Voos Literários

A casa de Caio Fernando Abreu vai muito além dos muros

Flávia Cunha
1 de agosto de 2022

A casa de Caio Fernando Abreu ainda pode ser um espaço para preservação da memória do escritor gaúcho, que tem relevância nacional e internacional e faleceu em Porto Alegre, em 1996. A esperança vem de uma liminar judicial.  Apesar dos atuais proprietários do imóvel terem ordenado a derrubada do sobrado em estilo espanhol, a decisão interrompeu o processo de demolição. Infelizmente, a decisão judicial favorável à ação civil pública reivindicando que o imóvel seja considerado patrimônio cultural chegou quatro dias depois das retroescavadeiras. Entretanto, a casa de Caio F. é muito mais que suas paredes e vai “além dos muros”, como o autor cita em um dos  textos mais famosos com menção ao local.

Tentativa de acordo

Em entrevista à coluna Voos Literários, Marcelo Sgarbossa, advogado e integrante da Associação de Amigos do Caio Fernando Abreu, relata que a expectativa é de um acordo com os donos do imóvel. “A importância desta casa é muito mais que suas paredes. Além de mencionar o sobrado em seus textos, Caio também falava do bairro Menino Deus e da beleza de suas ruas”, destaca. Por enquanto, a expectativa de Sgarbossa é que um processo de mediação possa resultar em um centro cultural na rua Oscar Bittencourt, número 12. “Poderia ser conciliado com o uso comercial ou residencial da área”, pondera. Os proprietários do local, no entanto, ainda não se pronunciaram publicamente sobre o assunto.

No texto da ação popular, Sgarbossa, em conjunto com os advogados Jacqueline Custódio e José Renato de Oliveira Barcelos, lembram que “a memória e o patrimônio cultural de um povo são compostos por bens e valores inestimáveis, razão pela qual qualquer risco de lesão deve ser imediatamente reparado. (…) Lamentável a notícia da derrubada das paredes da casa”. Entretanto, é importante recordar que a derrubada foi permitida em licença concedida pela prefeitura de Porto Alegre. Após a repercussão do caso, integrantes do poder municipal lamentaram a demolição do imóvel. Em seguida, garantiram que apoiariam a tentativa de transformar o espaço em um centro cultural.

Manifestação pela memória e pela Arte

Um dia depois da derrubada das paredes da casa, admiradores do escritor realizaram um protesto em frente ao local. Apesar do clima de tristeza, a lição que fica é não desistir diante das adversidades. Por ora, não há uma conclusão a respeito deste episódio. Entretanto, já é um alento observar um integrante do Judiciário ser sensível aos apelos de quem luta pela preservação da memória cultural brasileira.

A casa de Quintana e a inspiração para o presente   

Afinal, a Arte também movimenta a economia, através de eventos e do turismo. Desse modo, um exemplo na própria capital gaúcha é a Casa de Cultura Mario Quintana, que só foi inaugurada com uma grande mobilização por parte do poder público. Embora tenha havido empenho, foram necessários 10 longos anos para que o antigo Hotel Majestic, e ex-morada de Quintana, virasse um centro cultural, inaugurado em 1990. Na comparação, a diferença é que, naquela época, o governo do Estado demonstrou interesse em comprar o imóvel, para evitar a derrubada do prédio de 1933. Hoje, a CCMQ é um centro cultural que recebe milhares de visitantes para atividades ligados ao cinema, música, teatro, literatura e artes visuais, além de ter a reprodução do quarto do poeta e diversos espaços que exaltam a importância de Quintana para a literatura brasileira.

Mais casas de escritores que são pontos turísticos 

Em síntese, transformar casas de escritores em pontos turísticos também foi uma decisão acertada para movimentar o turismo em diversas cidades brasileiras. Entre os destaques, estão a casas de Jorge Amado e Zelia Gattai, em Salvador, de Cora Coralina, na cidade de Goiás, de José de Alencar, em Fortaleza, e Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Minas Gerais. Da mesma forma, no Chile, três casas do poeta Pablo Neruda foram transformadas em espaços de memória e cultura. Neste sentido, nos parece evidente que bastaria mobilização por parte do poder público e da iniciativa privada para a casa de Caio F. ser transformada em um espaço de promoção da Arte.

Para além dos muros

Em 1994, Caio voltou retornou à capital gaúcha para viver com os pais, após ter a confirmação do diagnóstico de HIV positivo. Assim, a casa que o acolheu virou parte cada vez mais recorrente e relevante de sua literatura, como no texto a seguir:

“Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto”.

Última carta para além dos muros, crônica do autor publicada em O Estado de São Paulo, em 1994.

O escritor e a casa no Menino Deus

Além disso, a residência foi local, na época, para entrevistas e fotografias. Como nesta entrevista para a emissora TVE. Na gravação, Caio está em frente ao sobrado espanhol. Também aparece em algumas imagens dentro da casa. Nelas, está trabalhando em seu microcomputador, que chamava de Robocop.

 

Por fim, aproveito para ressaltar que já escrevi sobre Caio Fernando Abreu e a importância da preservação de sua casa. Para ler este texto, bastar clicar aqui.

Seguimos na luta em apoio à memória desse grande escritor!

