Samir Oliveira

Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro

Samir Oliveira
20 de novembro de 2019

Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.

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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?

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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.

O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.

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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.

Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.

A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil. 

Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.

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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.

Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.

Foto capa: Mídia Ninja

Samir Oliveira

Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho

Samir Oliveira
15 de julho de 2019

Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas. 

Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.

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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.

A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.

Foto: Julian Kettermann (Divulgação)

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Tradicionalismo e discriminação

A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.

Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.

O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.

Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.

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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.

Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.

Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.

A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.

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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.

Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!  

Samir Oliveira

As paradas LGBTs ecoarão resistência

Samir Oliveira
1 de novembro de 2018

Um sentimento muito forte de medo tomou conta de boa parte da população LGBT após a vitória de Jair Bolsonaro. Não é para menos. Os ódios mobilizados pelo presidente eleito fizeram desaguar o esgoto da internet. Não foram poucos os comentários celebrando a abertura de uma temporada de caça a homossexuais, pregando a morte de bichas ou até mesmo a criação de grupos de extermínio.

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Eu estou com medo. Meus amigos estão com medo. Especialmente aqueles que, assim como eu, integram a sopa de letras da comunidade LGBT

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As horas seguintes ao resultado das urnas foram de pavor. Os foguetes nas ruas pareciam comemorar o nosso fim. Em muitos lugares se ouviu barulho de tiros. Abriram a Caixa de Pandora e agora as manifestações de ódio correm soltas à luz do dia.
É impossível não ficar com medo. Mais do que impossível, é imprudente. O medo é um instinto natural de preservação. Não temos que lutar contra o medo. Temos que lutar apesar do medo. Ainda estamos elaborando o luto de uma eleição devastadora, em que o autoritarismo toma de assalto a democracia pela porta da frente, sem derrubar um prego.

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Precisamos entender como foi que chegamos até aqui. Este é o primeiro passo.

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Em seguida precisamos construir redes de acolhimento e espaços seguros para reuniões, encontros e diálogos. A organização da resistência passa também pela organização de cada um de nós, seja em partidos, em entidades da sociedade civil, em associações, em coletivos movidos por causas específicas. Cada espaço conta. Cada pessoa conta.

Ninguém pode ficar para trás. Este é o segundo passo. O terceiro passo é a nossa ação nas ruas. É lá que se dará o enfrentamento mais duro à política de Bolsonaro. É nas ruas que combateremos o ódio. E a comunidade LGBT tem seus próprios métodos para isso, sendo as paradas do orgulho a principal demonstração de força, de amor, de combatividade e de resistência diante daqueles que desejam a nossa volta ao armário.

O Rio Grande do Sul vai ter uma agenda intensa de paradas LGBTs neste final de 2018. A principal delas sem dúvida é a 22ª Parada Livre de Porto Alegre, que ocorre no dia 18 de novembro, na Redenção. Tradicionalmente o evento leva pelo menos 30 mil pessoas todos os anos para as ruas. O lema desta edição não poderia ser mais crucial: Resistir para não morrer.

Teremos pelo menos mais oito paradas até o final do ano. A maioria delas já possui data definida: Cachoeirinha (04/11), Sapucaia (11/11), Santa Maria (18/11), Porto Alegre (18/11), Caxias do Sul (25/11), Esteio (02/12), Pelotas e Rio Grande. A comunidade LGBT tem estado, junto com as mulheres, na linha de frente da resistência. Para nós, é uma questão de sobrevivência. Cada uma destas paradas deve ser um grito potente contra o projeto autoritário e intolerante de Bolsonaro. Estamos apenas começando. Onde querem armário, demonstraremos orgulho!

Samir Oliveira

Um agradecimento aos intolerantes

Samir Oliveira
13 de setembro de 2018

É isso mesmo, vocês não estão lendo errado. Hoje, nesta coluna, eu quero agradecer a todos os intolerantes de plantão, especialmente ao candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro, do PSL. Graças a ele a Companhia das Letras vai reeditar um livro que há anos estava esgotado no Brasil. Trata-se de Aparelho sexual e cia. O ataque que o candidato recebeu é inaceitável, porque coloca a disputa política no nível mais primitivo de enfrentamento. Bolsonaro e seus apoiadores estão aprendendo da pior maneira possível que adotar a violência como forma de fazer política é uma via de mão dupla. Este episódio, que rebaixa ainda mais a política brasileira – quando pensamos que isso não seria possível -, não muda a forma como o candidato do PSL vê o mundo, o que diz ou pensa. Pelo contrário: mesmo após ter sito vítima de violência, Bolsonaro segue incentivando o ódio, posando para fotos no leito do hospital fazendo referência a armamentos e tiros.

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Bolsonaro é um mentiroso contumaz
Mente sem sentir
Mente sem corar
Mente em rede nacional a quem quiser ouvir

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E o desespero de um Brasil em pedaços leva muita a gente a lhe dar ouvidos. Uma mentira recente foi dita em entrevista ao Jornal Nacional, quando apresentou o livro Aparelho sexual e cia como parte do suposto “kit gay” que seria distribuído nas escolas durante o governo de Dilma Rousseff. Esta mentira tem tantos lados que não sei nem por onde começar a desmentí-la.

O fato é que a menção ao livro resgatou sua popularidade, colocou a autora nos holofotes e fez com que a Companhia das Letras decidisse reeditá-lo. Por isso eu digo: obrigado, Bolsonaro. Desta vez, suas mentiras ao menos tiveram alguma utilidade.

