Do seu gênero

Mesmo com maior representatividade, percentual de mulheres no Congresso está abaixo da média da população

Évelin Argenta
4 de dezembro de 2018
Brasilia DF 11 07 2018-Sessão do Congresso Plenário da Câmara dos Deputados durante sessão conjunta do Congresso Nacional destinada a deliberação da Lei de Diretrizees Orçamentárias (LDO) e créditos suplementares (projetos de Lei do Congresso Nacional nºs 13, 9, 10 e 2 de 2018).Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

As eleições de 2018 mostraram um avanço das mulheres na Câmara dos Deputados.  Em 2019 teremos 50% mais mulheres na Casa Legislativa do que havia em 2015, quando as eleitas em 2014 tomaram posse. No pleito de 07 de outubro foram eleitas 77 deputadas federais, 26 a mais do que em 2014. Isso quer dizer que a nova Câmara vai ter 15% de mulheres na sua composição.

Mesmo com a melhoria na representatividade feminina de forma geral no legislativo, a proporção de mulheres segue abaixo do encontrado na população brasileira. No país, de acordo com dados do IBGE, a cada 10 pessoas, pelo menos 5 são do gênero feminino.

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Mulheres da Câmara Federal

Segundo dados colhidos pelo Vós junto ao Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), apesar do aumento no número de deputadas federais, três estados não elegeram nenhuma mulher para o cargo: Amazonas, Maranhão e Sergipe.

No caso das Assembleias estaduais, em 2018 foram eleitas 161 deputadas, aumento de 35% em relação a 2014. São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados que mais elegeram mulheres para a Câmara. O estado paulista terá 18 representantes mulheres, sete a mais do que no último pleito. Já o estado fluminense elegeu 12 mulheres. Em São Paulo está a deputada federal mais votada no país. A jornalista Joyce Hasselmann, do PSL – partido do presidente eleito Jair Bolsonaro – recebeu mais de um milhão de votos.

Ainda na Câmara dos Deputados, aumentou o número de negras: de 10 para 13 e de brancas: 41 para 63. Em 2019 também teremos a primeira mulher indígena no Congresso Nacional: Joenia Wapichana, da Rede, foi eleita por Roraima.

Dentro dos partidos

O PT (Partido dos Trabalhadores), que ficou com a maior bancada na Câmara, também foi o que mais elegeu mulheres: são 10 deputadas entre as 56 cadeiras que o partido conquistou. Em seguida vem o PSL (Partido Social Liberal), do candidato presidencial Jair Bolsonaro. Com nove mulheres, o PSL tem a segunda maior bancada na casa, com 52 parlamentares. Depois deles, o PSDB aparece em terceiro com maior número de mulheres na Câmara: serão oito deputadas entre os 29 eleitos.

O único partido que conquistou a paridade entre homens e mulheres foi o PSOL. O partido elegeu 10 parlamentares, cinco homens e cinco mulheres. O PTC também tem uma divisão de 50% entre os gêneros na bancada, mas elegeu apenas dois parlamentares e não atingiu a cláusula de barreira. O PCdoB, que também não atingiu a cláusula, chegou perto da paridade: cinco homens e quatro mulheres.

Família ê, família á…

Ainda segundo o Diap, pelo menos oito parlamentares eleitas em 2018 chegaram ao posto possuindo parentesco com políticos tradicionais. No Distrito Federal, por exemplo, a campeã de votos Flávia Arruda (PR) é mulher do ex-governador José Roberto Arruda. Do Espírito Santo, retornará à Câmara Federal, a empresária e música, Lauriete Rodrigues (PR), esposa do senador não reeleito Magno Malta. No Paraná, foi eleita a deputada mais jovem: Luisa Canziani (PR), que tem 22 anos. A estudante é filha do deputado Alex Canziani,que não foi eleito para o Senado Federal neste ano. No Rio de Janeiro, foi eleita Daniela do Waguinho (MDB-RJ), mulher do prefeito de Berlfor Roxo.

