No episódio desta semana, a confusão no governo de Jair Bolsonaro. Por que, confusão? Vamos lá. O presidente da República foi pressionado pelo Congresso e teve que engolir a queda do chanceler Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores. Em reação surpreendente, ele forçou a saída do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa. Mas não parou por aí. Ao todo foram seis trocas no primeiro escalão do governo que, em princípio, indicam uma tentativa de agradar o Centrão e ter mais controle sobre as Forças Armadas.
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Porém, porém, porém, parece que o pessoal não concorda com essa ideia de controle. Tanto que, em um movimento inédito, os três comandantes das Forças Armadas colocaram seus cargos à disposição
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Mas isso não significa que os militares tenham abandonado o governo, eles só não querem pagar o pato do desastre. Aliás, espalhou-se o boato de que essa debandada foi um protesto às ações antidemocráticas de Jair Bolsonaro, num movimento de preservação das instituições. Ora, gente, não sejamos ingênuos.Aqui, a gente não acredita que os militares sejam os guardiães da democracia brasileira. Por aqui, esse papo não cola.
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Estamos, inclusive, na semana de aniversário do Golpe de 64
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Será que essa movimentação toda significa uma escalada autoritária ou, pelo contrário, um enfraquecimento de Bolsonaro? Ou os dois? Afinal, nessa dança das cadeiras, ninguém sabe que música está tocando. Mas a gente sabe que os militares estão dançando.
Não esquecendo que milhares de brasileiros morrem todos os dias em função da Covid-19, em função da inoperância e irresponsabilidade do governo. O desempenho desastroso na pandemia é, inclusive, um ponto de pressão fundamental sobre Jair Bolsonaro. Talvez a gota água.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
A eleição de Jair Bolsonaro infectou a democracia brasileira com um vírus antigo
O vírus do autoritarismo
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Desde 2013 testemunhamos a fragilização do regime democrático no Brasil. No começo de tudo, as manifestações, depois um derrotado que não admite o resultado das eleições, o que leva a mais manifestações e um golpe institucional. Depois a preferência por um candidato autoritário. Até que chegamos à militarização do governo, mesmo conhecendo a experiência da Ditadura. Tudo isso levou a uma constante perda de direitos, aumento da já profunda desigualdade social e um crescimento da radicalização política no país. Como se não bastasse, em 2020, o mundo é assolado por um vírus novo. O novo coronavírus, que no caso do Brasil acentua os problemas gerados pelo vírus antigo e hoje temos milhares de mortos por completa inaptidão de um governo autoritário e militarizado.
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Vivemos, hoje, em uma democracia infectada
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Produção: Geórgia Santos e Raquel Grabauska. Texto, apresentação e edição: Geórgia Santos. Direção artística e locução: Raquel Grabauska. Trilha Sonora: Gustavo Finkler
Em 2012, eu tive um sonho com Brilhante Ustra. Um pesadelo, melhor dizendo. Embora minha recordação é de que tenha sido um sonho breve, foi algo tão intenso que eu o recordava nitidamente na manhã seguinte, ao ponto de me sentir capaz de registrá-lo. Publiquei um texto sobre ele no meu antigo blog, que hoje está offline.
Era assim:
“Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia – ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido.
A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:
– Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo…
Respondi, em um cochicho, com um tom de ironia:
– Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!
Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.
Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.
Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.
– O senhor precisa se levantar. É o hino – diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.
– Não vou me levantar – respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.
– Levante e saúde o líder – disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro.
Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.
– Não vou levantar. Não vou! – continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.
Acordo a instantes do linchamento.”
Hoje entendo que esse sonho foi profético. Para mim, nem é questão de acreditar nessas coisas ou não: basta comparar o que me restou de memória com o que vejo hoje, nos jornais impressos e nos sites de notícias, e a certeza é impossível de contornar.
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Lembro do arranjo de balas de grosso calibre que alguém achou por bem fazer para homenagear a Aliança Pelo Brasil, movimento fascista que finge desejar ser um simples partido político
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Lembro dos alucinados marchando e batendo continência para uma réplica da Estátua da Liberdade, em frente a uma loja da Havan. Lembro do parlamentar que transformou uma bandeira brasileira em terno, e de outro que vociferou frases horrendamente racistas em plenário, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Lembro do filho do presidente dizendo que, se os opositores não ficassem quietinhos, podia rolar um novo AI-5 – um desaforo que deveria resultar em cassação de mandato, embora eu tenha a triste certeza de que não chegaremos nem perto disso.