O livro foi escrito pela francesa Helene Bruller e lançado em 2007 no Brasil. É uma obra publicada em mais de dez idiomas e com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos no mundo inteiro. A própria autora já declarou, em entrevista à Folha de São Paulo, que o pequeno Jair teria adorado o livro em sua juventudeMas o jovem Jair não leu este livro. E o adulto Bolsonaro deu um tiro no próprio pé ao espalhar mentiras a respeito da obra.

O  Ministério da Educação vem reafirmando, desde 2013, que nunca colocou este livro nas escolas. Aliás, o projeto de combate à homofobia nunca esteve voltado a crianças de seis anos de idade, como mente Bolsonaro. E, lamentavelmente, não saiu do papel porque Dilma Rousseff cedeu às pressões da bancada fundamentalista no Congresso. Em uma declaração profundamente infeliz, a presidente disse, à época,  que não cabe ao governo fazer “propaganda de opção sexual”.

Enquanto a velha esquerda se acanha e a nova direita avança, seguimos sem uma política nacional de combate à LGBTfobia nas escolas. Seguimos sendo o país que mais mata LGBTs no mundo. Seguimos expulsando jovens trans das salas de aula e empurrando essa população para as esquinas da noite. Seguimos apostando em muros ao invés de erguer pontes. Menos mal que, agora, os pais verdadeiramente preocupados com a educação sexual de seus filhos poderão comprar Aparelho sexual e cia na livraria mais próxima. Algo me diz que será um campeão de vendas. Um recado silencioso e potente de um Brasil que ainda resiste, apesar de tudo.

Samir Oliveira

Dia de orgulho – e luta

Geórgia Santos
28 de junho de 2018

Hoje é celebrado o Dia do Orgulho LGBT+

O 28 de junho nos leva à Nova York de 1969, quando frequentadores do Stonewall Inn reagiram à constante interferência da polícia no estabelecimento – motivada, obviamente, por intolerância. Para aquela noite estava programada mais uma batida policial no famoso bar gay de NY. Mas não foi o que aconteceu. Gays, lésbicas e travestis que estavam no local se rebelaram contra a ação e mudaram para sempre a história do movimento LGBT. O que era para ser (mais)  uma noite de opressão deu início a uma série de protestos pelo fim da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero. No ano seguinte, a resistência seria marcada pela primeira marcha do Orgulho nos Estados Unidos, movimento que inspirou tantos outros pelo mundo.

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Quase 50 anos depois, o 28 de junho é conhecido como dia de luta contra o preconceito. Conhecido como dia de Pride, de Orgulho de ser quem se é. Assim mesmo, em caixa alta.

 

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Até o movimento iniciado em Stonewall, a mobilização dos grupos gays nos EUA era focada na aceitação dos homossexuais. Então, a revolta de 1969 foi um divisor de águas na luta por direitos da população LGBT+. A partir daquele momento, ser gay passa a ser uma forma de desafiar também as estruturas sociais heteronormativas. Consequentemente, há um aumento importante no coro do movimento e uma série de conquistas fundamentais.

Mas ainda há um caminho longo pela frente, especialmente para o Brasil. Todos os anos o Grupo Gay da Bahia (GGB) monitora o assassinato de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. Os dados são assustadores: 2017 registrou um aumento de 30% nos homicídios de LGBTs em relação a 2016. Foram 445 mortes no ano passado e 343 no ano retrasado. O Brasil ainda ostenta o título de país mais violento do mundo para pessoas trans, por exemplo. Levantamento da ONG Transgender Europe indica que houve 868 mortes entre 2008 e 2016. O segundo colocado, o México, registrou 257 no mesmo período.

O Vós tem muito orgulho de fazer parte do grupo de defende e apoia o movimento pelos direitos LGBT+. A nossa forma de contribuir é trazendo à tona assuntos cruciais da comunidade para que a sociedade tenha elementos para refletir. E fazemos isso por meio desta coluna. Por isso, escolhemos alguns textos fundamentais que já foram publicados por aqui. Orgulhe-se!

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Não é qualquer crime, é crime de ódio – e ele só aumenta no Brasil
LGBTs no centro das decisões políticas – por que não?
Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital
Ativistas trans se reúnem em Porto Alegre para debater construção de políticas públicas e luta por direitos
Eu poderia ter sido uma vítima da “cura gay”
Samir Oliveira

Raja Gemini: “Drag começou como uma revolução”

Samir Oliveira
26 de abril de 2018

Raja Gemini é o nome artístico de Sutan Amrull. É a personagem criada por esta fabulosa drag queen que venceu a terceira edição do reality show RuPaul’s Drag Race, uma das maiores atrações de entretenimento LGBT atualmente.

A terceira temporada da série foi ao ar em 2011 e muita gente que hoje acompanha o programa pode nem tê-la visto. Em novembro de 2014, Raja esteve em Porto Alegre pela primeira vez, participando da segunda edição da festa XTRAVAGANZA DRAG PARTY. Se não me falha a memória, foi a primeira visita de uma vencedora de RuPaul’s Drag Race à cidade. Naquela ocasião, tive a oportunidade de conversar com Raja durante mais de uma hora.