Outra deputada que chegará à Câmara com sobrenome tradicional na política é a advogada e empresária Jaqueline Cassol (PP), irmã do senador por Rondônia, Ivo Cassol. Entre as atuais deputadas, renovaram os mandatos: Clarissa Garotinho (Pros-RJ), filha do ex-governador Anthony Garotinho; Soraya Santos (PR), que é casada com o ex-deputado federal Alexandre Santos; e Rejane Dias (PT), a campeã de votos no Piauí (138.800), que é mulher do governador reeleito Wellington Dias.

Mulheres no Senado

Já no Senado, os dados do Diap mostram que a bancada de mulheres para os próximos quatro anos será menor do que a atual, apesar do número recorde de candidaturas no pleito. Conforme dados do Supremo Tribunal Federal, ao todo, 62 candidatas se cadastraram para tentar ocupar as 54 cadeiras. Com sete senadoras eleitas e uma vaga de suplente assumida, a Casa terá doze senadoras, uma a menos do que o grupo atual.

As sete novas senadoras que tomarão posse em 2019 são: Leila do Vôlei (PSB-DF), Eliziane Gama (PPS-MA),  Soraya Thronicke (PSL-MS),  Juíza Selma Arruda (PSL-MT),  Daniella Ribeiro (PP-PB), Drª Zenaide Maia (PHS-RN) e Mara Gabrilli (PSDB-SP).

