a Aids um segredo. Na carta abaixo, publicada na íntegra, Caio Fernando Abreu já demonstra a forma como encararia seu diagnóstico: sem medo, com um certo bom humor e revelando a gratidão pelo carinhos dos que o rodeavam. E com um amor à Vida renovado:     

São Paulo, 16.8.94

Magli querida:

Pois é, amiga.

Aconteceu — estou com aids — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique…), te escrevo de minha suíte no hospital Emílio Ribas, onde estou internado há uma semana… Ah, Magli, que aventura. Voltei da Europa já mal — febres, suadores, perda de peso (perdi — imagina — oito quilos), manchas no corpo — e sem um tostão. Não vou te contar todos os detalhes dolorosos dos dois últimos meses — mas meu santo é forte e mandou aquele nosso velho anjo da guarda chamado Graça Medeiros, vinda de NY porque o irmão de S. […] está terminal […] Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente. Ligando pra família e amigos, no 3o dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de “um quadro de dissociação mental”. Pronto-Socorro na bicha: acordei nu amarrado pelos pulsos numa maca de metal… Frances Farmer, Zelda Fitzgerald, Torquato Neto: por aí. Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho um no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de “Callas”, em homenagem a Tom Hanks) etc. etc. Não tenho nada, só um HIV onipresente e uma erupção na pele (citomegalovírus) que cede pouco a pouco… Maria Lídia, nunca pensei ou sempre pensei: por contas e histórico infeccioso feito com o médico, tenho isso há dez anos. E pasme. Estou bem. Nunca tive medo da morte e, além disso, acho que Deus está me dando a oportunidade de determinar prioridades. E eu só quero escrever. Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto criativo tipo Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard. E estou cercado de anjos. Minha irmã Cláudia — sempre a mais brava e bela — veio de POA. Ficou dois dias. Todos da família lidam bem com a coisa. Nair, a espantosa, não ficou nada chocada: já sabia… só ela sabia. Mas nunca duvide de mães. E amigos ótimos, visita todas as tardes, muito amor, maçãs e chocolates.

Ganhando alta aqui, mais uma semana, vou para POA. Quero ganhar forças para enfrentar Frankfurt e dois congressos na França em outubro/novembro. Não sinto nenhum rancor, nenhuma mágoa. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Passeio pelos corredores da enfermaria e vejo cenas. Figuras estarrecedoras. Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. Te amo muito. […] Beije Marijô por mim (adoro escrever Marijot).

Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga. Quero ajudar a tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino. Mas creia, estou equilibrado, sereno, e às vezes até feliz.

Muito amor, seu Caio F. (finalmente um escritor positivo!)

PS: Ouço muito Maria Callas, sobretudo a ária final da Butterfly, que Augusto me deu. Difícil ouvir outra coisa. PS: Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito in… Só choro às vezes porque a vida me parece bela (O sol. As cores. As coisas). Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo. Love”

A coluna Voos Literários prestou, durante o mês de fevereiro, uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu. Foram textos que lembraram a trajetória do autor como cronista, contista e dramaturgo.

O assunto está longe de esgotar-se. Caio vive. Nas redes sociais, em eventos em sua homenagem e tendo cada vez mais leitores na nova geração.

Foto:  Reprodução/Internet

Voos Literários

Mês Caio F. – Um arco-íris em meio a dias nublados

Flávia Cunha
19 de fevereiro de 2019

Fevereiro é mês de homenagem da coluna Voos Literários ao escritor e jornalista Caio Fernando Abreu. Já abordamos Caio F. como cronista e contista. A obra do Caio dramaturgo talvez não seja tão pop nas redes sociais mas representa uma parte significativa de seu legado. O autor tinha uma relação muito íntima com o teatro, tendo chegado a frequentar – sem concluir – o curso de Artes Dramáticas da UFRGS (o mesmo aconteceu com a faculdade de Letras).

Ainda muito jovem, Caio F. chegou a atuar nos palcos e tinha uma relação muito próxima com diretores, atores e grupos teatrais. Por isso, nada mais natural que seus textos fossem encenados em diferentes ocasiões. Caio escreveu predominantemente para o público adulto mas me deterei em um texto aparentemente ingênuo destinado às crianças: A Comunidade do Arco-Íris.