A entrevista viria a ser publicada no site Nada Errado, de Minas Gerais. O site acabou saindo fora do ar e a entrevista infelizmente se perdeu, junto com as maravilhosas fotos feitas pelos queridos Felipe Matzembacher e Marcio Reolon. Hoje em dia o Nada Errado sobrevive no Medium, mas o registro do vibrante papo que tive com a Raja não está lá.

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Por isso faço este resgate e deixo aqui a íntegra da entrevista.
Raja e a cultura drag ainda têm muito a nos ensinar!

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Quando você começou a se montar?
Raja: Eu comecei a me montar aos três anos de idade. Eu vestia as roupas e jóias da minha mãe. Foi nessa idade que eu comecei a experimentar. Mas eu comecei a levar isso mais a sério na adolescência, a sair nos clubes em drag a partir dos 16 anos. Eu cresci num lar religioso, então isso fazia parte da minha rebelião, sair com meus amigos, ir para as festas. Essa era a minha primeira intenção. Foi quando eu fiz 18 anos que decidi que drag era algo que eu realmente queria fazer. A maior parte do início da minha vida adulta foi bastante queer, focada em gênero, em drag, em me transformar em uma linda mulher. Mas agora não é mais apenas sobre isso. Não é uma rebelião, é mais sobre a forma como eu me relaciono e me identifico comigo mesmo.

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Era uma batalha, era muito complicado para mim me expressar na minha família.

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Como foi a sua relação com os pais?
Raja: Era muito difícil para eles entenderem. Eu nunca realmente saí do armário para eles. Eu comecei a me montar muito cedo, então eles sempre souberam. Meu pai foi muçulmano durante 50 anos, depois ele se converteu ao cristianismo – o que é proibido – e se tornou um pastor. Então sempre teve esse aspecto religioso presente na minha família. Era uma batalha, era muito complicado para mim me expressar na minha família. Eu sempre tive muitos medos até ir para a faculdade, que foi quando comecei a me sentir mais à vontade, já vivendo fora da casa dos meus pais. Mas com o tempo foi ficando mais fácil para mim me expressar junto à minha família.

Quando tu começou a trabalhar como maquiador profissional?
Raja: Eu comecei a fazer drag e a trabalhar como maqueador no mesmo período. Eu queria ser maqueador porque eu também queria saber me maquear bem. Eu tinha uns 20 anos quando eu comecei as duas carreiras de uma forma mais profissional.

Como surgiu a decisão de tentar participar de drag race?
Raja: Foi uma decisão difícil para mim, porque eu já tinha uma carreira estabelecida. Eu sabia que o seriado estava se tornando popular, mas eu não sabia se isso iria realmente ser algo arriscado para minha carreira como maquiador. Eu pensava que as pessoas poderiam zombar de mim por estar participando de um reality show, como se eu não estivesse me levando a sério. Eu pensei muito sobre isso e cheguei à conclusão de que eu estava muito confiante também com meu trabalho como drag queen, então simplesmente me candidatei.

Foi a tua primeira tentativa?
Raja: Sim.

Que sorte!
Raja: Eu acho que as vezes as coisas apenas acontecem. Acho que quando fui escolhido para o seriado, isso demonstrou que a televisão estava pronta para algo diferente. Eu fiquei muito temeroso, porque eu era diferente. Eu achava que não fosse durar muito tempo, que eu não fosse ganhar. Eu achava que não iria durar nem meia temporada.

Quando tu entrou no seriado, tua carreira como maquiador era mais sólida do que a tua carreira como drag?
Raja: Eu era freenlancer, então às vezes eu tinha muito trabalho e às vezes não tinha nada. Se eu não conseguia me sustentar como maquiador, eu sempre tinha a opção de trabalhar como drag queen e vice-versa. Eu acho que tudo aconteceu quando tinha que acontecer, porque quando fui selecionado para drag race eu já estava pensando que eu tinha que me dedicar com muita seriedade a uma coisa ou outra. Eu já estava com 37 anos, eu tinha que levar isso a sério e crescer profissionalmente. Eu pensava que talvez pudesse me dedicar somente à maquiagem, mas foi aí que Drag Race aconteceu.

O que essa experiencia significou na tua vida?
Raja: Meus pais puderam ver o que eu fazia. Isso significou tudo para mim. Um ano depois de eu ganhar, meu pai faleceu. Antes disso ele pôde me ver como eu era. Eu lembro de sentir tanto medo de me expressar na frente dele. Eu sempre pensei: como vou explicar para ele que me visto com essas roupas engraçadas e faço shows nas boates? Ele nunca iria entender. E quando eu participei de Drag Race, meu pai pôde me ver fazendo algo que eu realmente gosto de fazer, que eu tenho orgulho de fazer. Para mim, fazer drag e participar daquela competição era minha própria versão de ser atlético, de ser forte.

Depois de tudo, ele acabou te apoiando?
Raja: Ele amou. Ele muito feliz e muito orgulhoso de mim. Isso foi o mais importante de tudo, juntamente com as amizades que eu fiz lá. Sou muito próximo da Manilla. Essa série mudou minha vida de muitas formas. Olhe onde eu estou agora: no Brasil! Antes de participar da série, fazer drag era apenas um fenômeno local para mim, eu trabalhava em Los Angeles, em Hollywood, agora tenho viajado muito.

