Voos Literários

O que o capitalismo tem a ver com o Setembro Amarelo?

Flávia Cunha
26 de setembro de 2020

Esse texto compõe uma série especial da coluna Voos Literários a respeito da prevenção ao suicídio, dentro da campanha Setembro Amarelo. O primeiro post trouxe um texto do autor Caio Fernando Abreu abordando o assunto. O segundo texto alertou sobre o risco maior de suicídio entre jovens LGTBQIA+.

Considero como raras as abordagens pela grande mídia do quanto o capitalismo e sua lógica perversa afetam a saúde mental de trabalhadores. Não recordo de nenhuma matéria na TV mostrando o suicídio tendo como gatilho a falta de dinheiro para pagar itens básicos, como alimentação e moradia. Por outro lado, são inúmeras as reportagens com a exaltação de exemplos isolados de “superação” e “reinvenção” como forma de sair da miséria. O desemprego é mascarado por meio do crescimento do empreendedorismo, ainda que improvisado. Vender garrafinhas de água na rua não é bico, é negócio. Seguindo esse raciocínio, quem estiver desempregado e deprimido é apenas por culpa individual. O sistema jamais é responsabilizado.

SAÚDE MENTAL X TRABALHO 

A ironia é que a pressão e o excesso de cobrança por resultados, comuns em grandes empresas de diferentes áreas, são fatores que podem levar funcionários a desenvolver transtornos mentais. Debilitada mentalmente, muitas vezes a pessoa fica impossibilitada de trabalhar, o que é visto com maus olhos por empregadores e às vezes até por colegas.

PANDEMIA PIORA (O QUE JÁ ERA RUIM)

Junto a essas características desanimadoras do mercado de trabalho, soma-se a pandemia e a consequente alta do desemprego. Estudo da Organização Internacional do Trabalho  (OIT) alerta para o aumento de suicídios em função da covid-19.  A partir desse dado, podemos inferir que no Brasil a situação é ainda mais alarmante, devido ao esfacelamento dos direitos trabalhistas nos últimos anos. Desempregados, trabalhadores informais e pequenos empreendedores ficam à mercê do governo, que cortou pela metade o valor de um auxílio emergencial necessário para o momento atual. Enquanto tira a subsistência dos mais desassistidos, segue apoiando grandes empresários, mantendo a perversa lógica capitalista. 

Por isso, o Setembro Amarelo é especialmente importante, em uma conjuntura tão propensa a gatilhos de suicídios. 

INFORMAR-SE É IMPORTANTE

Para quem está  fortalecido emocionalmente, o acesso à informação a respeito de saúde mental é importante. Recentemente, o Vós fez uma reportagem especial sobre a epidemia da ansiedade que vale a pena ser conferida. A relação entre suicídio e capitalismo já é analisada há bastante tempo pela Sociologia, como enfatiza a cientista social, doutora em Sociologia e professora da Universidade de Caxias do Sul, Aline Passuelo de Oliveira. Ela indica o clássico O suicídio, de Émile Durkheim, como uma obra fundamental para uma análise por esse viés  “Durkheim traz o conceito de suicídio anômico, que é quando há uma grande desestruturação social.  Muitos casos desse tipo de suicídio aconteceram durante a crise de 1929, com a quebra da bolsa de Nova York, quando muitas famílias de classe média ficaram abaixo da linha da pobreza. Muitas pessoas se mataram nessa época por não ver esperança na vida naquela sociedade”, analisa.

EXÉRCITO DE RESERVA

A socióloga destaca que o livro Vidas Desperdiçadas, de Zygmunt Bauman, é uma boa opção de leitura para tentar entender o momento atual. “Nessa obra, Bauman traz a ideia das vidas redundantes, que podem ser comparadas ao conceito marxista de exército industrial de reserva, referindo-se ao desemprego de uma forma estrutural. O sistema capitalista afeta a saúde mental dos indivíduos, provocando um exaustão físico e mental e pode fazer com que, infelizmente, muitas pessoas acabem tomando atitudes extremas como a de tirar a própria vida”, lamenta.

É PRECISO TER CUIDADO

Foi justamente para trazer à tona um assunto tão delicado que a campanha Setembro Amarelo foi criada. Precisamos falar a respeito desse tema, já que uma das formas de prevenção ao suicídio é poder conversar a respeito de ideações de morte com pessoas de confiança. Se for você a pessoa precisando de ajuda, procure auxílio, de preferência com um profissional especializado. Em muitas capitais brasileiras, estão sendo oferecidos serviços online gratuitos com profissionais habilitados durante esse período de pandemia. Pesquise a respeito e não fique sozinho nessa batalha.  Outra opção é o CVV, que atende 24h pelo número 188, com voluntários treinados. 

MAIS INDICAÇÕES DE LEITURA
Se o seu desejo é ter informações confiáveis sobre depressão e saúde mental

O demônio do meio-dia, de Andrew Solomon

Trecho selecionado:

“A depressão existe […] tanto como um fenômeno pessoal quanto social. Para tratar a depressão é preciso entender a experiência de um colapso mental, o modo de ação dos medicamentos e as formas mais comuns de terapia falada (psicanalítica, interpessoal e cognitiva). […] Um tratamento inteligente requer um exame atento de populações específicas: a depressão tem variações significativas entre crianças, idosos e cada um dos gêneros. Os dependentes químicos formam uma grande subcategoria própria. O suicídio, em suas muitas formas, é uma complicação da depressão. É fundamental entender como a depressão pode ser fatal.”