Lembro da ideia simplória e estúpida de que basta espalhar colégios militares pelas principais cidades brasileiras para a educação dar um salto de qualidade. Do presidente propondo, aos sorrisos, que militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem tenham carta branca para matar. Do governador do Rio de Janeiro metralhando favelas com helicópteros, comemorando a morte de um sequestrador com grotescos socos no ar. E lembro não só do então deputado federal (e agora presidente) evocando a memória de um torturador desumano para agredir Dilma Rousseff, como do chanceler distribundo o livro abjeto desse ser repugante como se fosse leitura recomendável, de sua viúva tomando chá com Jair Bolsonaro, dos que ostentam camisetas repugnantes defendendo que Ustra ainda vive.
A verdade é que Ustra, mesmo condenado em segunda instância, escapou-se da justa punição pelos horrores que perpetrou. E que, mesmo morto e enterrado, encontrou uma caricatural e grotesca forma de sobrevida.
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Tenho certeza que, a essa altura, Brilhante Ustra sorri no inferno
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É possível tirar o sorriso de escárnio do rosto morto do facínora? Não tenho dúvida de que sim. Mas acordar desse pesadelo passa por uma etapa fundamental – duas, na verdade: preservar a memória do que foi e não permitir que, mais tarde, se esqueça o que hoje está sendo. Se hoje a ideia burra e mentirosa de que “tudo era melhor na ditadura” ganhou força ao ponto de virar um elemento de debate, é porque o lado mais obscurantista do Brasil teve sucesso em manter e, depois, disseminar essa falsidade. Se hoje pessoas se dizem discípulas de alguém como Ustra, é porque há sucesso crescente na estratégia reacionária de reinventar a história. É contra isso que precisamos nos erguer, é isso que não podemos permitir. É assim que podemos nos libertar da idolatria a torturadores e assassinos, arremessar Ustra e outros de sua laia de volta ao abismo do qual jamais deveriam ter saído.
Caros leitores, embarquem no túnel do tempo da política reacionária brasileira, em que a tentativa de censura a livros é vista como uma batalha a favor da moralidade em pleno século 21.
Refiro-me, claro, à atitude vergonhosa do prefeito Marcelo Crivella de tentar apreender, durante a Bienal do Rio de Janeiro, a HQ Vingadores, a Cruzada das Crianças pelo “perigo” de mostrar um beijo entre dois personagens masculinos. O caso teve repercussão internacional e, para pavor dos conservadores de plantão, alavancou a venda do livro e a comercialização e distribuição de outras obras com temática LGBT durante um dos eventos literários mais importantes do Brasil.
Mas por que me refiro ao túnel do tempo? Porque Crivella parece ter se inspirado em um decreto de 1970, quando o militar Médici estava no poder sem ter sido eleito pela via democrática. Aquele período histórico que muitos agora tentam dizer que não existiu, sabem?
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Observem alguns trechos do Decreto-lei nº1.077 e vejam como a atitude de Crivella não tem nada de original
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[…] não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes;
CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;
CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;
CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum;
CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;
CONSIDERANDO que o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.
DECRETA:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
[…]
Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.”
Sob o argumento desse decreto, muitos livros foram censurados durante a Ditadura Militar, mostrando que a sexualidade era uma das paranóias daquele período, juntamente com a ameaça comunista. Exemplo disso é a escritora Cassandra Rios, que foi campeã em obras censuradas (um total de 36 livros) não por abordar questões políticas mas por escrever literatura erótica, com muitas personagens lésbicas presentes em seus romances. Antes da censura ser implementada pelo regime militar, foi a primeira mulher a vender um milhão de exemplares no Brasil e foi uma das primeiras pessoas a assumir a escrita de livros como única profissão em um país conhecido por escritores precisarem de outros ofícios para sobreviverem.
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Para encerrar esse texto anti-censura, vamos a um trecho de um dos romances “proibidões” de Cassandra Rios (Copacabana Posto 6/ A Madrasta), vetado pelos censores em 1975
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“Vocês, como eu, já recalcaram todas as piores mágoas que um ser humano pode ter. Primeiro aquela surpresa de que nossos gostos são diferentes, contrários aos bons costumes sociais, que temos que ocultá-los. Segundo, a vergonha da palavra: lésbica! Homossexuais!”