No último episódio, Ru disse que você é uma pessoa bem introvertida. Você ainda se considera assim?
Raja: Eu acredito em Astrologia, eu acho que tem uma parte de mim que é, sim, bastante tímida. Nem sempre eu sei como me expressar em determinadas situações. Eu gosto de passar algum tempo sozinho, é assim que a minha mente funciona, eu acho que isso é algo poderoso. Então eu posso, sim, ser um introvertido, mas eu também posso ficar num palco, em frente a centenas de pessoas, e me jogar em direção a elas.

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No processo de estar em Drag Race, de poder competir e interagir com as outras participantes, me deixou muito mais seguro, porque comecei a perceber a força que eu tinha.

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E também no último episódio, quando Ru pediu para você listar suas qualidades e defeitos, você disse que pela primeira vez estava se enxergando como uma pessoa bela.
Raja: Eu acho que por um bom tempo eu usei drag como uma armadura para esconder qualquer insegurança que eu pudesse ter. No processo de estar em Drag Race, de poder competir e interagir com as outras participantes, me deixou muito mais seguro, porque comecei a perceber a força que eu tinha. Eu também finalmente percebi que, a essa altura, fazer drag já não era algo separado da minha vida. Já não havia mais um Sutan e uma Raja: eram os dois num só. Estar no programa me ajudou a perceber isso.

E fale um pouco sobre o estilo da Raja. Ela mudou muito com o tempo? Ainda brinca com as questões de gênero?
Raja: Até onde me lembro, nunca haviam considerado que eu adotava um estilo mais genderfuck até eu ter ingressado no programa. Na maior parte do tempo, eu sempre fui considerada linda e feminina, nunca haviam dito que eu fazia um estilo genderfuck. Eu acho que algo foi despertado em mim, nesse sentido, enquanto eu estava no programa. Mas, em geral, meu estilo não é tanto sobre gênero quanto é sobre criar uma ideia. Eu adoro ideias que são multiculturais, porque eu viajo muito e gosto de coletar influências de diferentes partes do mundo. Eu faço drag não porque quero me tornar uma mulher, mas porque quero expressar esse lado feminido. Eu faço drag porque eu amo as roupas, mais do que eu gosto da transformação. Só porque é um vestido, não significa que um homem não possa usá-lo. Se você fica ótimo em um vestido, você deveria usar esse vestido.

Você viveu na Indonésia dos 3 aos 10 anos. Como esse período influenciou na sua vida e na sua arte?
Raja: Influenciou tudo. Eu passei minha infância como um garotinho em Báli, totalmente envolvido naquela cultura, naquela espiritualidade, naquelas praias maravilhosas. Isso foi muito marcante para mim. Quando eu voltei para os Estados Unidos, já no início dos anos 1980, a primeira coisa que eu vi na televisão foi Boy George. Nós sequer tínhamos televisão na Indonésia. Quando voltei para os Estados Unidos, comecei a absorver todas essas referências, assitir aos clássicos de Hollywood, como uma esponja. Acho que crescer nesses lugares tão diferentes significou muito na minha vida, eu dou mais valor às coisas, porque cresci numa área muito pobre, então meu olhar sobre as coisas é bem diferente da maioria dos americanos.

Depois de ganhar, você disse que queria falar com as crianças, inspirar os meninos, dizer a eles que é tudo bem ser uma pessoa que não se enquadra.
Raja: Eu tenho feito tantas coisas desde então, eu vou dar palestras em universidades, em organizações LGBTs. Eu acho que meu diálogo com as novas gerações não é exatamente uma conversa direta, mas ocorre pela forma como eu vivo a minha vida. Eu nunca conversei com meus ídolos e meus heróis, eles nunca conversaram diretamente comigo. Mas eu assistia eles. Eu via Madonna, eu via RuPaul, eu via todos eles fazendo o que eles faziam e vivendo suas vidas de forma autêntica. E hoje nós temos as redes sociais, as pessoas vêm de todos os lugares entrar em contato pelo Instagram, pelo Twitter e pelo Facebook. Isso é maravilhoso.

Muitas pessoas mais jovens costumam te escrever e-mails, te contar sobre suas vidas?
Raja: Milhares de e-mails. Eu não consigo ler todos e acho que não tenho que ler todos. Muitas mensagens são parecidas. Eu estava no aeroporto aqui e dois garotos estavam me esperando. Duas adoráveis rainhas. É dessa forma que eu sei que estou fazendo a diferença, que, de alguma forma, sou um modelo para os mais jovens.

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Eu não conseguia entender porque as pessoas não gostavam de mim, eu nunca tive uma má intenção. Foi algo que me machucou muito, ver algumas pessoas sendo tão cruéis.

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Você também disse que, com a vitória, passou a ter muitos haters. Isso ainda continua ocorrendo?
Raja: Eu era muito novo em relação às redes sociais. Eu mal tinha uma conta no Twitter. Eu não conseguia entender porque as pessoas não gostavam de mim, eu nunca tive uma má intenção. Foi algo que me machucou muito, ver algumas pessoas sendo tão cruéis. Mas eu percebi que isso faz parte da nossa cultura. Eu tenho uma ótima amiga, a Dita Von Teese, nós nos conhecemos há quase 20 anos, e eu perguntei a ela como ela lida com isso? Ela disse: “Raja, se você ignorar eles, eles não existem”. Foi uma grande lição para mim. Se eu não os vejo, eles não podem me machucar. Então já fazem três anos desde a vitória e eu até que tenho gostado dos meus haters, porque quando eu leio o que eles escrevem ou ouço o que eles dizem, eu percebo que são besteiras, que eles têm muito medo daquilo que desconhecem e eu entendo isso. Eu acho que com o tempo eles vão acabar entendendo também.