Imagem: Caio F. Entre Nós: Caio na Memória Viva / Facebook

 

 

Voos Literários

Precisamos salvar a casa de Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
26 de outubro de 2021

A casa onde morava o escritor Caio Fernando Abreu, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, corre, mais uma vez, o risco de deixar de existir. Vazio, o imóvel está sendo depredado na parte externa por ladrões. O futuro do imóvel, no entanto, pode ser ainda pior do que apenas os furtos cometidos ao longo dos últimos dias. Já que a informação é de que a casa, localizada na rua Oscar Bittencourt, foi vendida para uma construtora, assim como outra moradia vizinha. Dessa forma, parece ser iminente a derrubada de um espaço de memória afetiva e literária de um dos maiores escritores brasileiros da atualidade. 

Algo ainda pode ser feito?

Em 2010, quando a antiga residência de Caio F. foi posta à venda, iniciou-se a campanha Salve a Casa do Caio Fernando Abreu. O movimento, apesar de ter sido expressivo e importante, acabou não atingindo seu objetivo: transformar o lugar em um centro cultural para celebrar o escritor. Na época, virou a casa de uma família, que procurou preservar, à sua maneira, a história do célebre ex-morador.

Memória afetiva e literária em risco

Uma década depois, o risco é ainda maior. Isto porque a demolição é o destino padrão de casas adquiridas por construtoras. Porém, será padrão e banal o passado que envolve esse imóvel? Apesar de o sobrado, em estilo espanhol, não ser uma referência em termos arquitetônicos, acredito que merece ser salvo por outros motivos. Como se sabe, o conceito de patrimônio histórico ultrapassa a questão material. É Memória, é História, é Cultura.

Além disso, a casa foi imortalizada na escrita do autor, em especial no livro Pequenas Epifanias. Era a residência de sua família há muito tempo e foi para onde retornou, em 1994, quando teve o diagnóstico de HIV confirmado. Nesse local, Caio redescobriu-se. Ali, tornou-se jardineiro e sua paixão por flores viraram pujantes textos sobre a luta pela vida, como em A morte dos girassóis:

“[…] tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera.”

Neste vídeo, é possível ver a casa de Caio F. antes da reforma promovida pelo proprietário mais recente do imóvel.

Luta pela memória

Porto Alegre é uma cidade que enfrenta inúmeros problemas. Entre eles, a dificuldade de preservar espaços de memória. Ainda há tempo para lutarmos pela criação de um local que possa abrigar não apenas homenagens ao escritor, mas ser um centro de cultura no bairro Menino Deus, área da capital gaúcha cada vez mais carente de atrativos nesse sentido. Aos admiradores de Caio, ressalto que considero sua importância maior do que a casa onde viveu. Mas acredito que Porto Alegre merece um local para celebrar o autor e sua obra.

É possível preservar?

Certamente, se houver interesse da construtora, ainda há possibilidade de se impedir a demolição do sobrado. Sem dúvida, seria um diferencial essa atitude da empresa, ao se tornar uma apoiadora da Arte. Em termos práticos, a preservação poderia ser parcial – a avaliação desta viabilidade deixo aos técnicos da área – ou total. Também sugiro que, ao invés de um novo espaço, a casa de Caio F. abrigue alguma instituição pública da área cultural que esteja em funcionamento em imóvel alugado. Exemplo disso é o Instituto Estadual do Livro, conforme me informa o amigo e historiador João de Los Santos. De qualquer forma, a ideia está lançada e espero não estar sozinha nesse desejo de preservação.

Caio Fernando Abreu e sua importância literária

O escritor da paixão, como uma vez foi chamado por Lygia Fagundes Telles, teve seus primeiros livros publicados em 1970. São eles: Inventário do ir-remediável, Limite branco e Roda de fogo (antologia com outros escritores do Rio Grande do Sul). Cinquenta e um anos depois, o autor segue com leitores fiéis, mesmo que sua partida precoce tenha ocorrido no já distante 1996.

Gaúcho de Santiago do Boqueirão, morador de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, com passagens pela Europa, a obra do autor é considerada por especialistas como universal e com evidente qualidade estética. Seu maior sucesso editorial foi Morangos Mofados, mas sua escrita é mais diversa e rica do que somente os contos pelos quais é geralmente lembrado. Ao longo da vida, Caio escreveu romances, textos teatrais, crônicas e poemas. Seu legado ganhou novos leitores nas redes sociais e demonstra a atualidade das temáticas abordadas, como a solidão urbana. 

Obras de Caio Fernando Abreu, por data de lançamento:

  • Limite branco (1970)
  • Inventário do irremediável (1970)
  • O ovo apunhalado (1975)
  • Pedras de Calcutá (1977)
  • Morangos mofados (1982)
  • Triângulo das águas (1983)
  • Os dragões não conhecem o paraíso (1988)
  • As frangas (1988)
  • A maldição do Vale Negro (1988)
  • Onde andará Dulce Veiga? (1990)
  • Ovelhas negras (1995)

Livros lançados após a morte de Caio

1996 – Pequenas Epifanias

1996 – Estranhos estrangeiros

1997 – Teatro completo

2002 –  Caio Fernando Abreu: cartas, com organização de Italo Moriconi

2005-6 – Três volumes da série Caio 3D, seleção da obra das décadas de 1970, 1980 e 1990, com alguns textos inéditos

2009 – Para Sempre Teu Caio F., cartas, conversas, memórias de Caio Fernando Abreu, de Paula Dip

2012 –  A vida gritando nos cantos, seleção de crônicas inéditas, e de Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu, organização de Letícia Chaplin e Márcia de Lima e Silva

2018 –  Contos Completos, de Caio Fernando Abreu

Imagem: Sandra La Porta

Voos Literários

Caio Fernando Abreu: Alteridade e Identidade

Flávia Cunha
25 de abril de 2021

Fãs de Caio Fernando Abreu (como eu) podem comemorar uma boa novidade. Trata-se de um novo livro com uma análise sobre contos do autor gaúcho. A obra, lançada recentemente, é Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade, de Mírian Gomes de Freitas. O livro é baseado em tese de doutorado da professora e escritora mineira, defendida no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.