BANCADA FEMININA *

PARLAMENTAR PARTIDO UF MANDATOS VOTAÇÃO 2018 IDADE SITUAÇÃO PROFISSÃO
Jéssica Sales MDB AC 28.717 38 Reeleita Médica
Perpetua Almeida PCdoB AC 18.374 54 Nova Professora e Bancária
Mara Rocha PSDB AC 40.047 45 Nova Empresária
Drª Vanda Milani SDD AC 22.219 65 Nova Magistrada
Teresa Nelma MDB AL 44.207 61 Nova Professora
Leda Sadala Avante AP 11.301 52 Nova Contadora
Professora Marcivânia PCdoB AP 14.196 45 Reeleita Professora de Ensino Médio
Aline Gurgel PRB AP 16.519 38 Nova Advogada
Alice Portugal PCdoB BA 126.595 59 Reeleita Química Industrial e Farmacêutica Bioquímica
Lídice da Mata PSB BA 104.348 62 Nova Economista
Profª Dayane Pimentel PSL BA 136.742 32 Nova Professora de ensino superior
Luizianne PT CE 173.777 50 Reeleita Jornalista e Professora de Ensino Superior
Celina Leão PP DF 31.610 41 Nova Administradora
Paula Belmonte PPS DF 46.069 45 Nova Empresária
Flavia Arruda PR DF 121.340 38 Nova Empresária e professora
Bia Kicis PRP DF 86.415 57 Nova Advogada
Érika Kokay PT DF 89.986 61 Reeleita Bancária
Norma Ayub DEM ES 57.156 59 Reeleita Servidora Pública Estadual
Lauriete PR ES 51.983 48 Nova Empresária e Música
Dra. Soraya Manato PSL ES 57.741 57 Nova Médica
Flávia Morais PDT GO 169.774 49 Reeleita Professora de Educação Física
Magda Mofatto PR GO 88.894 70 Reeleita Empresária
Greyce Elias Avante MG 37.620 37 Nova Advogada
Alê Silva PSL MG 48.043 44 Nova Advogada
Aurea Carolina PSol MG 162.740 35 Nova Socióloga e Cientista Política
Margarida Salomão PT MG 89.378 68 Reeleita Professora Universitária e Escritora
Tereza Cristina DEM MS 75.068 64 Reeleita Engenheira Agrônoma e Empresária
Rose Modesto PSDB MS 120.901 40 Nova Servidor Público Estadual
Professora Rosa Neide PT MT 51.015 55 Nova Professora
Elcione Barbalho MDB PA 165.202 74 Reeleita Empresária
Edna Henrique PSDB PB 69.935 60 Nova Delegada
Marília Arraes PT PE 193.108 34 Nova Advogada
Iracema Portella PP PI 96.277 52 Reeleita Empresária
Margarete Coelho PP PI 76.338 57 Nova Servidora Pública do Estado
Rejane Dias PT PI 138.800 46 Reeleita Administradora
Dra. Marina PTC PI 70.828 38 Nova Médica
Christiane de Souza Yared PR PR 107.636 58 Reeleita Empresária e Pastora
Aline Sleutjes PSL PR 33.628 39 Nova Agente Administrativo
Gleisi Lula PT PR 212.513 53 Nova Advogada
Luisa Canziani PTB PR 90.249 22 Nova Estudante
Leandre PV PR 123.958 43 Reeleita Engenheira
Daniela do Waguinho MDB RJ 136.286 42 Nova Professora
Jandira Feghali PCdoB RJ 71.646 61 Reeleita Médica e Música
Soraya Santos PR RJ 48.328 60 Reeleita Advogada
Rosângela Gomes PRB RJ 63.952 52 Reeleita Bacharel em Direito
Clarissa Garotinho PROS RJ 35.131 36 Reeleita Jornalista
Flordelis PSD RJ 196.959 57 Nova Administradora
Chris Tonietto PSL RJ 38.525 27 Nova Advogada
Major Fabiana PSL RJ 57.611 38 Nova Policial Militar
Talíria Petrone PSol RJ 107.317 33 Nova Professora
Benedita da Silva PT RJ 44.804 76 Reeleita Assistente Social
Natalia Bonavides PT RN 112.998 30 Nova Advogada
Silvia Cristina PDT RO 33.038 44 Nova Jornalista
Jaqueline Cassol PP RO 34.193 44 Nova Advogada
Mariana Carvalho PSDB RO 38.776 32 Reeleita Médica e Música
Shéridan PSDB RR 12.129 34 Reeleita Psicóloga
Joenia Wapichana Rede RR 8.491 45 Nova Advogada
Liziane Bayer PSB RS 52.977 37 Nova Pastora
Fernanda Melchionna PSOL RS 114.302 34 Nova Bancária e Bibliotecária
Maria do Rosário PT RS 97.303 52 Reeleita Professora
Angela Amin PP SC 86.189 65 Nova Professora
Carmem Zanotto PPS SC 84.703 56 Reeleita Enfermeira
Geovania de Sá PSDB SC 101.937 46 Reeleita Administradora
Caroline de Toni PSL SC 109.363 32 Nova Advogada
Adriana Ventura NOVO SP 64.341 49 Nova Administradora
Tabata Amaral PDT SP 264.450 25 Nova Cientista Política e Astrofísica
Renata Abreu PODE SP 161.239 36 Reeleita Empresária e Advogada
Policial Katia Sastre PR SP 264.013 42 Nova Policial Militar
Maria Rosas PRB SP 71.745 53 Nova Administradora
Rosana Valle PSB SP 106.100 49 Nova Jornalista
Bruna Furlan PSDB SP 126.847 35 Reeleita Bacharel em Direito e Empresária
Carla Zambelli PSL SP 76.306 38 Nova Gerente
Joice Hasselmann PSL SP 1.078.666 40 Nova Jornalista
Luiza Erundina PSOL SP 176.883 84 Reeleita Assistente Social
Sâmia Bomfim PSOL sp 249.887 29 Nova Servidora Pública Municipal
Professora Dorinha Seabra Rezende DEM TO 48.008 54 Reeleita Empresária e Professora Universitária
Dulce Miranda MDB TO 40.719 55 Reeleita Graduada em Direito

*A tabela acima foi organizada pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar e pode ser acessado através do site http://www.diap.org.br/

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #7 É preciso resistir?

Geórgia Santos
4 de novembro de 2018

O sétimo episódio do Bendita Sois Vós vem na sequência do resultado final das eleições de 2018, em que Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente do Brasil. Diante disso, perguntamos, é preciso resistir? Como resistir? Resistir a que?