O espetáculo estreou em Porto Alegre em 1979, sob direção de Suzanha Saldanha. A Comunidade do Arco-Íris é um refúgio para a Sereia, a Bruxa de Pano, o Soldadinho, a Bailarina, o Mágico e Roque, um guitarrista de rock n’roll. Todos vivem em harmonia nesse local idílico em meio à Natureza.

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Apesar de ter passado a vida garantindo não gostar de crianças (a quem chamava de “crionças”), Caio conseguiu abordar com habilidade para o público infantil assuntos complexos como ecologia, democracia e guerra, inserindo-os dentro da trama de forma convincente.

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Um exemplo dessas sacadas do autor em fazer conexões da fantasia com o mundo real é o momento dos personagens  explicarem porque resolveram morar na Comunidade. A Sereia aproveita para fazer uma crítica à falta de cuidado de empresas com o descarte de resíduos no meio ambiente:

– Eu estava cansada da poluição. Vocês sabem, essas indústrias e fábricas que vivem derramando porcarias nos rios e mares. Os meus primos peixes, coitados, estavam morrendo todos. Eu vivia suja de óleo. […] Agora, aqui, moro numa lagoa limpinha e sem poluição nenhuma.”

O Soldadinho justifica sua saída do Reino dos Homens por preferir a paz:

– Porque eu não tinha vocação nenhuma pra guerra. E lá tem guerra o tempo todo. Bombas, tanques, as pessoas se matando, um horror. O meu sonho era ser jardineiro. Aqui eu posso ter meu regador e molhar as flores todos os dias. Melhor do que ficar matando gente por aí, não é?”

Outro momento do enredo em que Caio F. aproveita para abordar cidadania com a criançada é depois da confusão provocada pela chegada ao local de 3 agitados macacos, que pedem para morar na Comunidade, porque não aguentam mais a bagunça da cidade. Os moradores da Comunidade do Arco-Íris demoram para chegar a um consenso, até surgir uma ideia:

 

SOLDADINHO – Desculpe, mas tenho uma solução democrática.

BRUXA – Demo o quê?

SOLDADINHO – De-mo-crá-ti-ca. Todo mundo tem direito de dar sua opinião. A maioria vence. Vamos votar?

OS TRÊS [macacos] – Isso mesmo! Democracia, queremos a democracia!

MÁGICO – Acho que é a solução mais honesta.”

A sugestão, banal para nossos olhos do século 21, pode ser vista como um pouco subversiva, já que em 1979 ainda estávamos vivendo sob um regime ditatorial no Brasil e nem todos os adultos achavam que a democracia era “a solução mais honesta” para o país.

A Comunidade do Arco-Íris tem uma reviravolta interessante em seu desfecho, mas não vou estragar a surpresa para quem ficou interessado em sua leitura. A obra foi lançada recentemente em uma versão ilustrada mas também pode ser lida também no livro Teatro Completo.

De 1979 até os dias atuais, o texto para teatro infantil de Caio F. ganhou diversas montagens, demonstrando a importância das temáticas abordadas. E também, o quão pouco evoluímos, por exemplo, no descaso de empresas com o meio ambiente (vide o descaso da Vale que resultou na tragédia de Brumadinho, só para ficar no episódio mais recente). E a democracia, exaltada pelos moradores da Comunidade do Arco-Íris, vem sendo constantemente ameaçada em pleno 2019, com muitos militantes dos direitos humanos tendo que autoexilar-se, com medo de serem mortos como Marielle Franco. Em momentos de desesperança, resta-nos a aposta nas futuras gerações. E é por isso que textos como esse de Caio F. são indicados sem moderação para a criançada.

Para fechar o mês de homenagens a Caio Fernando Abreu, na semana que vem recordaremos um dos hábitos mais célebres do autor: a escrita de cartas para amigos e familiares.