O que esperar da publicação, um lançamento da Editora CRV

O conteúdo do livro de Mírian Gomes de Freitas enriquece, sem dúvida, a chamada fortuna crítica  – o estudo acadêmico – sobre Caio Fernando Abreu. Falecido em 1996, a obra de Caio segue com popularidade no mercado editorial, nas redes sociais e também no meio universitário. Os registros das primeiras pesquisas acadêmicas relacionadas ao escritor gaúcho datam ainda da década de 1990. É, portanto, evidente tratar-se de um legado amplo e de qualidade literária, além de abordar temáticas extremamente atuais. Os textos de Caio Fernando Abreu são presença frequente na coluna Voos Literários por esse motivo, como vocês podem ler (ou reler) aqui e aqui.

Fotos que dão leveza à leitura

Em primeiro lugar, gostaria de destacar a forma como a autora aborda duas das grandes inspirações literárias de Caio: Clarice Lispector e Hilda Hilst. Apesar da relação do autor gaúcho com essas duas grandes escritoras já ter sido objeto de estudo por parte de outros pesquisadores, Mírian consegue lançar questionamentos e observações interessantes para os leitores.

Além disso, a obra conta com diversas fotos do escritor, o que torna a edição prazerosa para os fãs, ao resgatar imagens de diferentes épocas de sua trajetória. Apesar de tratar-se de uma obra com cunho acadêmico, as fotografias dão uma certa leveza à leitura, tornando a análise mais interessante para um público não acostumado com teorias literárias.

Alteridade e Identidade

Na introdução de Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade, a pesquisadora explica como foi realizada a análise dos dois conceitos: 

“[…] o assunto da alteridade e da identidade é complexo e suscita questões que nos indagam como escapar do essencialismo e dos estereótipos para pensar o Outro. Então questionamos: de que forma podemos, hoje, compreender questões como a perda e a absorção de uma identidade pelos momentos de militância política, terror, torturas, prisões, exílio, trip contracultural, liberação e repressão sexual, AIDS, frequentemente evocados no contexto da literatura caioferdiana?”

Desenvolvimento do livro

Ao longo do texto, a autora analisa a influência da ditadura militar em narrativas do autor. O objeto são contos dos livros Inventário do ir-remediável e O ovo apunhalado. Também é abordada a desilusão de uma geração perante anos de autoritarismo em Morangos Mofados. Esta é, sem dúvida, a publicação de Caio F. mais conhecida do grande público. A pesquisadora também percorre as identidades fragmentadas presentes em Os dragões não conhecem o paraíso. O viés escolhido é a aparente contradição entre a busca do amor e a presença da Aids. Outro tema que merece destaque é as identidades queer no livro Ovelhas Negras. Uma das pertinentes referências bibliográficas utilizadas no estudo é Judith Butler, autora de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade e Relatar a si mesmo.

Judith Butler no Brasil

Aqui cabe um pequeno parêntese para quem não se lembra dos ataques à filósofa norte-americana, quando foi noticiada sua vinda ao Brasil em 2017.  Por ser uma das maiores referências em teoria queer, ela sofreu perseguições de conservadores. Uma petição chegou a conseguir 350 mil assinaturas em repúdio à presença de Butler em território brasileiro. O motivo, de acordo com essa visão distorcida, seria o fato de a filósofa ser propagadora da “ideologia de gênero”. O termo inventado por preconceituosos que não aceitam a diversidade sexual é uma mentira propagada até hoje pelo governo Bolsonaro e seus seguidores.

Por isso, no Brasil pandêmico e bolsonarista de 2021, é urgente falar-se sobre questões identitárias e fazer-se reflexões a respeito das consequências do autoritarismo a partir do golpe militar de 1964. Até nisso a obra de Caio Fernando Abreu mostra-se tristemente atual. Mas dar visibilidade para livros como esse é uma forma de resistência. Seguimos!  

Imagem: Arte sobre foto de Bob Wolfenson/ Editora CRV

 

Voos Literários

Caio Fernando Abreu: “Eu quero a vida”

Flávia Cunha
12 de setembro de 2020

Neste sábado, 12 de setembro, o escritor da paixão, como foi descrito por Lygia Fagundes Telles, completaria 72 anos se estivesse neste plano. Parece clichê, mas o legado literário de Caio Fernando Abreu permanece vivo, mesmo ele tendo partido no já longínquo ano de 1996. A obra de Caio F. (como ele gostava de assinar em cartas, em uma referência ao livro e filme cult Christiane F.), atingiu um patamar de universalidade, por conseguir abordar temáticas que permanecem atuais.

SEM TABUS

Um desses assuntos é o suicídio. Enquanto o tema era considerado tabu até recentemente pela mídia brasileira, Caio teve coragem para abordá-lo. Há referências à ideação de morte em textos de obras como Inventário do Irremediável (lançado em 1970), O ovo apunhalado (publicado pela primeira vez em 1975) e Morangos mofados, livro mais conhecido do grande público e que fez sucesso desde seu lançamento, em 1982.