Vocês são muito más umas com as outras no programa, isso é verdade ou é edição pelo show?
Raja: Eu acho que é uma competição e os produtores sabem como escolher diferentes pessoas para que haja esses tensionamentos. Eu não acho que a série faria tanto sucesso se todo mundo simplesmente se abraçasse, se amasse e dissesse como são lindos. Eu ficaria entediado vendo isso. Quando eu assisto um programa de televisão, eu quero ver tensão, drama. E Drag Race tem isso. Ainda que nós nos montemos, nós ainda somos basicamente garotos. Esse é o nosso esporte, é o nosso futebol. E muitos de nós nos tornamos verdadeiros amigos, trabalhamos em muitos lugares juntos. E são tantas drag queens, existe muita sororidade, somos uma comunidade e, inclusive, uma indústria.

Como uma vencedora, você tem sido convidada a participar de eventos para arrecadar fundos a causas sociais e do movimento LGBT?
Raja: Eu apoio muitas causas, mas eu acho que deveria participar mais, dedicar mais tempo a isso. É algo que eu quero fazer mais, até pela posição que eu ocupo. Não é algo que eu acho que faça o bastante, tanto quanto deveria.

Raja também está investindo na música, já lançou três singles. O que podemos esperar daqui por diante?
Raja: Eu nunca me considerei um músico ou um popstar. Eu estou aprendendo muito, eu sempre amei a música e agora consigo me expressar nesse sentido. Minhas influências são multiculturais, estou tendo muitas ideias. Eu tenho um apreço muito grande pela cultura oriental, pela mitologia, pela espiritualidade e pela iconografia, gosto de brincar com esses elementos. Eu não sei exatamente onde isso vai parar, mas vou continuar me expressando de várias formas e a música certamente será uma delas. Eu sei que não sou Adore DeLano, que tem um talento incrível, e não sou Courtney Act. Elas têm seus pontos fortes, ver tanta rainhas poderosas me fez perceber também onde está a minha força, que está no fato de eu conseguir me expressar visualmente.

Como foi seu tour pelo Brasil?
Raja: Maravilhoso. Eu nunca pensei que fosse voltar ao Brasil. Eu vim para cá há muitos anos, quando estava trabalhando em America’s Next Top Model, antes de Drag Race. Fiquei em São Paulo, mas estava trabalhando muito e acabei não fazendo muito turismo. E agora visitei três cidades diferentes: Recife, São Paulo e Porto Alegre – que é como São Paulo, só que mais tranquila e aconchegante. E o churrasco! Meu Deus! A primeira coisa que eu fiz quando cheguei foi comer um churrasco.

Que referências do Brasil você mais lembra?
Raja: Em palavras, eu sei dizer “ativo”, “passivo” e “versátil”, que eu prefiro chamar de Versache. Na minha primeira visita ao Brasil, eu me perguntava: como será que é esse país? Eu imaginava um país com muita natureza preservada e eu achava que todo mundo era sexy no Brasil, até mesmo avós e avôs, como se todo mundo natural e culturalmente tivesse muito sex appeal.

Ficou surpreso com a força da cultura Drag aqui?
Raja: Estou chocado. Os comentários e as mensagens de brasileiros vieram desde muito cedo para mim. Eu nem sabia como vocês nos assistiam, se Drag Race passava na televisão. Isso é maravilhoso. É incrível estar aqui, estou chocado, ver as pessoas tão entusiasmadas com meu trabalho me fez recarregar as energias.

Ouvi dizer que você gostou muito da Capirinha.
Raja: Eu já tinha tomado caipirinhas antes. Eu acho que é uma bebida bastante adequada para mim, é uma experiência muito forte, que mistura o sabor cítrico do limão com o doce do açúcar. Eu amo caipirinhas.

E o que você diria para quem está começando a se montar?
Raja: Encontrem-se. Sejam criativos. Não copiem ninguém. Tenham suas inspirações, seus modelos, mas não copiem. Porque drag começou como uma revolução, e é algo que deve ser sempre tratado desta forma um pouco revolucionária, política e espiritual. Outro conselho importante é: divirtam-se, sempre! Se eu não me divertisse, não estaria fazendo nada do que faço, de forma alguma.

Samir Oliveira

O candidato anti-LGBT perdeu na Costa Rica, mas suas ideias cresceram

Samir Oliveira
5 de abril de 2018
Foto: Fabricio Alvarado | Arquivo Pessoal

A Costa Rica acaba de sair do segundo turno de suas eleições presidenciais com um resultado que, por um lado, representa um alívio a todos os defensores dos direitos humanos, mas por outro acende um sinal vermelho de alerta permanente.

O candidato reacionário e anti-LGBT Fabricio Alvarado foi derrotado, mas suas ideias ganharam peso.

No pleito do dia 1 de abril o cantor evangélico e apresentador de TV Fabricio Alvarado ficou com 39,2% dos votos, sendo derrotado pelo jornalista e escritor Carlos Alvarado, que obteve 60,8% de apoio popular. A virada surpreendeu o país, invertendo o resultado do primeiro turno e contrariando a previsão das pesquisas de opinião, que demonstravam um cenário extremamente polarizado.