Há 55 anos, o Brasil ingressava em um período cruel de sua história, com os militares tomando o poder à força, com tanques nas ruas e apoio de parte da classe média e alta e da grande mídia. A partir de 1º de abril de 1964, iniciou-se um período de exceção no Brasil, com a cassação de direitos políticos de opositores; restrição de liberdades individuais; censura às artes e aos meios de comunicação; e uma série de outras medidas autoritárias, inclusive prisões extrajudiciais, o fim do habeas corpus, tortura, assassinatos e desaparecimentos . A tortura de militantes de esquerda durante a Ditadura é fato histórico. Afinal, os métodos utilizados pelos militares para silenciar quem se opusesse ao regime estão fartamente documentados e estudados pelo meio acadêmico.
Porém, nesses tempos de pós-verdade e fake news, temos parte da sociedade tentando encobrir e reinventar o passado
Querem até tornar o dia do golpe militar em uma data festiva, como se houvesse realmente algo a ser comemorado. Nesse cenário, o Vós e a coluna Voos Literários aderem à campanha #ditaduranuncamais. Em momentos como esse, mais do que nunca, é preciso honrar a História e a memória para evitar que atrocidades como a Ditadura Militar voltem a acontecer. Por isso, além das manifestações nas ruas, foram compartilhadas nas redes sociais livros e filmes com relatos sobre os 21 anos sem civis no poder no país, entre 1964 e 1985.
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Um homem torturado, um homem morto
Destaco aqui o livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar. A investigação feita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles conta a trajetória de Frei Tito, um religioso quepreferiu combater a ditadura com a força das ideias e da justiça social. “Na Universidade de São Paulo, onde participava ativamente do movimento estudantil, Tito chegou a ter momentos de dúvida e de incerteza sobre a possibilidade de conciliar Marx e Cristo. Assim como Tito, outros frades foram encarcerados porque eram considerados ‘terroristas’ por terem feito a ‘opção preferencial pelos pobres’ pregada pelo Concílio Vaticano II. Eram ‘subversivos’ por praticarem um Evangelho que tenta transformar o mundo. Eram ‘perigosos’ porque pregavam a liberdade e a igualdade. O ‘ópio do povo’ estava do outro lado, do lado da Igreja conservadora que não entendia aquele combate.”
Frei Tito foi preso, junto com outros religiosos, dentro do convento em que achava que sempre teria segurança. Os militares queriam Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), e usaram os frades para isso. Ele foi levado algemado para a prisão, na madrugada de 4 novembro de 1969:
Eram três horas da manhã. O provincial trocou de roupa diante de um policial armado, com a metralhadora apontada. Ao descer as escadas, viu frei Tito descendo já algemado, ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este cercara o prédio de madrugada, dando início à “Operação Batina Branca”, que consistia na invasão do Convento das Perdizes e na prisão dos dominicanos. No claustro, o policial fez o provincial aguardar por alguns minutos, encostado na parede, de mãos para trás. Fleury deu ordem aos policiais para colocarem frei Tito no camburão dos presos. Frei Domingos foi no carro do delegado, juntamente com frei Edson. Receberam ordem de sentar-se no banco traseiro da viatura, entre dois policiais armados de metralhadoras. Fleury foi no banco da frente, ao lado do motorista. Além de Tito, foram levados o dominicano italiano Giorgio Callegari e frei Sérgio Lobo.
Ao prender Tito, Fleury lhe disse: — Com gente da tua estirpe não temos piedade nenhuma. Somos pagos para isso. Sabemos que você tem muito para contar. Se não quiser falar, será pior. Te torturaremos. No Deops, o delegado havia enfileirado todos os presos num corredor. Frei Domingos só reconheceu frei Ivo Lesbaupin pela camisa. O rosto estava totalmente deformado pela tortura.