SOBREVIVER É MELHOR

As tentativas de suicídio não foram apenas conteúdo ficcional. Caio chegou a reconhecer, em  entrevista na década de 1980,  que havia tentado se matar, mas tinha percebido que a vida era a melhor escolha:

Você nunca pensou em suicídio?
Já tentei três vezes. Mas eu era muito jovem e faz muito tempo. Não tentaria de novo. Adoro viver. Era uma atitude um pouco literária. Achava muito chique se suicidar aos 20 anos. Mas chique é sobreviver.

Confira a entrevista completa aqui.

EU QUERO A VIDA

Antes disso, na década de 1970, Caio escreveu um poema em que cita a palavra suicídio, mas desde a primeira estrofe enfatiza a importância de permanecer vivo:

“(sem título)

Eu quero a vida.

Com todo o riscos

eu quero a vida.

Com os dentes em mau estado

eu quero a vida

insone, no terceiro comprimido para dormir

no terceiro maço de cigarro

depois do quarto suicídio

depois de todas as perdas

durante a calvície incipiente

dentro da grande gaiola do país

de pequena gaiola do meu corpo

eu quero a vida

eu quero porque quero a vida.

É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu

deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal

certeza. É agora. É pra já. Não importa depois. É como a quero.

Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. Escrever. Traduzir. Em solidão. Mas é o que quero. Meu deus, a vida, a vida, a vida.

A VIDA

À VIDA.”

Para quem ficou interessado em conhecer a faceta poética do escritor, o livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreude Letícia Chaplin e Marcia Ivana de Lima e Silva, reúne mais de 100 poemas do autor.

Este é o primeiro de uma série de três textos da coluna Voos Literários que abordarão a importância da campanha Setembro Amarelo, de prevenção ao suicídio. 

Se, por algum motivo, você sentiu-se desconfortável ao ler sobre esse assunto, ligue para o CVV, que atende 24h pelo número 188. Voluntários treinados podem te ajudar a lidar com essa situação difícil.

Imagem: Acervo Caio F. Abreu – DELFOS/PUCRS.

 

 

Voos Literários

Chegamos a 150 voos literários

Flávia Cunha
3 de janeiro de 2020

Essa coluna completa hoje 150 textos publicados semanalmente. Os leitores que têm o hábito da escrita podem imaginar como é difícil manter a disciplina. É um desafio. E é impressionante como o processo de criação varia de acordo com o tema escolhido.

Às vezes, as palavras fluem imediatamente do documento em branco no computador, resultando em um post praticamente pronto, merecendo uma mera revisão. Em outras ocasiões, é preciso parar, refletir. Fazer pesquisas. Dar um tempo. E esperar que as ideias se acomodem internamente até resultarem no texto final. Mas acho que venho conseguindo cumprir a promessa que fiz à editora-chefe do Vós, Geórgia Santos: conectar a Literatura com a atualidade e provocar reflexões. E também incentivar a ideia que a leitura é libertadora e democrática. Um hábito que pode ser prazeroso, estimulante e, dependendo da obra escolhida, se transformar em um ato revolucionário, ainda que de revolução interna. Mas deixando a “egotrip” de lado e estimulada pela reflexão a respeito do exercício de escrita, resolvi abordar o processo criativo de dois escritores famosos e diferentes entre si: Clarice Lispector e Stephen King. .

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STEPHEN KING

O mestre do suspense, reconhecido por romances de grande fôlego, também é exímio na arte de surpreender com histórias curtas. No livro O Bazar dos Sonhos Ruins, o norte-americano brinda os leitores com enredos que flertam com o fantástico e o inesperado. Antes de cada conto, um presente para os mais curiosos: o autor revela como surgiu a ideia que resultou nos textos.  Já na introdução podemos observar o caráter confessional dessa obra de Stephen King:

“Você ficaria surpreso (ao menos, acho que ficaria) com a quantidade de pessoas que me perguntam por que eu ainda escrevo contos. […] Sou romancista por natureza, isso eu admito, e tenho um gosto particular por histórias longas que criam uma experiência de imersão tanto para o autor quanto para o leitor, onde a ficção tem a chance de se tornar um mundo quase real. […] Mas há algo especial nas experiências mais curtas e mais intensas. Podem ser revigorantes, às vezes até chocantes, como uma valsa com um estranho que você nunca mais vai encontrar, ou um beijo no escuro, ou uma bela raridade à venda sobre um lençol barato em um bazar. E, sim, quando minhas histórias estão reunidas, sempre me sinto como um vendedor ambulante, um que só vende à meia-noite. Exibo minha mercadoria e convido o leitor (você) a escolher o que quiser.”

Meu conto predileto entre os 20 publicados nesse livro é Garotinho Malvado, que tem uma singela explicação por parte de King para sua criação. O resultado é um enredo simples mas com doses de suspense e terror bem ao gosto de fãs do gênero :

“Em algum momento, decidi que queria escrever uma história sobre um garotinho malvado que se mudava para um novo bairro. Não um garoto que fosse literalmente o filho do diabo, não um garoto possuído pelo demônio no estilo O exorcista, mas só malvado por ser malvado, malvado até o último fio de cabelo, a apoteose de todos os garotinhos malvados que já existiram. Eu o via de short e com um boné com hélice no alto da cabeça. Eu o via sempre criando confusão e nunca se comportando.”

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CLARICE LISPECTOR

Já Clarice escolhe falar de seu processo criativo de forma mais indireta. A escritora cria em Um Sopro de Vida o alter ego de um autor, que escreve sobre uma personagem chamada Ângela Pralini. Em uma espécie de prefácio sem maiores explicações, o enredo começa a abordar os desafios da escrita, por parte desse autor-narrador-personagem: “Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida.”