A Costa Rica é reconhecida como a democracia mais sólida da América Central. Talvez seja mais conhecida ainda por ser um dos poucos países do mundo sem Forças Armadas. Mas estas eleições trouxeram à tona outra faceta do país: o conservadorismo brutal de sua sociedade em temas como sexualidade e direitos humanos.

Estas duas questões transformaram-se no eixo do debate eleitoral. Apenas um mês antes do primeiro turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que a Costa Rica legalizasse o casamento civil igualitário. A decisão posicionou o assunto no centro de todas as campanhas. Enquanto o governista Carlos Alvarado, de centro-esquerda, celebrou a sentença, o oposicionista de direita afirmou que um eventual governo seu não respeitaria o julgamento e ainda retiraria o país deste importante organismo multilateral.

Fabricio Alvarado mobilizou os piores sentimentos do país com sua candidatura. Sob o pretexto de defender uma suposta “família natural”, foi totalmente contrário a qualquer concessão de direitos à população LGBT. Garantiu que sua primeira medida no governo seria a revogação de um decreto que protege servidores federais e usuários dos serviços públicos contra a discriminação.

Os pronunciamentos do presidenciável da direita beiraram as raias do crime ao defender a chamada “cura gay”, uma invenção reacionária do fanatismo neopentecostal.

“Estou de acordo em que as pessoas que queiram sair da homossexualidade devam ter um espaço onde sejam atendidas e restauradas”, declarou. Isso mesmo, o termo exato que ele utilizou foi este: restauração.

Fabricio Alvarado é uma espécie de Marco Feliciano costarriquenho. Ele chegou a dizer que a homossexualidade é uma invenção do Diabo. E o pior é que muita gente foi seduzida por sua retórica preconceituosa. “Quando o inimigo (o Diabo) consegue confundir sexualmente uma pessoa e desviar sua identidade sexual, o que está fazendo é destruir sua identidade em Deus”, declarou.

Felizmente o jogo virou no segundo turno e Carlos Alvarado viu sua votação aumentar de 21,7% para 60,8%. O candidato do governista Partido Ação Cidadã (PAC) representa a continuidade de um projeto de centro-esquerda desgastado e envolvido em denúncias de corrupção. Não faço aqui uma defesa de sua plataforma, que não empolga e definitivamente não representa qualquer novidade. Mas é preciso dizer que sua vitória foi uma vitória contra a homofobia e o preconceito. A derrota de Fabricio Alvarado simbolizou um levante da Costa Rica contra o crescimento da intolerância, tanto é que o índice de eleitores que compareceram às urnas aumentou do primeiro para o segundo turno.

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Mas o alerta que faço no título não é em vão

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Apesar de ter sido derrotado, Fabricio Alvarado garantiu uma sólida base social no país. Entrou na eleição como o único deputado de um partido pequeno, o Partido da Restauração Nacional (PRN), e saiu do pleito como o líder da segunda maior bancada no Congresso, com 14 parlamentares -à frente inclusive da bancada governista, que elegeu 10 deputados.

A vitória da homofobia e do preconceito no primeiro turno acendeu o sinal de alerta e a sociedade costarriquenha soube reagir à altura. Mas o crescimento estrondoso do PRN demonstra que o fundamentalismo religioso está a poucos passos do poder. E eles não vão desistir, por isso nós devemos seguir resistindo.

Samir Oliveira

LGBTs no centro das decisões políticas – por que não?

Samir Oliveira
29 de março de 2018

Em maior ou menor escala, o mundo inteiro assiste a uma crise brutal da democracia representativa. No Brasil não é diferente. O sistema, a política, tem muito pouco de democráticos. Pergunte aos LGBTs. Ou alguém realmente acha que chamar o povo para apertar um botão a cada dois anos é democracia?

As instituições estão distanciadas do povo, que não é chamado a decidir sobre a aplicação de políticas públicas. Mais do que isso: seus dirigentes estão encastelados em privilégios e temem a participação cidadã.

Há algumas maneiras mais ou menos eficientes de furar os bloqueios impostos por nossa racionada democracia. Uma delas é a criação de conselhos – órgãos vinculados à administração pública e compostos por integrantes da sociedade civil, sem caráter remunerativo. Assim temos conselhos municipais, estaduais e federais dedicados a diversas áreas. Os exemplos mais estruturados são saúde, educação e cultura.

Estas entidades atuam de forma a assessorar o poder público, mas também têm a missão de fiscalizar as ações, denunciar irregularidades, cobrar medidas efetivas e acompanhar execuções orçamentárias. O trabalho dos conselhos promove um controle social indispensável sobre os governos. Limita um pouco a sensação de “cheque em branco” que muitos imaginam receber do povo após uma eleição.

Com o avanço das lutas por direitos civis no país, novos conselhos foram se fazendo necessários nas diversas esferas de poder – como de mulheres, idosos e negros e negras. Mas ainda há um avanço que precisa ser concretizado: a criação de conselhos de políticas para a população LGBT. São raros os municípios que possuem algum tipo de estrutura pública voltada para esta comunidade. Porto Alegre, que poderia utilizar o prestígio político de ser a Capital para tornar-se uma referência ao restante do Estado, não possui um conselho LGBT.

