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Bendita Sois Vós #79 O novo velho normal

Tércio Saccol
17 de novembro de 2022

Nesta semana, o governo do Brasil. O novo normal – ou o velho normal. E ainda, o futuro dos movimentos golpistas.

Pouco mais de duas semanas desde o resultado da eleição, o incumbente Jair Bolsonaro segue desaparecidos. Há relatos de que estaria com uma infecção na perna e mesmo deprimido. Fato é que não atua como presidente do Brasil desde o dia 30 de outubro. Mas não há vácuo no poder, não. Já temos um novo governo Lula.

A transição comandada por Geraldo Alckmin é entediante como deve ser e um excelente retorno à normalidade. Sem agressividade, ofensas ou abusos, sem misoginia, homofobia ou pura e simples grosseria. Há problemas a se apontar? Sim. Problemas normais, uma lufada de ar fresco.

Quanto à Lula, é a estrela da COP-27, no Egito. Não que o presidente eleito já não esteja envolvido em polêmicas, está. Alguns questionamentos são válidos, como a carona em avião de empresário. Outros, como o custo da roupa de Janja, apenas um indicativo de que vida de Lula não será moleza daqui para frente. Ainda assim, estamos aqui discutindo a sugestão do novo presidente de a COP de 2025 ser realizada na Amazônia, e não a recomendação de se fazer cocô dia sim, dia não.

A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

 

Vós Pessoas no Plural · Bendita Sois Vós #79 O novo normal
Igor Natusch

Reconstruir o Museu Nacional? Ah, vá.

Igor Natusch
3 de setembro de 2018
Um incêndio de proporções ainda incalculáveis atingiu, no começo da noite deste domingo (2), o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na zona norte da capital fluminense

“Não vamos medir esforços para reconstruir o Museu Nacional”

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A frase acima – ou palavras do mesmo efeito – foi dita por diferentes figuras da política brasileira diante do horrendo e desesperador incêndio que consumiu, ontem, o mais antigo e um dos mais importantes polos da história e ciência do país. Figuras como o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já vieram com esse papo.

Para acreditar na sinceridade de propósito dessas declarações, é preciso dispor de uma credulidade de deixar a Velhinha de Taubaté chocada diante de alguém tão ingênuo. Ou os nobres políticos estão milagrosa e subitamente dispostos a dar uma guinada sem paralelos na história de nosso país, ou estão apenas falando como políticos brasileiros costumam falar diante da tragédia, o que é muitíssimo mais provável.

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Ninguém vai reconstruir o Museu Nacional coisa nenhuma

E por vários motivos

Primeiro, porque é impossível. Há, com certeza, gente muitíssimo mais qualificada que eu para listar a quantidade incalculável de itens históricos e pesquisas – inúmeras delas em andamento – arruinadas pelo fogo. E mesmo elas terão dificuldade enorme em dar a real dimensão, absolutamente sufocante e desoladora, de tudo que se perdeu na Quinta da Boa Vista. Não são coisas que se possa reconstruir. Não são objetos empoeirados que alguém possa ter em uma gaveta de casa e doar para o poder público, ou que se possa adquirir em um brique ou brechó. Não existe máquina do tempo para nos ajudar.

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O Museu Nacional, pelo menos em sua maior parte, acabou, e uma grande fatia do que fomos, somos e poderíamos ser está perdida para sempre. Falar em reconstrução é até ofensivo, em semelhante panorama.

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Em segundo lugar, porque os esforços que agora dizem que não medirão já vêm sendo medidos, há décadas, quando se trata de investir na história, na cultura e na ciência do Brasil. Uma reforma – incompleta, mas urgente – do agora extinto Museu Nacional estava orçada em algo como R$ 22 milhões; a manutenção do espaço, com serviços básicos de limpeza e conservação estrutural, não ia muito além dos R$ 520 mil anuais. Mesmo redundante (já que dinheiro para conhecimento, no Brasil, nunca vem), importante frisar que esses valores, meros trocados para o gigantesco orçamento da União, vinham sendo negados ou contingenciados por diferentes governos – em 2018, o museu tinha recebido apenas R$ 54 mil até aqui. O simples fato de a UFRJ, gestora do espaço, estar há décadas às voltas com a falta de repasses federais já nos explica muito do problema que o Museu vivia e que resultou em seu aniquilamento.

Vivemos em um país que limita os já miseráveis gastos com educação por 20 anos, e eu vivo em um estado onde o governo é incansável no esforço de extinguir fundações públicas voltadas à pesquisa, produção e catalogação de conhecimento. O prefeito da cidade atingida pelo desastre demonstra nem saber direito para quê o museu servia, no fim das contas.

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Não existe lobby a favor da ciência no Congresso, não existe bancada das universidades ou gente brigando para incluir pesquisa e conservação no orçamento. Achar que isso tudo mudará de forma mágica é uma pureza de coração da qual, infelizmente, não compartilho.

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Por fim, nenhum político deve ajudar a reconstruir o Museu Nacional porque ninguém se importa, de verdade, com o assunto. Estamos em meio a uma disputa presidencial, e apenas duas candidaturas – Marina Silva (Rede) e a de Lula (PT), que deve ser assumida por Fernando Haddad – trazem propostas para uma política específica voltada a museus. Diante da tragédia, não são poucos os ignorantes que gritam tolices como pedir o fim da Lei Rouanet (responsável por grande fatia dos caraminguás que caem na conta dos museus para reformas e conservação), ou associam a tragédia com as convicções políticas da vez, de forma irresponsável e doentia. O descaso com a ciência e a produção do conhecimento não é exclusividade dos políticos, embora seja uma vergonha que cai fortemente sobre eles: é nossa, também.