Mais adiante, Clarice prossegue em sua divagação-confissão:

“Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço fundo.”

Em determinados trechos, o recurso da metalinguagem fica explícito:

“Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco – recém-saído do nada. […] Este livro é um pombo-correio. Eu escrevo para nada e para ninguém. Se alguém me ler será por conta própria e autorrisco. Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever. […] Cada novo livro é uma viagem. Só que é uma viagem de olhos vendados em mares nunca dantes revelados – a mordaça nos olhos, o terror da escuridão é total. Quando sinto uma inspiração, morro de medo porque sei que de novo vou viajar e sozinho num mundo que me repele. Mas meus personagens não têm culpa disso e eu os trato o melhor possível. Eles vêm de lugar nenhum. São a inspiração. Inspiração não é loucura. É Deus. Meu problema é o medo de ficar louco. Tenho que me controlar. […] Este ao que suponho será um livro feito aparentemente por destroços de livro. Mas na verdade trata-se de retratar rápidos vislumbres meus e rápidos vislumbres de meu personagem Ângela. Eu poderia pegar cada vislumbre e dissertar durante páginas sobre ele. Mas acontece que no vislumbre é às vezes que está a essência da coisa. Cada anotação tanto no meu diário como no diário que eu fiz Ângela escrever, levo um pequeno susto.”

Caio Fernando Abreu, um fã confesso de Clarice Lispector, também sentia essa necessidade incessante da escrita, como uma forma de manter-se vivo. Em Pequenas Epifanias, o escritor coloca uma epígrafe de sua própria autoria:

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“Continuo a pensar que quando tudo parece sem saída, sempre se pode cantar.

Por essa razão escrevo”

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Que encontremos soluções positivas e criativas para os becos sem saída desse momento sociopolítico brasileiro: escrever, pintar, dançar, cantar, encenar…. Modestamente, prossigo por aqui escrevendo, pois é meu instrumento de resistência. Desejo um feliz e potente 2020 aos leitores do Vós e da coluna Voos Literários. Sigamos!

Imagens: Reprodução/ Internet

Voos Literários

Mês Caio F. – Carta para muito além do muro

Flávia Cunha
26 de fevereiro de 2019

Impossível falar sobre o legado de Caio Fernando Abreu na literatura sem abordar seu hábito compulsivo de escrever cartas para amigos, familiares e pessoas do meio cultural. Era uma forma de desabafar, parabenizar outros escritores por suas obras, divagar sobre o seu processo criativo ou simplesmente expressar afeto pelos amigos que fez nas diferentes cidades e países por onde passou ao longo de sua vida.

Importante ressaltar que era uma época ainda pré-Internética, apesar do advento da informática ir avançando lentamente. Caio faleceu em 1996 e digitou seus últimos textos no Robocop, apelido carinhoso dado a um laptop que ele teve muita resistência em usar, por achar mais fácil seguir datilogrando sua querida máquina de escrever, batizada de Virginia Woolf. Hoje em dia, provavelmente Caio F. escreveria e-mails e mensagens frequentes  pelo whatsapp, porque o que importava para ele era comunicar-se.

Ítalo Moriconi, estudioso responsável pela publicação e organização do livro Cartas, lançado em 2002, considera que essa correspondência faz parte do trabalho de Caio como escritor, como comenta na introdução dessa obra:

Na medida em que o trabalho de Caio era escrever, as cartas fazem parte do mesmo movimento produtivo de que brotam suas crônicas, suas ficções, suas peças teatrais. suas resenhas e matérias jornalísticas, assim como presumivelmente seu diário, ainda não revelado ao público. Tudo produto de um mesmo processo de vida se fazendo na escrita, enunciação e enunciado condicionando-se mutuamente, escrita alimentado-se de vida, vida transcendida pelo simbólico, metáfora que universaliza.”

Em uma carta escrita à amiga Maria Lídia Magliani, Caio F. antecipa o desejo de revelar publicamente seu diagnóstico de HIV positivo.

Logo em seguida a essa carta, o escritor utiliza sua coluna no jornal O Estado de São Paulo para informar aos leitores sobre o assunto, um fato ainda considerado tabu na década de 1990. Primeira Carta Para Além dos MurosSegunda Carta Para Além dos Muros e Última Carta Para Além dos Muros são crônicas cheias de coragem e lirismo. Os três textos podem ser encontrados no livro Pequenas Epifanias, uma coletânea com crônicas incríveis do escritor.

Mas é em sua correspondência que podemos ver seu primeiro movimento nesse sentido, o de não tornar a Aids um segredo. Na carta abaixo, publicada na íntegra, Caio Fernando Abreu já demonstra a forma como encararia seu diagnóstico: sem medo, com um certo bom humor e revelando a gratidão pelo carinhos dos que o rodeavam. E com um amor à Vida renovado:     

São Paulo, 16.8.94

Magli querida:

Pois é, amiga.