Foto: Darren Lewis / Public Domain Pictures

 

Voos Literários

Mês Caio F. – Sobrevivendo ao mofo

Flávia Cunha
12 de fevereiro de 2019

Em fevereiro, a coluna Voos Literários está prestando uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu, falecido em fevereiro de 1996. No primeiro texto, abordamos Caio F. como cronista. Porém, é impossível dissociar o autor do legado deixado por seus contos, em especial do livro Morangos Mofados, lançado em 1982. O nome da obra é uma referência a Strawberry Fields Forever, dos Beatles.

O livro é dividido em 3 partes, O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados (o conto-título em que um personagem solitário acredita ter uma doença grave, por sentir na boca um gosto acentuado da fruta mofada).

Um dos textos essenciais dentro desse livro é Os Sobreviventes, a história de dois ex-militantes do combate à ditadura militar no Brasil.

A partir do relato da personagem feminina, vemos todo o sonho de uma geração de jovens idealistas que tiveram que adaptar-se ao “sistema” para, assim, sobreviver.   Uma das primeiras pessoas a perceberem a qualidade literária da obra foi  a crítica literária e escritora Heloísa Buarque de Hollanda. O artigo Hoje Não é Dia de Rock publicado no Jornal do Brasil ainda na época do lançamento de Morangos Mofados foi tão emblemático que posteriormente foi incorporado a muitas reedições do livro.   No trecho abaixo, Heloísa destaca a importância do conto Os Sobreviventes dentro do conjunto de contos:

 Não há dúvida de que Caio fala da crise da contracultura como projeto existencial e político. […] Mas, insisto, a originalidade do seu relato nasce do partido que toma como autor e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de “sobreviventes” (que dão nome ao conto-chave do livro). Aqueles sobreviventes “vagamente sagrados” de Marx, Marcuse, Reich, Castañeda, Laing: “Bolsas na Sorbonne, chás com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, little darling-, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa sem conseguir engolir nem cuspir fora este gosto azedo na boca”.

 

A maior ironia talvez seja que nós, leitores brasileiros do século 21, estejamos, como os personagens do conto, tendo que lidar com militares no poder (ainda que agora seja pela via democrática das eleições). Como não ter um desencanto pelo momento atual? Como ter forças para seguir em frente?

Caio F. em sua sabedoria da década de 1980 de Os Sobreviventes, nos ensina:

[…] te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza […]”

Caio, tentaremos por aqui sobreviver da melhor forma possível. E seguiremos tentando lutar, com uma fé gigante em um futuro com mais Arte e menos armas.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários fará um resgate de Caio Fernando Abreu como dramaturgo, a partir da análise de A Comunidade do Arco-Íris, uma peça teatral infantil com abordagem ecológica.

 

Voos Literários

Mês Caio F. – A herança maldita da Ditadura

Flávia Cunha
5 de fevereiro de 2019

A coluna Voos Literários fará de fevereiro um mês para reverenciar o legado do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu. Gaúcho com projeção nacional e internacional (com edições especiais de seus livros para pelo menos 18 países além do Brasil), Caio F. como gostava de assinar em suas correspondências pessoais, partiu desse plano no já distante 25 de fevereiro de 1996. Escritor e cronista que acompanhava o seu tempo mas com o talento de mostrar-se eterno em suas reflexões, a obra de Caio é um prato cheio para podermos fazer comparações com o momento atual.

Se vivo fosse, não seria difícil imaginarmos como seus textos seriam enfrentativos (termo que ele gostava muito de usar) em relação à conjuntura sociopolítica brasileira do século XXI, com tanto conservadorismo, caretice e hipocrisia no ar.

Mas ao invés desse exercício de “acheologia”, prefiro mergulhar em um texto de Caio F. escrito na retomada do período democrático, após a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No panorama atual, em que figuras importantes do governo federal defendem cada vez mais sem pudores o revisionismo histórico em relação ao golpe militar, é importante analisarmos com cuidado o teor da crônica Um Prato de Lentilhas, que integra a excelente coletânea A Vida Gritando nos Cantos.