Essa lacuna não existe por acaso. O preconceito dos governantes acaba afastando qualquer possibilidade de criação destes conselhos, ainda que os argumentos utilizados para isso sejam outros.

Mesmo quando, após muita pressão, a comunidade LGBT conquista a aprovação de um conselho municipal, acaba tendo que se mobilizar para impedir que o órgão torne-se uma correia de transmissão do governo e tenha seu caráter fiscalizatório e independente esvaziado.

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Resistindo às manobras

É o que ocorre neste momento em Pelotas, em que a prefeitura e entidades que apoiam o governo do PSDB na cidade tentam controlar a criação do Conselho Municipal LGBT. Um grupo de ativistas tem reagido a estas manobras e elaborou uma proposta de regimento interno para o órgão. Garantindo um funcionamento democrático, a eleição de seus integrantes e a paridade entre representações da administração pública e da sociedade civil. Um abaixo assinado para a implementação deste estatuto pode ser conferido aqui.

O caminho para a conquista de uma democracia real no Brasil é longo e árduo. A casta política não vai abrir mão de seus privilégios facilmente. Quem sempre decidiu tudo sozinho não está acostumado a compartilhar poder e a ouvir a população. Os mecanismos de participação popular através de conselhos não são perfeitos, nem são a única solução. É preciso combater seus vícios, como a eternização de velhas lideranças distanciadas de suas bases e a burocratização de suas estruturas, que sofrem tentativas permanentes de cooptação por parte dos governos.

O movimento que ocorre em Pelotas dialoga com esta necessidade de refundar fórmulas viciadas de participação limitada do povo nas decisões políticas. Esta mobilização não poderia vir de outro setor que não a população LGBT, historicamente colocada à margem do poder. Que Pelotas dê o exemplo que Porto Alegre se furtou de ser e coloque a comunidade LGBT no centro das decisões sobre as políticas públicas que lhe dizem respeito!

A foto (Harvey MIlk Foundation) de capa mostra Harvey Milk, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, em 1978, como supervisor da cidade de São Francisco. Um símbolo da luta LGBT por representatividade em cargos oficiais.

Samir Oliveira

Não é qualquer crime, é crime de ódio – e ele só aumenta no Brasil

Samir Oliveira
25 de janeiro de 2018

Todos os anos o Grupo Gay da Bahia (GGB) monitora o assassinato de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. É o mais próximo que existe de uma estatística oficial, ainda assim é algo bastante precário e totalmente subnotificado, pois o levantamento se baseia em notícias nos meios de comunicação. Ainda assim, os dados são assustadores: 2017 registrou um aumento de 30% nos homicídios de LGBTs em relação a 2016. Foram 445 mortes no ano passado e 343 no ano retrasado.

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A cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida no Brasil. A impunidade é a regra nestes casos, pois menos de 10% das ocorrências geraram abertura de processo e punição dos assassinos

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Estes dados já são assombrosos por si só. Tão devastadora quanto a realidade é a reação das pessoas com ela. Contrariando todas as indicações de cuidado com minha saúde mental e meu bem estar emocional, eu perdi um tempo considerável lendo caixas de comentários de notícias e postagens que repercutiram o levantamento do Grupo Gay da Bahia. A constatação principal que faço me surpreendeu, talvez porque eu esteja acostumado ao conforto da minha própria bolha: a maioria das pessoas não sabe o que é um crime de ódio.

Ou não sabem, ou não querem mesmo entender. O que observei foi uma reação emocional de pessoas cisgêneras e heterossexuais baseada na sensação de insegurança que vivenciam todos os dias. Este sentimento deu voz a uma resposta bastante absurda diante das informações reveladas pelo GGB. Algo como: “Milhares de pessoas morrem todos os dias” ou “Não importa se é gay ou não, muita gente é assassinada e nem por isso tem a visibilidade que os gays tem”. As versões mais canalhas simplesmente questionam: “E os heterossexuais assassinados?”.

Há uma confusão, intencional ou não, a respeito do conceito de crime de ódio. Como se os dados trazidos pelo Grupo Gay da Bahia se referissem a qualquer pessoa LGBT morta no país, e não somente àquelas que foram vítimas de homofobia, transfobia ou bifobia. É evidente que a violência no Brasil chega a níveis dramáticos e atinge todo mundo. Mas pessoas heterossexuais não são assassinadas por serem heterossexuais. Não sofrem preconceito devido à sua orientação sexual. Assim como quem é cisgênero não é vítima de transfobia. As mortes destas pessoas ocorrem pelos mais diversos motivos, que não envolvem ódio contra sua orientação sexual ou identidade de gênero. Motivos estes que também vitimam a população LGBT, aliás: latrocínios, mortes relacionadas ao tráfico de drogas etc.

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Os assassinatos de LGBTs monitorados pelo GGB não demonstram crimes comuns, mas crimes de ódio – e eles só vêm aumentando no Brasil

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Sensibilizar-se em relação a esta realidade não vai retirar de ninguém o direito à segurança. É preciso reconhecer que alguns grupos estão vulneráveis a tipos de violência que não atingem a maioria da população. Isso não significa, como incrivelmente muita gente pensa, que será criada uma casta privilegiada de cidadãos LGBTs, com direitos extraordinários ou acesso à segurança pública em detrimento dos pobres heterossexuais e cisgêneros entregues à própria sorte.