Aqui achamos que universitário é vagabundo, que professor não pode fazer greve mesmo ganhando uma merreca, que incentivo à cultura e à ciência é dar dinheiro para gente que só quer mamar nas tetas do governo. Aqui a gente quer tutelar o que se ensina dentro da sala de aula, com um movimento esdrúxulo (Escola Sem Partido) que tem como líder um ator e sub-celebridade que jamais teve qualquer papel em discussões sérias sobre educação. Aqui a gente acha que ciências humanas não são ciência de verdade.

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Não surpreende, no fundo, que o museu mais emblemático do Brasil tenha virado cinzas: é apenas um retrato cruelmente acurado do que boa parte de nós, todos os dias, pede e exige para tudo que se refere a conhecimento nesse país.

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Sei que não sou, nem de perto, o primeiro a sugerir isso. Mas acho que não seria má ideia não reconstruir o Museu Nacional do Rio de Janeiro coisíssima nenhuma. Talvez fosse pedagógico deixar as ruínas do museu lá, ao sabor das intempéries, cobertas de fuligem até que o tempo se encarregasse de derrubá-las de vez. Seria um bom lembrete do nosso descaso por tudo que ele representava, por toda a riqueza que ele trazia dentro de si e permitimos que queimasse numa fogueira de desinteresse, oportunismo e burrice. Não seria uma resposta racional ao horror que testemunhamos, mas nada é racional nesse pesadelo de ignorância e descalabro em que mergulhou o nosso país.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Samir Oliveira

LGBTs no centro das decisões políticas – por que não?

Samir Oliveira
29 de março de 2018

Em maior ou menor escala, o mundo inteiro assiste a uma crise brutal da democracia representativa. No Brasil não é diferente. O sistema, a política, tem muito pouco de democráticos. Pergunte aos LGBTs. Ou alguém realmente acha que chamar o povo para apertar um botão a cada dois anos é democracia?

As instituições estão distanciadas do povo, que não é chamado a decidir sobre a aplicação de políticas públicas. Mais do que isso: seus dirigentes estão encastelados em privilégios e temem a participação cidadã.

Há algumas maneiras mais ou menos eficientes de furar os bloqueios impostos por nossa racionada democracia. Uma delas é a criação de conselhos – órgãos vinculados à administração pública e compostos por integrantes da sociedade civil, sem caráter remunerativo. Assim temos conselhos municipais, estaduais e federais dedicados a diversas áreas. Os exemplos mais estruturados são saúde, educação e cultura.

Estas entidades atuam de forma a assessorar o poder público, mas também têm a missão de fiscalizar as ações, denunciar irregularidades, cobrar medidas efetivas e acompanhar execuções orçamentárias. O trabalho dos conselhos promove um controle social indispensável sobre os governos. Limita um pouco a sensação de “cheque em branco” que muitos imaginam receber do povo após uma eleição.

Com o avanço das lutas por direitos civis no país, novos conselhos foram se fazendo necessários nas diversas esferas de poder – como de mulheres, idosos e negros e negras. Mas ainda há um avanço que precisa ser concretizado: a criação de conselhos de políticas para a população LGBT. São raros os municípios que possuem algum tipo de estrutura pública voltada para esta comunidade. Porto Alegre, que poderia utilizar o prestígio político de ser a Capital para tornar-se uma referência ao restante do Estado, não possui um conselho LGBT.

Essa lacuna não existe por acaso. O preconceito dos governantes acaba afastando qualquer possibilidade de criação destes conselhos, ainda que os argumentos utilizados para isso sejam outros.

Mesmo quando, após muita pressão, a comunidade LGBT conquista a aprovação de um conselho municipal, acaba tendo que se mobilizar para impedir que o órgão torne-se uma correia de transmissão do governo e tenha seu caráter fiscalizatório e independente esvaziado.

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Resistindo às manobras

É o que ocorre neste momento em Pelotas, em que a prefeitura e entidades que apoiam o governo do PSDB na cidade tentam controlar a criação do Conselho Municipal LGBT. Um grupo de ativistas tem reagido a estas manobras e elaborou uma proposta de regimento interno para o órgão. Garantindo um funcionamento democrático, a eleição de seus integrantes e a paridade entre representações da administração pública e da sociedade civil. Um abaixo assinado para a implementação deste estatuto pode ser conferido aqui.

O caminho para a conquista de uma democracia real no Brasil é longo e árduo. A casta política não vai abrir mão de seus privilégios facilmente. Quem sempre decidiu tudo sozinho não está acostumado a compartilhar poder e a ouvir a população. Os mecanismos de participação popular através de conselhos não são perfeitos, nem são a única solução. É preciso combater seus vícios, como a eternização de velhas lideranças distanciadas de suas bases e a burocratização de suas estruturas, que sofrem tentativas permanentes de cooptação por parte dos governos.

O movimento que ocorre em Pelotas dialoga com esta necessidade de refundar fórmulas viciadas de participação limitada do povo nas decisões políticas. Esta mobilização não poderia vir de outro setor que não a população LGBT, historicamente colocada à margem do poder. Que Pelotas dê o exemplo que Porto Alegre se furtou de ser e coloque a comunidade LGBT no centro das decisões sobre as políticas públicas que lhe dizem respeito!

A foto (Harvey MIlk Foundation) de capa mostra Harvey Milk, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, em 1978, como supervisor da cidade de São Francisco. Um símbolo da luta LGBT por representatividade em cargos oficiais.