A jornalista e cientista política Geórgia Santos conversa com os jornalistas Flávia Cunha e Igor Natusch e com o jornalista e professor Tércio Saccol. Além disso, Evelin Argenta traz depoimentos de mulheres e homens que sentem que, mais do que nunca, é preciso resistir a determinadas ideias. Como voz de inspiração, também há a declaração de Pepe Mujica, que diz que “a vida é uma luta permanente. […] Não há derrota definitiva, nem triunfo definitivo.”

 

PodCasts

Sobre Nós # 7 O direito ao delírio

Geórgia Santos
4 de novembro de 2018

Neste episódio do Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon recitam parte de “O direito ao delírio”, de Eduardo Galeano. Em um período pós-eleição, em que ainda se ensaia uma resistência, é preciso respirar. “Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.”

 

Samir Oliveira

As paradas LGBTs ecoarão resistência

Samir Oliveira
1 de novembro de 2018

Um sentimento muito forte de medo tomou conta de boa parte da população LGBT após a vitória de Jair Bolsonaro. Não é para menos. Os ódios mobilizados pelo presidente eleito fizeram desaguar o esgoto da internet. Não foram poucos os comentários celebrando a abertura de uma temporada de caça a homossexuais, pregando a morte de bichas ou até mesmo a criação de grupos de extermínio.

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Eu estou com medo. Meus amigos estão com medo. Especialmente aqueles que, assim como eu, integram a sopa de letras da comunidade LGBT

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As horas seguintes ao resultado das urnas foram de pavor. Os foguetes nas ruas pareciam comemorar o nosso fim. Em muitos lugares se ouviu barulho de tiros. Abriram a Caixa de Pandora e agora as manifestações de ódio correm soltas à luz do dia.
É impossível não ficar com medo. Mais do que impossível, é imprudente. O medo é um instinto natural de preservação. Não temos que lutar contra o medo. Temos que lutar apesar do medo. Ainda estamos elaborando o luto de uma eleição devastadora, em que o autoritarismo toma de assalto a democracia pela porta da frente, sem derrubar um prego.

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Precisamos entender como foi que chegamos até aqui. Este é o primeiro passo.

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Em seguida precisamos construir redes de acolhimento e espaços seguros para reuniões, encontros e diálogos. A organização da resistência passa também pela organização de cada um de nós, seja em partidos, em entidades da sociedade civil, em associações, em coletivos movidos por causas específicas. Cada espaço conta. Cada pessoa conta.

Ninguém pode ficar para trás. Este é o segundo passo. O terceiro passo é a nossa ação nas ruas. É lá que se dará o enfrentamento mais duro à política de Bolsonaro. É nas ruas que combateremos o ódio. E a comunidade LGBT tem seus próprios métodos para isso, sendo as paradas do orgulho a principal demonstração de força, de amor, de combatividade e de resistência diante daqueles que desejam a nossa volta ao armário.

O Rio Grande do Sul vai ter uma agenda intensa de paradas LGBTs neste final de 2018. A principal delas sem dúvida é a 22ª Parada Livre de Porto Alegre, que ocorre no dia 18 de novembro, na Redenção. Tradicionalmente o evento leva pelo menos 30 mil pessoas todos os anos para as ruas. O lema desta edição não poderia ser mais crucial: Resistir para não morrer.

Teremos pelo menos mais oito paradas até o final do ano. A maioria delas já possui data definida: Cachoeirinha (04/11), Sapucaia (11/11), Santa Maria (18/11), Porto Alegre (18/11), Caxias do Sul (25/11), Esteio (02/12), Pelotas e Rio Grande. A comunidade LGBT tem estado, junto com as mulheres, na linha de frente da resistência. Para nós, é uma questão de sobrevivência. Cada uma destas paradas deve ser um grito potente contra o projeto autoritário e intolerante de Bolsonaro. Estamos apenas começando. Onde querem armário, demonstraremos orgulho!

Geórgia Santos

O fim da História

Geórgia Santos
31 de outubro de 2018

Em O Fim da História, Gilberto Gil disse que não acredita que o tempo venha comprovar ou negar que a História possa se acabar. Na poesia, tanto pode findar quanto pode ficar. “Basta ver que um povo derruba um czar e derruba de novo quem pôs no lugar.”