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Batismo de Sangue
A história também está contada no livro de memórias Frei Betto, um dos frades da Ordem dos Dominicanos presos na mesma operação. Batismo de Sangue – que também virou filme, dirigido por Helvécio Ratton (2006) – é um dos relatos mais importantes e tocantes sobre os horrores da ditadura e conta a história dos Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo. Todos foram terrivelmente torturados, mas o caso do Frei Tito é o mais emblemático e revoltante:
Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. […] Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia obre o cimento frio e sujo. […] Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria agüentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
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Frei Tito nunca se recuperou
Frei Tito não morreu naquele momento, mas também não sobreviveu. Além das marcas deixadas pela tortura física, as feridas emocionais sofridas nunca foram curadas. Cinco anos depois, já exilado na França, ele foi encontrado morto. A causa apontada foi suicídio. Sobre seu destino, escreveu o psquiatra Jean-Claude Rolland, em trecho do livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar:
Tito de Alencar foi submetido a torturas de tal forma cruéis, não somente do ponto de vista físico, mas também no nível psíquico, foi tão humilhado, que algo nele estava efetivamente morto. Na aparência, ele estava vivo, mas de fato era apenas um sobrevivente. Não há dúvida de que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas”
Por esse e muitos outros motivos: Ditadura Nunca Mais! Tortura Nunca Mais!
Recomendaram-me perguntar ao meu avô sobre o período que se iniciou em 1964. Não foi diretamente. Eu li em um daqueles cards mequetrefes que se proliferam em redes sociais como larvas do mosquito da dengue em água parada. Em um deles, de tom esverdeado e bem sem graça, lia-se o seguinte:
“Não acredite no seu avô gente boa, honesto e trabalhador de 80 anos, que viu tudo acontecer antes, durante e depois de 64, e até hoje diz que foi ótimo!Acredite no seu professor maconheiro de história, de 35 anos formado na USP, que mora com a mãe e diz que foi horrível demais!”
Depois da provocação colegial, foi a vez de um dos filhos do excelentíssimo senhor presidente da República desafiar os cidadãos brasileiros. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) não apenas celebrou o 31 de março de 1964, data do golpe, como agradeceu aos militares.
“Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”
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Eu perguntei
Essa bobagem de mandar perguntar para o avô é apenas uma nova versão de negação da História, de negação da ciência. Ignora-se a factualidade, as evidências, os registros. Tudo vira subjetivo e, de repente, relega-se o fato à opinião. Mesmo assim, eu perguntei.
Meu avô, o seu Orozimbo, é um homem de 85 anos e muito simples, apesar de bastante vaidoso. A vida aconteceu e a educação formal foi pouca. O que não o impede de ser muito inteligente e, principalmente, consciente. O vô é um cara curioso, ele não gosta de não saber das coisas. Então ele pergunta, pergunta muito. Sobre a internet; sobre política; sobre novas formas de fazer jornalismo, para entender meu ofício; sobre minha tese de doutorado; sobre outros países; novas experiências. Mas ele também tem muito a contar.
Nunca viajou de avião, mas conta com orgulho de quando andou de helicóptero na época em que serviu ao Exército Brasileiro, no início dos anos 1950. Ele tem várias fotos daquele período em que ele parecia ser mais alto e, definitivamente, mais magro. Dos tempos em que era caminhoneiro e motorista de ônibus, sobram contos sobre todos os cantos desse país. Ele conhece o Brasil muito melhor do que qualquer outra pessoa da família que tenha milhas e milhas acumuladas em companhias aéreas. Com relação à política, nunca se encolheu, e a escolha pelo MDB desde muito cedo deixa isso bastante claro. Ainda assim, eu perguntei.
Mas não perguntei agora, sob o comando do projeto de capitãozinho. Havíamos conversado sobre isso há muitos anos e tocamos no assunto de novo no período da eleição. Eu disse a ele que o candidato que liderava as pesquisas dizia que a Ditadura tinha sido boa.
“E tem gente que acha bonito, vô. Tem gente dizendo que a Ditadura tinha que voltar.” [Ele fez uma careta estranha, meio que duvidando.]
“É verdade, pergunta pra mãe. Esse cara diz que a época da Ditadura era melhor e as pessoas acham que é verdade.” [Ele olhou pra minha mãe, que estava preparando a salada de batata com maionese para o churrasco de domingo. Ela assentiu e disse, “é verdade, pai.”]
“Olha, a minha vida era boa, eu não tinha nenhum problema, mas também não tenho agora se tu for olhar. Mas não era assim pra todo mundo. Pergunta pro [nome da pessoa] como era, das vezes em que ele apanhou ou que não deixavam ele fazer reunião. E isso que eu tô falando de cidade pequena. Imagina em cidade grande. Não se podia falar contra. Nada, nada, nada. Quem falava, pagava. Só que as pessoas fingem que era tudo normal. Elas esquecem que tem coisas que a gente não mistura. Exército é Exército, política é política. E lugar do Exército não é no governo. Tudo tem seu lugar. Eu não tinha problema, mas não é porque não aconteceu nada comigo que tava tudo certo. As coisas não são assim, é errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.”