No texto publicado originalmente pelo Estado de São Paulo em 18 de fevereiro de 1987, o Caio-cronista faz um apelo aos governantes para que prestem atenção na situação crítica enfrentada pelo povo naquele período:

[…] Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se pode se chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nessa terra? Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? […] Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. [….] Em qualquer país decente (eu disse decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar – no braço, no dia a dia, o mínimo essencial para não morrer. […] Suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu to cobrando meus direitos. Porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. […] E não venham nos pedir paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados pra ter essa coisa mansa chamada paciência Era Brecht que dizia: ‘Trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral somente após comer.’ […] Quero meu futuro. Quero meus sonhos. […] Pra quem – desde que roubaram a minha juventude em 1964 –  eu posso reclamar?”

Após a leitura desse trecho da crônica, você aí pode argumentar: mas Caio Fernando Abreu estava se referindo ao governo Sarney, não tem nada a ver com a ditadura militar… Porém, assim como muitos atribuem a crise financeira enfrentada por Temer pós-impeachment de Dilma e agora por Bolsonaro à “culpa do PT, herança do PT”, como não pensar que o mesmo ocorreu a partir de 1985 com a saída dos militares do poder? O Brasil não era uma potência econômica com governantes fardados e virou um caos financeiro imediatamente após a entrada dos civis no governo. Por mais que os revisionistas de plantão tentem negar, a ditadura militar deixou como herança não apenas um rastro de tortura e censura, mas também uma dívida grande que foi enfiada goela abaixo dos brasileiros junto com a sonhada democracia. Meu conselho para quem encontrar pelo caminho alguma viúva da ditadura é mostrar textos como esse de Caio F., em que a desilusão pós-regime militar é palpável e inegável.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários analisará o teor contemporâneo do mais cultuado livro de Caio F., Morangos Mofados.  

Foto: Reprodução/Internet

Voos Literários

Caio F. Em 30 anos, nada mudou

Flávia Cunha
18 de setembro de 2018

Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido? Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos”

O trecho da crônica Adeus, agosto. Alô, setembro! de Caio Fernando Abreu, de 1987, foi lido para um grande público no Sarau Voador dedicado ao escritor gaúcho, que completaria 70 anos no dia 12 de setembro. Morto precocemente após um diagnóstico de HIV positivo, em 1996, os textos de Caio F. sempre nos surpreendem pela atualidade. O trecho acima poderia ser uma bela resposta aos que falam, em pleno século 21, que bandido bom é bandido morto.

Na abertura do Sarau Voador dedicado a Caio, a atriz e amiga do escritor, Débora Finocchiaro, interpretou, com seu habitual talento, um trecho de Zero Grau de Libra, um texto muito conhecido do autor em que ele faz um série de pedidos a “isso que chamamos de Deus”. Pede um olho bom para o planeta, para a cidade de São Paulo e para quase todas as pessoas. Mas faz uma ressalva:

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio. Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça.”

E finaliza:

Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse Zero Grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.”

O sarau em homenagem a Caio F. foi apenas uma das minhas atividades realizadas em diferentes cidades brasileiras  relembrando a trajetória e a relevância do chamado escritor da paixão. Até o Doodle do Google lembrou a data do aniversário de Caio, como destaca essa matéria aqui.

Em Brasília, uma exposição foi montada no Museu Nacional da República, com visitação até o dia 27 de outubro. Para quem é do interior do Rio Grande do Sul, uma dica é conhecer a cidade natal de Caio Fernando Abreu. Em Santiago do Boqueirão, tem uma mostra em homenagem ao autor e até um restaurante onde seus escritos estão em destaque, como pode ser conferido nesse vídeo.

Por fim, é relevante destacar ser um ato de resistência à intolerância e à homofobia celebrar o trabalho de um autor como Caio Fernando Abreu. Por mais  que segmentos conservadores brasileiros tentem impor de forma arbitrária seus conceitos obtusos, a literatura libertária de Caio permanece para a posteridade, em contos com enredo homoafetivo (como Aqueles Dois, do livro Morangos Mofados, publicado em 1982, e lido no Sarau Voador que tive o privilégio de assistir).

E o que diria Caio F. desse avanço do conservadorismo em 2018? Certamente estaria com uma postura “enfrentativa”, termo que ele gostava muito de usar. E poderia nos dizer, como consolo:

Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.”