Aconteceu — estou com aids — ou pelo menos sou HIV+ (o que parece + chique…), te escrevo de minha suíte no hospital Emílio Ribas, onde estou internado há uma semana… Ah, Magli, que aventura. Voltei da Europa já mal — febres, suadores, perda de peso (perdi — imagina — oito quilos), manchas no corpo — e sem um tostão. Não vou te contar todos os detalhes dolorosos dos dois últimos meses — mas meu santo é forte e mandou aquele nosso velho anjo da guarda chamado Graça Medeiros, vinda de NY porque o irmão de S. […] está terminal […] Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente. Ligando pra família e amigos, no 3o dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de “um quadro de dissociação mental”. Pronto-Socorro na bicha: acordei nu amarrado pelos pulsos numa maca de metal… Frances Farmer, Zelda Fitzgerald, Torquato Neto: por aí. Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho um no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de “Callas”, em homenagem a Tom Hanks) etc. etc. Não tenho nada, só um HIV onipresente e uma erupção na pele (citomegalovírus) que cede pouco a pouco… Maria Lídia, nunca pensei ou sempre pensei: por contas e histórico infeccioso feito com o médico, tenho isso há dez anos. E pasme. Estou bem. Nunca tive medo da morte e, além disso, acho que Deus está me dando a oportunidade de determinar prioridades. E eu só quero escrever. Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto criativo tipo Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard. E estou cercado de anjos. Minha irmã Cláudia — sempre a mais brava e bela — veio de POA. Ficou dois dias. Todos da família lidam bem com a coisa. Nair, a espantosa, não ficou nada chocada: já sabia… só ela sabia. Mas nunca duvide de mães. E amigos ótimos, visita todas as tardes, muito amor, maçãs e chocolates.

Ganhando alta aqui, mais uma semana, vou para POA. Quero ganhar forças para enfrentar Frankfurt e dois congressos na França em outubro/novembro. Não sinto nenhum rancor, nenhuma mágoa. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Passeio pelos corredores da enfermaria e vejo cenas. Figuras estarrecedoras. Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente — me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. Te amo muito. […] Beije Marijô por mim (adoro escrever Marijot).

Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga. Quero ajudar a tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino. Mas creia, estou equilibrado, sereno, e às vezes até feliz.

Muito amor, seu Caio F. (finalmente um escritor positivo!)

PS: Ouço muito Maria Callas, sobretudo a ária final da Butterfly, que Augusto me deu. Difícil ouvir outra coisa. PS: Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito in… Só choro às vezes porque a vida me parece bela (O sol. As cores. As coisas). Mas é de emoção, não de dor. Tá tudo certo. Love”

A coluna Voos Literários prestou, durante o mês de fevereiro, uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu. Foram textos que lembraram a trajetória do autor como cronista, contista e dramaturgo.

O assunto está longe de esgotar-se. Caio vive. Nas redes sociais, em eventos em sua homenagem e tendo cada vez mais leitores na nova geração.

Foto:  Reprodução/Internet

Voos Literários

Mês Caio F. – Um arco-íris em meio a dias nublados

Flávia Cunha
19 de fevereiro de 2019

Fevereiro é mês de homenagem da coluna Voos Literários ao escritor e jornalista Caio Fernando Abreu. Já abordamos Caio F. como cronista e contista. A obra do Caio dramaturgo talvez não seja tão pop nas redes sociais mas representa uma parte significativa de seu legado. O autor tinha uma relação muito íntima com o teatro, tendo chegado a frequentar – sem concluir – o curso de Artes Dramáticas da UFRGS (o mesmo aconteceu com a faculdade de Letras).

Ainda muito jovem, Caio F. chegou a atuar nos palcos e tinha uma relação muito próxima com diretores, atores e grupos teatrais. Por isso, nada mais natural que seus textos fossem encenados em diferentes ocasiões. Caio escreveu predominantemente para o público adulto mas me deterei em um texto aparentemente ingênuo destinado às crianças: A Comunidade do Arco-Íris.

O espetáculo estreou em Porto Alegre em 1979, sob direção de Suzanha Saldanha. A Comunidade do Arco-Íris é um refúgio para a Sereia, a Bruxa de Pano, o Soldadinho, a Bailarina, o Mágico e Roque, um guitarrista de rock n’roll. Todos vivem em harmonia nesse local idílico em meio à Natureza.

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Apesar de ter passado a vida garantindo não gostar de crianças (a quem chamava de “crionças”), Caio conseguiu abordar com habilidade para o público infantil assuntos complexos como ecologia, democracia e guerra, inserindo-os dentro da trama de forma convincente.

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Um exemplo dessas sacadas do autor em fazer conexões da fantasia com o mundo real é o momento dos personagens  explicarem porque resolveram morar na Comunidade. A Sereia aproveita para fazer uma crítica à falta de cuidado de empresas com o descarte de resíduos no meio ambiente:

– Eu estava cansada da poluição. Vocês sabem, essas indústrias e fábricas que vivem derramando porcarias nos rios e mares. Os meus primos peixes, coitados, estavam morrendo todos. Eu vivia suja de óleo. […] Agora, aqui, moro numa lagoa limpinha e sem poluição nenhuma.”

O Soldadinho justifica sua saída do Reino dos Homens por preferir a paz:

– Porque eu não tinha vocação nenhuma pra guerra. E lá tem guerra o tempo todo. Bombas, tanques, as pessoas se matando, um horror. O meu sonho era ser jardineiro. Aqui eu posso ter meu regador e molhar as flores todos os dias. Melhor do que ficar matando gente por aí, não é?”

Outro momento do enredo em que Caio F. aproveita para abordar cidadania com a criançada é depois da confusão provocada pela chegada ao local de 3 agitados macacos, que pedem para morar na Comunidade, porque não aguentam mais a bagunça da cidade. Os moradores da Comunidade do Arco-Íris demoram para chegar a um consenso, até surgir uma ideia:

 

SOLDADINHO – Desculpe, mas tenho uma solução democrática.

BRUXA – Demo o quê?

SOLDADINHO – De-mo-crá-ti-ca. Todo mundo tem direito de dar sua opinião. A maioria vence. Vamos votar?