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Mas e se o tempo vier a comprovar que a História se pode negar?

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A exemplo do que fez durante toda a eleição, o presidente eleito do Brasil disse, nas primeiras entrevistas após o resultado, que a população brasileira está começando a entender que não houve ditadura no país. Jair Messias Bolsonaro ainda relativizou a censura aos meios de comunicação do período do regime militar. O “mito” disse que algumas reportagens eram censuradas apenas para evitar o envio de mensagens cifradas para grupos que ofereciam resistência às autoridades. Segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”.

Ao longo de duas décadas, entre 1964 e 1985, houve suspensão de direitos políticos; não havia eleições para presidente; o Congresso foi fechado; houve restrições à liberdade de imprensa e manifestação; perseguição à oposição; censura à classe artística; exílio forçado; e uma série de outras atrocidades. Os relatos de tortura colhidos pela Comissão da Verdade são assustadores. Choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, cadeira do dragão, estupros, tortura com animais fazem parte de um triste rol de performances desempenhadas pelos militares brasileiros por mais de 20 anos. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”

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Pessoas foram torturadas. Pessoas desapareceram. Pessoas foram assassinadas

Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”

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O presidente eleito ignora os livros de História para eleger as memórias de um torturador como obra de cabeceira. A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (2006)  foi escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI, um dos órgãos mais atuantes na repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Para historiadores, sociólogos e cientistas políticos, não se pode considerar que o livro ofereça precisão histórica. Dr. Tibiriçá, como era conhecido, foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o regime, em 2008. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.” 

O problema em negar a História é que ela é cíclica. Quando se nega a história, ela volta a acontecer. Quando normalizamos autoritarismo e tortura, volta a História e reescreve o capítulo cujo título era pra ser “Nunca Mais”. “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, e assim por diante. Tanto faz.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós # 6 Nós estamos doentes?

Geórgia Santos
26 de outubro de 2018

Como uma última oportunidade de reflexão antes das eleições, a jornalista Geórgia Santos pergunta: nós estamos doentes?

O nível de violência desse pleito é anormal. Estamos fisicamente doentes, com dores musculares, problemas para dormir e transtornos de ansiedade. Mas talvez estejamos doentes enquanto sociedade. E relativizar autoritarismo, tortura, machismo, homofobia, e xenofobia talvez seja o sintoma dessa doença.

Participam do programa os jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Evelin Argenta conversa com Christian Dunker, psicanalista e professor titular do departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). No quadro Sobre Nós, Agressões. Relatos de pessoas que foram agredidas por motivação política durante as eleições de 2018.

Disponível no Itunes e Spotify

 

Raquel Grabauska

Um dia depois do primeiro turno

Raquel Grabauska
26 de outubro de 2018

Acordar triste e ter que explicar para o meu filho de sete anos os resultados das eleições. Eu estava até indo bem. Ele me fez umas 3500 perguntas. Quando expliquei que um dos motivos para não aceitar Bolsonaro era o fato de ele acreditar que mulher deve receber um salário menor por causa da gravidez, ele me disse:

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Mamãe, isso é um absurdo! A mulher engravida para dar vida para os homens!

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Eu deixei ele no colégio, dei tchau, andei 100 metros, desliguei o carro e chorei. Quero um mundo em que meu filho de sete anos não tenha que pensar nisso. Nem o teu filho. Nem o de ninguém. Que nenhuma criança ou adulto sofra por ser o que for. Cor, sexo, corpo, tamanho. Somos todos. Nossa diferença nos torna únicos. Por um mundo em que todos os iguais possam ser diferentes. É o que desejo para os meus filhos. Para os teus. Para os nossos.

Geórgia Santos

Nenhuma palavra é dita sem destino

Geórgia Santos
26 de outubro de 2018

Nenhuma palavra é dita à toa. Nenhuma palavra é dita sem destino. E as palavras de Jair Bolsonaro não são diferentes. Nos últimos anos, suas palavras ecoam pelo Brasil e encontram suas consequências pelo caminho. Encontram pessoas reais, que sofrem todos os dias em função do discurso que o “messias” insiste em reproduzir.