Como eu disse, meu avô é um homem simples e isso se expressa na forma como ele falou daquele período. Mas nada poderia ser mais cristalino. Não se podia falar nada contra. Lugar do Exército não é no governo. É errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.
Na última segunda-feira (25), o general Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência da República, informou que Jair Bolsonaro havia determinado “comemorações devidas” no dia 31 de março, data em que se iniciou o golpe em 1964. Dois dias depois, mudou o tom e disse que a ideia era “rememorar”, não comemorar. Bolsonaro mudou o tom, mas as comemorações entusiasmadas dos filhos dão o tom da celebração. Além disso, vídeo apócrifo que nega o golpe de 64 foi distribuído em canal de comunicação do Planalto. A Secretaria de Imprensa diz que o governo não produziu o material e nem sabe quem o fez, mas distribuiu mesmo assim.
A iniciativa não tem precedentes na América Latina. Na Argentina, o dia 24 de março é feriado, mas dedicado a lembrar e celebrar as vítimas da Ditadura civil-militar (1976-1983). O Dia da Lembrança pela Verdade e a Justiça reúne, todos os anos, manifestações contra um dos regimes mais sangrentos do período. No Chile, o dia 11 de setembro marca o golpe do General Augusto Pinochet e o bombardeio do Palácio de La Moneda, que deu início à Ditadura (1973-1990) e culminou com a morte do então presidente, Salvador Allende. Não é feriado, mas as escolas tem jornada reduzida e há homenagens. Mas não à Pinochet. Há entrega de flores em homenagem a Allende. No Paraguai, ninguém ousa celebrar o início da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) no dia 4 de maio. Recentemente, o ditador paraguaio, conhecido pela crueldade e, inclusive, acusações de pedofilia, foi elogiado por Bolsonaro, que o chamou de “homem de visão, um estadista”. No Uruguai, o dia 27 de junho é reservado para a memória das vítimas da Ditadura (1973-1985) do país. No Brasil, vivemos presos a um delírio coletivo provocado por amnésia recente. Só pode. Porque segundo meu avô gente boa, honesto e de 80 anos, a ditadura não era boa.
Eram choques pelo corpo todo. Na vagina, no ânus, nos mamilos, nos ouvidos. E os meus filhos me viram dessa forma. Eu urinada, com fezes. Por fim, o meu filho chegou para mim e disse: “Mãe, por que você ficou azul e o pai ficou verde?”. O pai estava saindo do estado de coma e eu estava azul de tanto… Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no corpo.
Maria Amélia de Almeida Teles foi presa com o marido, em 1972, e teve os filhos raptados
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Memória. É disso que se trata, é isso que não se pode apagar. Memória. Precisamos nos apegar à memória para não repetir os mesmos erros, não normalizar a brutalidade, não institucionalizar a violência, a morte. Memória.
Em nome da memória, reeditamos o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que trouxe relatos de vítimas de tortura durante o período da Ditadura Militar no Brasil. O roteiro foi escrito com textos extraídos de depoimentos à Comissão da Verdade e é interpretado pelos atores Angelo Primon, Vinícius Petry, Vika Schabbach e Raquel Grabauska.
A coluna Voos Literários fará de fevereiro um mês para reverenciar o legado do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu. Gaúcho com projeção nacional e internacional (com edições especiais de seus livros para pelo menos 18 países além do Brasil), Caio F. como gostava de assinar em suas correspondências pessoais, partiu desse plano no já distante 25 de fevereiro de 1996. Escritor e cronista que acompanhava o seu tempo mas com o talento de mostrar-se eterno em suas reflexões, a obra de Caio é um prato cheio para podermos fazer comparações com o momento atual.
Se vivo fosse, não seria difícil imaginarmos como seus textos seriam enfrentativos (termo que ele gostava muito de usar) em relação à conjuntura sociopolítica brasileira do século XXI, com tanto conservadorismo, caretice e hipocrisia no ar.