Foto: Acervo Paula Dip

Voos Literários

22 anos sem Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
27 de fevereiro de 2018

Em fevereiro de 1996, partia para outro plano o escritor da paixão. Caio Fernando Abreu se foi, mas ficou a obra, o legado de escrita visceral que ganhou novo fôlego por meio das redes sociais.

Caio F., como gostava de assinar em sua correspondência a amigos, foi extremamente corajoso ao expor o diagnóstico de HIV positivo publicamente em uma época em que o assunto ainda era tabu. Selecionei um trecho do livro Cartas, organizado por Italo Moriconi e lançado em 2002. No texto escrito para Maria Augusta Antoun e datado de 1º de dezembro de 1995, Caio comenta sobre o pouco de tempo de vida que imagina ter, devido ao estado precário de saúde:

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“[…] e eu barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos mais uns seis livros. Estou escrevendo. Sei que o tempo que eu tiver será exato. E sei também que pode acontecer não “um milagre”, mas uma sobrevivência maior. Há novos remédios e uma maladie muito recente. Talvez a cura esteja chegando? Sei que tenho tido uma fé enorme. E me sinto um homem de sorte — estou protegido, cercado de amor. A dor, a morte, pouco importam (ou é só o que importa), porque são parte da condição humana. Mas que se tenha uma vida completa, que se possa passar por ela deixando algo bom para o planeta, para os outros. Vezenquando penso que, no que escrevo, quase consigo. E me sinto sereno. Mas quero fazer mais. Não sinto culpa nem revolta, nem remorso, em nenhum momento algum sentimento escuro. Dores sim, físicas. Mal-estares, fragilidades terríveis. […] E descobri que somos muitíssimo mais capazes de suportar a dor do que supomos. Vide Frida Kahlo.”

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Caio, que sempre foi uma pessoa angustiada, descobre no final da existência uma tranquilidade que não conhecia até então. E também aproveita a carta para perguntar sobre Vera Antoun, a sua única namorada “oficial”, antes de decidir assumir sua homossexualidade:

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“A gente se dá conta tarde de que a felicidade é fácil, não? Gostaria de saber mais de você e de toda a família. Sei que Vera formou-se em Medicina, encontrei-a certa vez (uns 15 anos?) na praia. No meu último livro, Ovelhas negras, tem um conto chamado Lixo & purpurina em que ela é personagem (com o nome de “Clara”). Dificilmente poderei escrever assim longamente outra vez para você. Meu tempo é medido — saúde, jardim, literatura. E há muita coisa profissional a ser tratada — traduções, publicações no estrangeiro, crônicas para jornal. Estou pagando todo o meu tratamento (é caríssimo: acabo de sair de uma radioterapia de seis mil!), o que me deixa muito orgulhoso, mas também fatigado.”

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A versão impressa do livro Cartas, uma preciosidade para os fãs da obra de Caio Fernando Abreu, está esgotada há alguns anos. O texto acima eu copiei do exemplar que tenho em casa. Para quem ainda não leu a obra em questão, resta procurar em sebos a preços bastante altos – cheguei a ver por R$ 200,00 na Estante Virtual. Outra opção é a versão atualizada em e-book, disponível aqui.

Porém, para que os desavisados não imaginem que Caio Fernando Abreu sempre foi o cara zen da época pós-diagnóstico, também selecionei um texto bem polêmico escrito por Caio durante a campanha para a eleição presidencial de 1989. Ele foi chamado pelo Jornal do Brasil para criar um texto sobre o então candidato Fernando Collor de Mello.

Caio, no mais autêntico espírito rebelde, oferece ao JB um conto em que Fernando, ainda menino, faz um pacto com o diabo. O texto acabou censurado, como explica o autor no trecho abaixo:

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“O jornal pediu para o Márcio Souza escrever sobre o Lula e eu faria o mesmo com o Collor. Escrevi a história de um menino que sonha com um garoto ruivo e manco. No dia seguinte, vai para as pedras do Arpoador, no Rio, e lá aparece o garoto. Ele pergunta ao menino Collor se quer ser o dono de um país inteiro. Ele diz sim. E o garoto acaba comendo ele – era o demônio. O conto se chama O Escolhido. O José Castello, que era o editor, disse que a cúpula do jornal optou por não publicar. Quando o Collor ganhou, liguei e disse: “Por causa de covardia como a de vocês é que o cara foi eleito”.