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Parece exagero?

Outros candidatos também cometem “atos falhos”?

É apenas brincadeira?

É fora de contexto?

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Se as palavras soltas ao vento não são suficientes para repensar o voto no candidato do PSL, proponho, então, que façamos todos um exercício de empatia: nomear os alvos. Preencha a lacuna com o nome de algum amigo ou parente e sinta na pele a força de uma palavra que encontra seu destino.

 

“Eu vou dar carta branca para a polícia matar.”

(Evento em Deerfield Beach, EUA, 8 de outubro de 2017)

Eu vou dar carta branca para a polícia matar o José.

Eu vou dar carta branca para a polícia matar o __________

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“Jamais iria estuprar você, porque você não merece … vagabunda!”

(RedeTV,  11 de novembro de 2003)

Jamais iria estruprar você, porque você não merece … Rafaela.

Jamais iria estuprar você, porque você não merece … _________

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O que o senhor faria se seu filho namorasse uma negra?

 “Ô, Preta, eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu.”

(CQC, TV Bandeirantes, 28 de março de 2011)

 “Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais.”

(Palestra no Clube Hebraica, abril de 2017)

Nem pra procriar o Marcelo serve mais.

Nem pra procriar a Leila serve mais.

 Nem pra procriar o ______ serve.

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 “Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher.”

(Palestra no Clube Hebraica, abril de 2017)

Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio a Marielle.

Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio a _______.

 

“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo.”

(Playboy em junho de 2011)

Seria incapaz de amar o Pedro. Prefiro que o Pedro morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.

Prefiro que o _________  morra num acidente do que apareça com um homem por aí.

O senhor já deu uns sopapos em mulher alguma vez?

“Já. Era garoto lá em Eldorado, uma menina que forçou a barra pra cima de mim.”    

(CQC, TV Bandeirantes, 26 de março de 2012)

Já. Era garoto lá em Eldorado e a Alice forçou a barra pra cima de mim.

 Já dei sopapos em mulher, eu era garoto lá em Eldorado e a ___________forçou a barra pra cima de mim. 

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“Vamos fuzilar a petralhada!”

(Discurso no centro de Rio Branco, Acre, 1 de setembro de 2018)

Vamos fuzilar o mestre Moa.

Vamos fuzilar o _______

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“Vai haver uma limpeza como nunca houve antes nesse país. Vou varrer os vermelhos do Brasil. Ou vão embora ou vão pra cadeia”.

 

 “O cara lá que tem uma camisa minha comete lá um excesso, o que é que eu tenho a ver com isso?”

(TV UOL, 10 de outubro de 2018)

Geórgia Santos

Entre a imparcialidade e a conivência

Geórgia Santos
24 de outubro de 2018

A imparcialidade é uma espécie de véu que se espera que os jornalistas vistam, como aqueles véus usados por carolas para ir à igreja aos domingos –  nem translúcido, nem opaco. É possível enxergar a silhueta por baixo do pano, mas o tecido não é transparente o suficiente para identificar as feições de quem o veste. Assim é a imparcialidade, um véu que, de certa forma, protege o jornalista de se deixar levar por paixões e afinidades que possam atrapalhar uma abordagem objetiva. A ideia por trás do conceito de imparcialidade é não privilegiar ninguém ou nenhuma parte quando se aborda qualquer fato.  Mas esse véu também está diante dos olhos. Esse véu também nubla a visão.

Faço parte do grupo de pessoas que entende que a imparcialidade é impossível de ser atingida. Não acredito que seja possível para uma pessoa – mesmo que treinada para exercer o jornalismo – se despir totalmente de suas convicções ao escrever uma reportagem. Nossas preferências aparecem até mesmo na escolha das palavras. Em uma cobertura que envolva uma ação do Movimento dos Sem Terra (MST), por exemplo, a escolha entre “ocupação” ou “invasão” já é suficiente para perceber a forma como o jornalista vê o movimento.