Leitura recomendada pela psicóloga Daniela Zanetti

Se você quer saber o que o capitalismo atual nos permite inferir sobre o futuro

Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo, de Branko Milanovic

Trecho selecionado:

“Ao longo da história, desde que se tem conhecimento, as comunidades sempre se diferenciaram em relação à remuneração e às oportunidades que ofereciam a seus cidadãos. Roma e Alexandria, por exemplo, viviam cheias de não nativos que haviam se mudado para lá em busca de empregos mais bem remunerados e melhores perspectivas de mobilidade ascendente. No entanto, a diferença entre sociedades ricas e sociedades pobres nunca foi tão grande como hoje.”

Indicação de Tércio Saccol, jornalista, professor universitário e integrante do Vós

Por fim, é importante destacar que o assunto não pode estar restrito apenas durante os dias da campanha Setembro Amarelo. O tema precisa ser tratado durante os 12 meses do ano.

Todas as vidas importam!

Imagem:  Grae Dickason/Pixabay

 

 

 

Voos Literários

Setembro Amarelo: o preconceito que mata

Flávia Cunha
19 de setembro de 2020
* Este é o segundo de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. O primeiro texto pode ser conferido aqui
“Não acredito que já fui o cara que talhou um sorriso no pulso porque não conseguia encontrar a felicidade, o cara que pensou que a encontraria na morte. Independente do que tenha levado meu pai a se matar […] preciso seguir em frente com as pessoas que não buscam saídas fáceis, que me amam o bastante para permanecerem vivas, mesmo quando a vida é horrível. Corro o dedo sobre a cicatriz sorridente, da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, feliz em tê-la como um lembrete para nunca mais ser tão otário.” 
TENTATIVA DE SUICÍDIO 

O trecho acima é do livro Lembra aquela vez, de autoria do escritor norte-americano Adam Silvera. A obra, destinada ao público jovem, aborda uma temática urgente e altamente sensível: o que leva um adolescente a tentar se matar? O enredo não entrega de cara o motivo, além do fato de sabermos que o pai do protagonista cometeu suicídio e, aparentemente, o jovem sentiu-se culpado por algum motivo.

PRECONCEITO

A reviravolta na história é o fato de o personagem ser gay e não ter aceitação paterna, o que o leva a buscar um padrão de “normalidade” depois da morte do pai. O livro, apesar de ter recursos fantasiosos, como um tratamento que apaga memórias (como no filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças), retrata uma dura realidade.

IDEAÇÕES SUICIDAS

Especialistas alertam que pessoas LGBTQIA pensam mais em acabar com a própria vida do que os heterossexuais e cisgêneros. Isso porque há muito mais tensão devido à possibilidade de não aceitação, que pode transformar-se em um estresse crônico. Engana-se quem pensa que “ficar no armário” e agradar conservadores resolveria a questão. Tanto tentar esconder-se quanto ter coragem de expor-se em uma sociedade infestada pelo preconceito pode gerar uma sobrecarga mental, levando à depressão e ansiedade, aumentando as chances de chegar-se a uma atitude extrema, levada pelo desespero.

O QUE FAZER PARA MUDAR ESSE CENÁRIO?

A situação pode ser revertida com acolhimento e compreensão. Pesquisas relevam que a taxa de suicídio entre adolescentes LGBTQIA diminuí drasticamente quando a convivência em família e no ambiente escolar é permeada por respeito.  Por isso, é necessário falarmos sobre o risco de suicídio entre jovens, especialmente LGBT+, e a responsabilidade dos adultos nesse triste fato.  Preconceito pode mesmo matar! 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Pixabay/Reprodução

Voos Literários

Caio Fernando Abreu: “Eu quero a vida”

Flávia Cunha
12 de setembro de 2020

Neste sábado, 12 de setembro, o escritor da paixão, como foi descrito por Lygia Fagundes Telles, completaria 72 anos se estivesse neste plano. Parece clichê, mas o legado literário de Caio Fernando Abreu permanece vivo, mesmo ele tendo partido no já longínquo ano de 1996. A obra de Caio F. (como ele gostava de assinar em cartas, em uma referência ao livro e filme cult Christiane F.), atingiu um patamar de universalidade, por conseguir abordar temáticas que permanecem atuais.

SEM TABUS

Um desses assuntos é o suicídio. Enquanto o tema era considerado tabu até recentemente pela mídia brasileira, Caio teve coragem para abordá-lo. Há referências à ideação de morte em textos de obras como Inventário do Irremediável (lançado em 1970), O ovo apunhalado (publicado pela primeira vez em 1975) e Morangos mofados, livro mais conhecido do grande público e que fez sucesso desde seu lançamento, em 1982.

SOBREVIVER É MELHOR

As tentativas de suicídio não foram apenas conteúdo ficcional. Caio chegou a reconhecer, em  entrevista na década de 1980,  que havia tentado se matar, mas tinha percebido que a vida era a melhor escolha:

Você nunca pensou em suicídio?
Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.

Confira a entrevista completa aqui.

EU QUERO A VIDA

Antes disso, na década de 1970, Caio escreveu um poema em que cita a palavra suicídio, mas desde a primeira estrofe enfatiza a importância de permanecer vivo:

“(sem título)

Eu quero a vida.

Com todo o riscos

eu quero a vida.

Com os dentes em mau estado

eu quero a vida

insone, no terceiro comprimido para dormir

no terceiro maço de cigarro

depois do quarto suicídio

depois de todas as perdas

durante a calvície incipiente

dentro da grande gaiola do país

de pequena gaiola do meu corpo

eu quero a vida

eu quero porque quero a vida.

É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu

deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal

certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.

Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.

A VIDA

À VIDA.”

Para quem ficou interessado em conhecer a faceta poética do escritor, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreude Letícia Chaplin e Marcia Ivana de Lima e Silva, reúne mais de 100 poemas do autor.

Este é o primeiro de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Acervo Caio F. Abreu – DELFOS/PUCRS.