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Vocês podem ler mais textos do blog Voos Literários sobre Caio Fernando Abreu aqui, aqui e aqui. Caio uma vez falou: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi”. Façamos sua vontade.

A foto selecionada para esse post é da exposição Doces Memórias, realizada em homenagem a Caio F., há alguns anos, em cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Voos Literários

Caio Fernando Abreu – Inspiração para a sobrevivência diária

Flávia Cunha
28 de novembro de 2017

“De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite, descobrir um motivo razoável para acordar amanhã.”

Caio Fernando Abreu – Ovelhas Negras

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Sempre que o caos impera internamente e externamente, lá vou eu recorrer a Caio Fernando Abreu. Já fiz isso durante o mês de agosto e agora, em meio ao estresse de final de ano, sobrecarga de projetos profissionais somado ao cenário sociopolítico cada vez mais preocupante, lá vou eu de novo recorrer ao meu guru.

Em 2012, escrevi esse texto para justificar a escolha de Caio F. como objeto da pesquisa para a dissertação de mestrado em Letras pela UFRGS:

“Minha paixão por Caio Fernando Abreu começou de forma quase clichê: um exemplar de Morangos Mofados chegou por acaso às minhas mãos e foi amor à primeira leitura. Por tratar-se de uma era ainda pré-internética, nos já longíquos anos 90, pouco sabia sobre o escritor no momento de ler a obra e ainda demorou um tempo até saber algo sobre a vida de CFA. Tempos depois, tive acesso a outros livros, comprados com esforço ou então pegos por empréstimo na biblioteca do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre.

Depois, veio o objeto de desejo: Cartas, organizado por Italo Moriconi. Era caro para o meu bolso e eu passei meses namorando a obra, pela Internet ou em livrarias. Em um aniversário, ganhei-o de um grupo de amigos, que perceberam que esse seria o melhor presente para uma amante da literatura e fã confessa do escritor gaúcho.

Li e reli Cartas nesses quases dez anos. Naquelas páginas, descobri que CFA atuava no jornalismo por obrigação, como forma de sobreviver. Ter um ponto em comum com o ídolo sempre é uma surpresa para um leitor devoto. Assim, o livro transformou-se em uma espécie de oráculo para mim. Folheava aleatoriamente o exemplar e começava a ler aquelas linhas que pareciam ter sido escritas especialmente para aquela ocasião. Normalmente, funcionava (e ainda funciona). Em dias de baixo astral, Caio me consolava ao falar da beleza das flores, de como é importante cultivar as amizades e de como as possibilidades e impossibilidades do amor são o que há mais de humano em nossas vidas. Em momentos de revolta, principalmente com as injustiças da profissão de jornalista, CFA me acalentava, ao sofrer dos mesmos males, ao reclamar dos salários, das cobranças, das péssimas condições de trabalho.

Por amor à obra de CFA, adentrei na área de Letras. Primeiro, na graduação. Depois, em um desses movimentos que eram típicos na vida do escritor mas que aconteceram poucas vezes comigo, acabei saltando para a pós-graduação antes mesmo de concluir a faculdade. O destino colocou em meu caminho uma professora especialista no escritor e que, quase por acaso, sugeriu o tema da atual dissertação: a trajetória de CFA no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Uni, assim, duas áreas do conhecimento: o jornalismo, muitas vezes cruel mas ainda necessário para minha subsistência,  e a literatura, minha grande paixão desde criança.”

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Caio me inspira e me dá forças para seguir adiante. E, como já contei nesse texto, abandonei o jornalismo em redação para trabalhar em projetos ligados ao meio editorial, após tantas inspirações literárias.

Sigo sendo uma ovelha negra. O que pode ser muito bom, como diz Caio no texto de abertura de Ovelhas Negras, obra com uma seleção de textos escritos pelo autor entre 1962 e 1995: “Remexendo, e com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive tão clara certeza de que criar é literalmente arrancar com esforço bruto algo informe do Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas.”