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O que não significa que o profissional não deva aspirar a imparcialidade. Podemos não ser imparciais, mas ainda devemos buscar a objetividade, a equidade e a verdade, obviamente. Essa é uma busca que não termina. 

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A questão é que aspirar ser imparcial e justo no exercício do jornalismo é uma excelente forma de disciplina e uma ótima maneira de atingir excelência no trabalho, mas a obsessão com a imparcialidade pode transformar esse traço do jornalismo contemporâneo em conivência, especialmente quando se trata de política.

O Brasil vive o que se pode chamar, com tranquilidade, de a eleição mais turbulenta da história democrática do país, que começa em 1985, depois de duas décadas de Ditadura Militar. Há inúmeros aspectos atípicos que envolvem esse pleito, desde a instabilidade política que se desenhou com os protestos de 2013 e foi agravada com a saída de Dilma Rousseff até a personalidade caricata de candidatos que, entre outras coisas, jejuam no monte. Mas há outras questões.

Pela primeira vez há um candidato que defende abertamente o regime militar e a tortura, a ponto de atestar que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” (entrevista à rádio Jovem Pan, junho de 2016). Pela primeira vez há um candidato declaradamente racista, que foi em um quilombo e disse que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais” (palestra no Clube Hebraica, abril de 2017). Ele ainda afirmou eu não “corria o risco” de um filho seu namorar uma mulher negra, porque, segundo ele, seus filhos foram “bem educados” (entrevista ao CQC, março de 2011). Pela primeira vez há um candidato claramente machista, que acredita que mulheres devem receber um salário menor que os homens em função do risco da gravidez (entrevista ao jornal Zero Hora, dezembro de 2014; entrevista ao programa SuperPop,  fevereiro de 2016). Pela primeira vez há um candidato assumidamente homofóbico, que disse ser  “incapaz de amar um filho homossexual”, que prefere que um filho seu “morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” ( entrevista à revista Playboy,  junho de 2011). Pela primeira vez há um candidato abertamente xenófobo, que disse que os imigrantes haitianos, senegaleses, iranianos, bolivianos e sírios são a “escória do mundo” (entrevista ao jornal Opção, setembro de 2015). Pela primeira vez há um candidato  que flerta com o autoritarismo a ponto de dizer que vai “acabar com todo o tipo de ativismo” e que afirma, com todas as letras, que a oposição “se quiser ficar aqui, vai ter se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para cadeia.”

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Ainda assim, nós, jornalistas, de maneira geral, vestidos com o véu da imparcialidade, hesitamos em dizer que se trata de um candidato de extrema-direita, racista, misógino, xenófobo e autoritário

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A busca pela imparcialidade, embora utópica, é muito importante. Mas não pode ser desculpa para tratar essa candidatura com equivalência. Não pode ser justificativa para não dar nome aos bois. Não pode ser motivo para ignorar o fato de que esse comportamento é inaceitável em uma democracia sadia. Até porque a excelência profissional não se esgota na neutralidade. No Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros está claro, no Artigo 6º, que é dever do jornalista:

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“I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; “

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A imparcialidade não pode, portanto, ser utilizada para acobertar os riscos que uma candidatura desse tipo representa. Se a busca é a objetividade, o público precisa ser informado sobre o significado do atual momento político e a desinformação precisa ser confrontada com jornalismo de qualidade. Já em 1947, a Hutchins Commission percebeu que não é suficiente relatar o fato, é preciso relatar a verdade sobre o fato. E tratar essa candidatura como qualquer outra não é imparcialidade, é conivência.

Não é crime um jornalista assumir como pensa, muito menos motivo para demérito ou descrença. O exemplo clássico disso é Homenagem à Catalunha, de George Orwell, uma das maiores obras da reportagem política. No último capítulo, Orwell escreve: “Caso eu não tenha dito isso em algum lugar no início do livro, direi agora: cuidado com meu partidarismo, meus erros factuais e a distorção inevitavelmente causada por ter visto os eventos de apenas um ângulo”. Ele completa: “Não acredite em mim.” E por causa de sua transparência, acreditamos.