OS TRÊS [macacos] – Isso mesmo! Democracia, queremos a democracia!

MÁGICO – Acho que é a solução mais honesta.”

A sugestão, banal para nossos olhos do século 21, pode ser vista como um pouco subversiva, já que em 1979 ainda estávamos vivendo sob um regime ditatorial no Brasil e nem todos os adultos achavam que a democracia era “a solução mais honesta” para o país.

A Comunidade do Arco-Íris tem uma reviravolta interessante em seu desfecho, mas não vou estragar a surpresa para quem ficou interessado em sua leitura. A obra foi lançada recentemente em uma versão ilustrada mas também pode ser lida também no livro Teatro Completo.

De 1979 até os dias atuais, o texto para teatro infantil de Caio F. ganhou diversas montagens, demonstrando a importância das temáticas abordadas. E também, o quão pouco evoluímos, por exemplo, no descaso de empresas com o meio ambiente (vide o descaso da Vale que resultou na tragédia de Brumadinho, só para ficar no episódio mais recente). E a democracia, exaltada pelos moradores da Comunidade do Arco-Íris, vem sendo constantemente ameaçada em pleno 2019, com muitos militantes dos direitos humanos tendo que autoexilar-se, com medo de serem mortos como Marielle Franco. Em momentos de desesperança, resta-nos a aposta nas futuras gerações. E é por isso que textos como esse de Caio F. são indicados sem moderação para a criançada.

Para fechar o mês de homenagens a Caio Fernando Abreu, na semana que vem recordaremos um dos hábitos mais célebres do autor: a escrita de cartas para amigos e familiares.

Foto: Darren Lewis / Public Domain Pictures

 

Voos Literários

Mês Caio F. – Sobrevivendo ao mofo

Flávia Cunha
12 de fevereiro de 2019

Em fevereiro, a coluna Voos Literários está prestando uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu, falecido em fevereiro de 1996. No primeiro texto, abordamos Caio F. como cronista. Porém, é impossível dissociar o autor do legado deixado por seus contos, em especial do livro Morangos Mofados, lançado em 1982. O nome da obra é uma referência a Strawberry Fields Forever, dos Beatles.

O livro é dividido em 3 partes, O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados (o conto-título em que um personagem solitário acredita ter uma doença grave, por sentir na boca um gosto acentuado da fruta mofada).

Um dos textos essenciais dentro desse livro é Os Sobreviventes, a história de dois ex-militantes do combate à ditadura militar no Brasil.

A partir do relato da personagem feminina, vemos todo o sonho de uma geração de jovens idealistas que tiveram que adaptar-se ao “sistema” para, assim, sobreviver.   Uma das primeiras pessoas a perceberem a qualidade literária da obra foi  a crítica literária e escritora Heloísa Buarque de Hollanda. O artigo Hoje Não é Dia de Rock publicado no Jornal do Brasil ainda na época do lançamento de Morangos Mofados foi tão emblemático que posteriormente foi incorporado a muitas reedições do livro.   No trecho abaixo, Heloísa destaca a importância do conto Os Sobreviventes dentro do conjunto de contos:

 Não há dúvida de que Caio fala da crise da contracultura como projeto existencial e político. […] Mas, insisto, a originalidade do seu relato nasce do partido que toma como autor e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de “sobreviventes” (que dão nome ao conto-chave do livro). Aqueles sobreviventes “vagamente sagrados” de Marx, Marcuse, Reich, Castañeda, Laing: “Bolsas na Sorbonne, chás com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, little darling-, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa sem conseguir engolir nem cuspir fora este gosto azedo na boca”.

 

A maior ironia talvez seja que nós, leitores brasileiros do século 21, estejamos, como os personagens do conto, tendo que lidar com militares no poder (ainda que agora seja pela via democrática das eleições). Como não ter um desencanto pelo momento atual? Como ter forças para seguir em frente?

Caio F. em sua sabedoria da década de 1980 de Os Sobreviventes, nos ensina:

[…] te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza […]”

Caio, tentaremos por aqui sobreviver da melhor forma possível. E seguiremos tentando lutar, com uma fé gigante em um futuro com mais Arte e menos armas.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários fará um resgate de Caio Fernando Abreu como dramaturgo, a partir da análise de A Comunidade do Arco-Íris, uma peça teatral infantil com abordagem ecológica.

 

Voos Literários

Mês Caio F. – A herança maldita da Ditadura

Flávia Cunha
5 de fevereiro de 2019

A coluna Voos Literários fará de fevereiro um mês para reverenciar o legado do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu. Gaúcho com projeção nacional e internacional (com edições especiais de seus livros para pelo menos 18 países além do Brasil), Caio F. como gostava de assinar em suas correspondências pessoais, partiu desse plano no já distante 25 de fevereiro de 1996. Escritor e cronista que acompanhava o seu tempo mas com o talento de mostrar-se eterno em suas reflexões, a obra de Caio é um prato cheio para podermos fazer comparações com o momento atual.

Se vivo fosse, não seria difícil imaginarmos como seus textos seriam enfrentativos (termo que ele gostava muito de usar) em relação à conjuntura sociopolítica brasileira do século XXI, com tanto conservadorismo, caretice e hipocrisia no ar.

Mas ao invés desse exercício de “acheologia”, prefiro mergulhar em um texto de Caio F. escrito na retomada do período democrático, após a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No panorama atual, em que figuras importantes do governo federal defendem cada vez mais sem pudores o revisionismo histórico em relação ao golpe militar, é importante analisarmos com cuidado o teor da crônica Um Prato de Lentilhas, que integra a excelente coletânea A Vida Gritando nos Cantos.