Mas ao invés desse exercício de “acheologia”, prefiro mergulhar em um texto de Caio F. escrito na retomada do período democrático, após a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No panorama atual, em que figuras importantes do governo federal defendem cada vez mais sem pudores o revisionismo histórico em relação ao golpe militar, é importante analisarmos com cuidado o teor da crônica Um Prato de Lentilhas, que integra a excelente coletânea A Vida Gritando nos Cantos.
No texto publicado originalmente pelo Estado de São Paulo em 18 de fevereiro de 1987, o Caio-cronista faz um apelo aos governantes para que prestem atenção na situação crítica enfrentada pelo povo naquele período:
[…] Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se pode se chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nessa terra? Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? […] Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. [….] Em qualquer país decente (eu disse decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar – no braço, no dia a dia, o mínimo essencial para não morrer. […] Suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu to cobrando meus direitos. Porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. […] E não venham nos pedir paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados pra ter essa coisa mansa chamada paciência Era Brecht que dizia: ‘Trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral somente após comer.’ […] Quero meu futuro. Quero meus sonhos. […] Pra quem – desde que roubaram a minha juventude em 1964 – eu posso reclamar?”
Após a leitura desse trecho da crônica, você aí pode argumentar: mas Caio Fernando Abreu estava se referindo ao governo Sarney, não tem nada a ver com a ditadura militar… Porém, assim como muitos atribuem a crise financeira enfrentada por Temer pós-impeachment de Dilma e agora por Bolsonaro à “culpa do PT, herança do PT”, como não pensar que o mesmo ocorreu a partir de 1985 com a saída dos militares do poder? O Brasil não era uma potência econômica com governantes fardados e virou um caos financeiro imediatamente após a entrada dos civis no governo. Por mais que os revisionistas de plantão tentem negar, a ditadura militar deixou como herança não apenas um rastro de tortura e censura, mas também uma dívida grande que foi enfiada goela abaixo dos brasileiros junto com a sonhada democracia. Meu conselho para quem encontrar pelo caminho alguma viúva da ditadura é mostrar textos como esse de Caio F., em que a desilusão pós-regime militar é palpável e inegável.
Na semana que vem, a coluna Voos Literários analisará o teor contemporâneo do mais cultuado livro de Caio F., Morangos Mofados.
Em O Fim da História, Gilberto Gil disse que não acredita que o tempo venha comprovar ou negar que a História possa se acabar. Na poesia, tanto pode findar quanto pode ficar. “Basta ver que um povo derruba um czar e derruba de novo quem pôs no lugar.”
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Mas e se o tempo vier a comprovar que a História se pode negar?
Ao longo de duas décadas, entre 1964 e 1985, houve suspensão de direitos políticos; não havia eleições para presidente; o Congresso foi fechado; houve restrições à liberdade de imprensa e manifestação; perseguição à oposição; censura à classe artística; exílio forçado; e uma série de outras atrocidades. Os relatos de tortura colhidos pela Comissão da Verdade são assustadores. Choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, cadeira do dragão, estupros, tortura com animais fazem parte de um triste rol de performances desempenhadas pelos militares brasileiros por mais de 20 anos. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
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Pessoas foram torturadas. Pessoas desapareceram. Pessoas foram assassinadas
Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”
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O presidente eleito ignora os livros de História para eleger as memórias de um torturador como obra de cabeceira. A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (2006) foi escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI, um dos órgãos mais atuantes na repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Para historiadores, sociólogos e cientistas políticos, não se pode considerar que o livro ofereça precisão histórica. Dr. Tibiriçá, como era conhecido, foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o regime, em 2008. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
O problema em negar a História é que ela é cíclica. Quando se nega a história, ela volta a acontecer. Quando normalizamos autoritarismo e tortura, volta a História e reescreve o capítulo cujo título era pra ser “Nunca Mais”. “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, e assim por diante. Tanto faz.
Faltava a caserna se assanhar. Agora, não falta mais nada
Igor Natusch
4 de abril de 2018
Brasília - O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Entre os muitos legados negativos do governo de Michel Temer, a recondução dos militares para o centro do debate político certamente estará entre os mais danosos. À intervenção no Rio de Janeiro, sem estratégia ou linha de ação, seguiram-se ridículas relativizações do caráter ditatorial do regime militar brasileiro, ainda mais servis e deploráveis vindas de quem fez carreira como constitucionalista. A fala insensata e afrontosa do general Villas Boas, que nem vou citar aqui porque já ganhou bem mais citações do que merece, já recebeu a primeira resposta do governo: um afago do ministro Carlos Marun, elogiando o “democrata” que apenas “demonstrou preocupação”. O Planalto já garantiu que vai ficar quietinho.