Reporteando

O jornalismo pós-Bolsonaro

Évelin Argenta
22 de outubro de 2018

No apagar das luzes da eleição presidencial e sem a real perspectiva de que haverá alguma mudança no resultado, precisamos pensar em como serão nossos próximos, no mínimo, quatro anos. Falo isso como mulher, cidadã, mas, acima de tudo, como jornalista.

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Precisamos estar atentos e fortes para não jogar pelo ralo toda a liberdade que conquistamos ao longo do período democrático

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A eleição de Jair Bolsonaro (PSL), depois de 28 anos no Congresso Nacional sem ter apresentado produtividade condizente com o tempo que ocupa os corredores da Câmara, tem como fator fundamental a imprensa. Sob o pretexto de ridicularizar um parlamentar que não sabia de leis, não tinha presença marcante em comissões e se orgulhava em ostentar comportamentos misóginos, homofóbicos e racistas, fomos dando voz e cara a Jair Bolsonaro. Antes desconhecido, migrando de partido em partido, hoje exerce uma atração quase gravitacional em torno de uma sigla que só existe em função de seu nome. Jair Bolsonaro é, em parte, fruto da imprensa e do discurso construído em torno da Lava Jato.

O atual processo eleitoral, disputado principalmente no território virtual das redes, talvez revele mais sobre nós do que estávamos preparados para digerir. Diferentemente das reuniões fechadas, dos discursos enlatados preparados para a televisão, o atual processo contou com a voz ativa da população. Ao final nos descobrimos misóginos, racistas, homofóbicos e altamente egoístas. Sempre fomos assim, mas agora temos um legitimador, um líder, alguém que nos guia e nos representa.

Em momentos como os que se aproximam, a imprensa terá um papel fundamental, quase pedagógico. Será nossa função, mais do que nunca, dar voz aos descalabros vindouros, fiscalizar os eleitos, contestar os generais e, acima de tudo, insistir por informação pública. A era Bolsonaro talvez inaugure no Brasil o “sistema Trump de comunicação”, em que todos os avisos, decisões, opiniões, decretos e defesas serão feitos pelas redes sociais. O twitter será a agenda oficial do presidente e o Facebook sua rede de TV particular.

O advogado Francisco Brito Cruz, que é diretor do InternetLab – um centro independente de pesquisa em direito e tecnologia que está monitorando os tipos de propaganda usados pelas campanhas durante as eleições 2018 – faz uma avaliação interessante na Folha de São Paulo nesta segunda-feira (22). Muitos pesquisadores internacionais têm discutido que as pessoas antes se alimentavam em fontes que passavam pelos protocolos jornalísticos e que agora, talvez, estejam se alimentando menos nessas fontes, o que pode ter um impacto em termos de desinformação. Os veículos profissionais têm de competir por atenção com conteúdos de propaganda política travestidos de notícia.

Se a internet será o novo território da discussão pública, aos jornalistas caberá ainda mais resistência. O acesso a documentos públicos será cada vez mais difícil e a Lei de Acesso à Informação será utilizada de maneira diária para os fins mais banais. O represamento de informações precisará entrar na nossa rotina e precisaremos estar dispostos a buscar mecanismos que nos permitam continuar trabalhando.

Só para ter uma ideia do que nos espera, cito aqui um levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji. Do início deste ano até o primeiro turno das eleições, em 7 de outubro, 137 jornalistas em todo o país foram agredidos ou ameaçados enquanto trabalhavam na cobertura do processo eleitoral. Do total de casos, 62 se referem a agressões físicas e 75 a ataques e ameaças pela internet.

A pergunta dos próximos quatro anos será: Como lidar com a realidade de que o jornalismo sai desta campanha com a imagem de ser o partido de oposição? O discurso não ataca a concentração de poder da mídia ou um preconceito de classe, ataca a identidade da mídia, justamente no momento de maior crise do jornalismo como negócio. Ironicamente, nunca foi tão importante fazer jornalismo.