No texto publicado originalmente pelo Estado de São Paulo em 18 de fevereiro de 1987, o Caio-cronista faz um apelo aos governantes para que prestem atenção na situação crítica enfrentada pelo povo naquele período:

[…] Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se pode se chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nessa terra? Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? […] Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. [….] Em qualquer país decente (eu disse decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar – no braço, no dia a dia, o mínimo essencial para não morrer. […] Suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu to cobrando meus direitos. Porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. […] E não venham nos pedir paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados pra ter essa coisa mansa chamada paciência Era Brecht que dizia: ‘Trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral somente após comer.’ […] Quero meu futuro. Quero meus sonhos. […] Pra quem – desde que roubaram a minha juventude em 1964 –  eu posso reclamar?”

Após a leitura desse trecho da crônica, você aí pode argumentar: mas Caio Fernando Abreu estava se referindo ao governo Sarney, não tem nada a ver com a ditadura militar… Porém, assim como muitos atribuem a crise financeira enfrentada por Temer pós-impeachment de Dilma e agora por Bolsonaro à “culpa do PT, herança do PT”, como não pensar que o mesmo ocorreu a partir de 1985 com a saída dos militares do poder? O Brasil não era uma potência econômica com governantes fardados e virou um caos financeiro imediatamente após a entrada dos civis no governo. Por mais que os revisionistas de plantão tentem negar, a ditadura militar deixou como herança não apenas um rastro de tortura e censura, mas também uma dívida grande que foi enfiada goela abaixo dos brasileiros junto com a sonhada democracia. Meu conselho para quem encontrar pelo caminho alguma viúva da ditadura é mostrar textos como esse de Caio F., em que a desilusão pós-regime militar é palpável e inegável.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários analisará o teor contemporâneo do mais cultuado livro de Caio F., Morangos Mofados.  

Foto: Reprodução/Internet

Voos Literários

Vamos ligar o f*da-se?

Flávia Cunha
15 de janeiro de 2019

“A futilidade é uma arma essencial para a sobrevivência nestes hard times.”

A frase de Caio Fernando Abreu é um dos meus mantras atuais. Precisamos de momentos de escapismo para conseguir levar a vida nessa conjuntura sociopolítica. As notícias ruins jorram à nossa frente e contaminam nosso dia a dia e é difícil fugir e alienar-se quando estamos sempre conectados.

Para preservar a minha saúde mental, tenho criado situações de pura futilidade, sem nenhum remorso. Do ponto de vista literário, desde a campanha política de 2018 tenho me jogado na leitura de obras “menores” e experimentado até um gênero visto com desprezo pelos intelectuais: autoajuda.

Com uma ressalva. O livro pelo qual eu me apaixonei é de “anti autoajuda”. A Sutil Arte de Ligar o F*da-se, de Mark Manson, nos alerta, por exemplo, que não somos tão especiais como imaginamos. E é isso é ótimo porque nos tira uma carga de responsabilidade imposta por nós mesmos. É difícil ser genial, afinal se todos fossem excepcionais o conceito por si só perderia sentido.

Contextualizando para o nosso Brasil atual, meu capítulo preferido é Rejeição Faz Bem:

Como extensão de nossa cultura positiva/consumista, muitas pessoas foram ‘doutrinadas’ na crença de que devem tentar concordar e aceitar o máximo possível. Este é um dos pilares de muitos dos livros que pregam o pensamento positivo: abra-se para as oportunidades, aceite, diga sim a tudo e a todos, e por aí vai.”

Esse trecho me fez refletir sobre que nem sempre concordar e dizer “sim” é positivo. Vamos aceitar para sempre um emprego com chefe abusivo? Vamos rir da piada preconceituosa para evitar desconforto de quem acha que isso é humor? Vamos concordar com a opinião dos parentes que propagam ideias fascistas de higienização social e depois vão à igreja sentindo-se perfeitos cristãos?

O autor prossegue sobre o assunto nesse mesmo capítulo:

O desejo de evitar a rejeição a todo custo, de evitar o confronto e o conflito, o desejo de tentar aceitar tudo igualmente e de tornar tudo coerente e harmônico, é uma forma profunda e sutil de arrogância. Pessoas que pensam assim acham que merecem se sentir bem o tempo todo, aceitando tudo porque rejeitar algo pode causar desconforto a elas mesmas ou a outra pessoa. E como elas se recusam a rejeitar qualquer coisa, levam uma vida sem valores, egoísta e voltada para o prazer. […] A honestidade é um desejo natural da humanidade mas um de seus efeitos colaterais é nos obrigar a ouvir e dizer ‘não’. Desse modo, a rejeição aprimora nossos relacionamentos e torna a vida emocional mais saudável”.

Por isso, não dá para ser isentão nesse Brasil de ânimos tão acirrados só para ser o bonzinho da turma de amigos ou da família.  Claro que podemos escolher que batalhas valem a pena ser travadas. E em caso de verificarmos que o fascismo alheio é incorrigível, talvez o ideal seja darmos um tempo no contato com essas pessoas. 

Para ligar o f*da-se em 2019, precisamos estar de olho em nosso autocuidado e sobrevivermos com um mínimo de sanidade nesses ‘hard times’, como falava Caio Fernando Abreu.  

Foto:  Reprodução/Pinterest – Madonna, a rainha de ligar o f*da-se desde a década de 1980