Enquanto se revezam, os homens do governo, em bajular o general e jogar panos quentes sobre sua verborreia, atiçam-se os reacionários saudosos da ditadura, enquanto as casernas ficam mais e mais inclinadas a achar que a solução da crise política passa por eles, que políticos não são e nem devem ser.
O que cometeu o general Villas Boas é algo intolerável em qualquer democracia. O Anexo I do Regime Disciplinar do Exército, que trata das transgressões, explicita, entre os artigos 56 e 59, as vedações para manifestação política por parte de militares da ativa – incluindo, no item 59, “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”. Atuar pela estabilidade dos Três Poderes também é uma de suas obrigações. Se o leitor ou leitora acha que a fala cheia de insinuações do general não provocou discussão política nem prejudicou a estabilidade do Judiciário, bem, aí eu não posso fazer mais nada.
A diatribe do general deveria ser imediatamente repudiada por todos os setores democráticos. Nada disso: o Judiciário em geral finge que não ouviu, o TRF-4 chega a dar like no tweet onde a transgressão foi cometida. A Presidência da República, é claro, nada dirá, pois Michel Temer faz um dos governos mais minúsculos já vistos por essa nação, completamente submetido à inglória tarefa de salvar o próprio couro. Com sorte, vai para a história apenas como frouxo e vendilhão, e não como traidor que rifou o Brasil e a democracia para escapar de acusações das quais parece incapaz de se defender.
O Jornal Nacional, ao invés de questionar a conveniência de uma declaração dessas em momento de enorme tensão, encerra sua edição lendo a fala de Villas Boas na íntegra – apenas isso, lendo e dando boa noite, sem nenhum comentário adicional. Folha de S. Paulo e Estadão, para mencionar apenas dois, prestam-se alegremente ao papel de megafone para militares da reserva que bravateiam o retorno do arbítrio. Publicam com destaque anúncios pagos chamando para protestos de verde e amarelo, onde bonecos representando ministros do STF são queimados ao som de Black Sabbath.
Em um cenário desses, tudo tornou-se possível, até mesmo os mais lúbricos delírios dos generais de pijama. Mesmo porque, agora, eles não deliram sozinhos: têm a companhia de generais da ativa que mandam recados públicos ao Judiciário, além do braço forte de muitos jovens soldados com fotos de Jair Bolsonaro na cabeceira, saudosos de um passado glorioso que só existe em suas imaginações.
Os que sentem saudades do pau de arara acham espaço na mídia como se articulistas fossem, como se suas opiniões tivessem espaço na própria democracia que detestam. Para os grupos que vão às ruas nesses últimos dias, nunca houve problema com a corrupção: há, isso sim, um ódio primal e irracional a Lula, ao PT e às imagens difusas de esquerdismo que ambos evocam. Ou seja, nessa saudade doentia de um passado trágico, não nos faltam sequer os fantasmas comunistas de ocasião.
Que a democracia brasileira vive um período de convulsão, isso ninguém com o mínimo de bom senso discute. O núcleo do governo Temer é formado de homens atolados em denúncias de corrupção, enquanto o próprio presidente agarra-se ao foro privilegiado com unhas e dentes, gastando fortunas em emendas parlamentares para convencer um Congresso recheado de gente questionável a votar em seu favor. Ministros do STF dão entrevistas sobre casos que podem julgar como se falassem do futebol do fim de semana, enquanto membros do Ministério Público tratam a si mesmos como protótipos de Messias e fazem jejum para combater a impunidade.
A cadela que pariu o cão bastardo está sempre entrando no cio, e o que não falta no Brasil é ração para alimentar essa ninhada abjeta.
Ainda assim, o conceito de democracia – essa coisa que muitas vezes é miragem, outras tantas utopia, e que boa parte dos que a exigem estão dispostos a rasgar em pedaços na primeira oportunidade – merece ser preservado. É uma boa luta. E não é repetindo como farsa um salvacionismo trágico que só colocou o Brasil na lama que estaremos fazendo algo nessa direção. Ao general, cabe conter sua incontinência verbal e fazer a guarda das instituições em silêncio, ao invés de jogar querosene no fogo que pode consumir tudo que é seu dever proteger.