O que se reivindica são políticas públicas para uma realidade concreta: o combate ao preconceito contra LGBTs. Não é algo abstrato. O preconceito mata cada vez mais, como demonstra o relatório do Grupo Gay da Bahia. O enfrentamento a ele não se faz apenas com medidas de segurança pública ou com a criminalização de condutas ofensivas, mas especialmente com um trabalho preventivo nas escolas. Por isso é tão importante que se fale em gênero e sexualidade nestes ambientes, consolidando uma cultura de acolhimento e compreensão sobre a diversidade entre crianças e adolescentes. Para que o aluno que chama o coleguinha de viado hoje não se torne o assassino de amanhã.

Samir Oliveira

Por que as críticas a Pabllo Vittar são tão duras?

Samir Oliveira
4 de janeiro de 2018
Foto: Mídia Ninja

É bem possível que nenhum artista contemporâneo seja tão criticado no Brasil como Pabllo Vittar. Suas apresentações são minuciosamente analisadas. Qualquer deslize vocal torna-se imperdoável. O prazer em desqualificar seu trabalho revela a compulsão obsessiva de seus haters. A caixa de comentários – sempre ela – em qualquer post sobre a artista nas redes sociais e em portais de notícia comprova o que estou dizendo.

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Estou há algum tempo tentando entender esse fenômeno. Não encontrei respostas definitivas, mas tenho algumas hipóteses.

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Primeiramente, busquei no próprio sucesso de Pabllo Vittar a explicação para as críticas. Afinal parece natural que qualquer artista com uma grande base de fãs tenha, também, uma grande base de haters. Mas isso não é totalmente verdade. Caetano Veloso, Chico Buarque, Paul McCartney… Tento pensar em outros artistas com projeção multitudinária e não me recordo de ver nenhum deles gerar uma forte carga negativa de comentários em publicações a seu respeito.

Descartada esta hipótese, passo a focar na técnica vocal de Pabllo Vittar. Não entendo absolutamente nada de música e canto, tecnicamente falando. É claro que consigo identificar quando alguém desafina, quando algo está errado ou um pouco estranho. Mas é só. E Pabllo nunca me soou desconfortável de ouvir. Qual grande artista nunca desafinou, nunca falhou ao tentar atingir determinada nota ou alcançar um tom? Surpreendentemente, todos os haters de Pabllo Vittar tornaram-se críticos musicais de uma hora para outra, especialistas na mais fina análise de técnicas vocais.

https://youtu.be/EmxPMJ7UZ88

O mais recente campo de batalha neste sentido foi provocado por Ed Motta. Com mais de 400 mil seguidores no Facebook e um público cativo, o cantor postou um vídeo de Pabllo interpretando o clássico I Have Nothing, da Whitney Houston, no programa Altas Horas. Ed Motta não economizou elogios: “Eu chorei de verdade vendo porque não imaginava essa musicalidade, timbre lindo nas notas graves e quando atingiu as notas altas foi com propriedade. Depois conferi pelo YouTube que faz tempo que o talento dela é verdadeiro e genuíno”.

O comentário de Ed Motta enfureceu seus fãs, que se viram realmente perplexos e incapazes de entender como o ídolo poderia gostar de Pabllo Vittar. Cumpriram a própria expectativa do cantor, que, mesmo sem conhecer profundamente o trabalho da drag queen, já havia percebido que ela é alvo de críticas desproporcionais: “Muita gente denominada/inventada pelo mercado como ‘artista’ com grandes vendagens, premiações simuladas, não tem um terço da capacidade vocal de Pablo Vittar. Pablo faz um sucesso imenso, mas tem um exército de ódio yang que se incomoda profundamente com o que isso representa na sociedade obediente e engessada”.

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Só me restou uma última hipótese: a do preconceito. Relutei em aceitá-la, de tão óbvia e simples que aparenta ser. Mas é a única explicação plausível

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Veja bem, não estou aqui dizendo que quem não gosta de Pabllo Vittar é preconceituoso e homofóbico. Estou dizendo que preconceituoso e homofóbico é quem se orgulha de não gostar de Pabllo Vittar. Quem gosta de odiar seu trabalho, quem se incomoda com sua projeção e sente uma necessidade incontrolável de demonstrar a todo mundo o quão desconfortável se sente com a existência da artista.

O pior é quando utilizam outros ícones da arte LGBT para camuflar o preconceito. Como se gostar de Renato Russo, Freddie Mercury e Cazuza isentasse qualquer um de ser homofóbico. É o velho e bom “não tenho nada contra, inclusive tenho amigos que são”.

Discussões a respeito da qualidade técnica e artística de produções e agentes culturais são sempre perigosas. Primeiro, porque são extremamente subjetivas. Segundo, porque podem facilmente cair na vala comum do elitismo, que se expressa em todas as ideologias. Enquanto os conservadores de direita opõem uma certa noção elevada de cultura ao que se costuma classificar inferiormente como “cultura popular”, uma esquerda mais ortodoxa não cansa de responsabilizar as superestruturas da indústria cultural pela massificação de produções com suposta baixa qualidade. Um debate deste tipo está condenado a terminar pior do que quando começou.

O que importa é que uma drag queen de fora do circuito Rio-São Paulo, de origem humilde e vinda dos grotões do Brasil, esteja atingindo projeção internacional em sua carreira. No país que mais mata LGBTs no mundo, não é pouca coisa.

Foto: Mídia Ninja