Por muito tempo, até já adulta, eu não tinha certeza sobre onde me encaixava no espectro político. Eu nem gostava muito de politica porque não acreditava nos políticos. Não gostava de radicalismos. Meus pais votavam no trabalhismo ou na direita, mesmo não sendo radicais, e também não o faziam por ideologia. Minha madrinha já era esquerda roxa. Fazia greve e estava sempre lutando por direitos e igualdade.
Questionava-me se era possível gostar só de um político e não do partido dele, e vice e versa. Me arrepiava com o “Lula lá” desde 89, mas na minha volta sempre falavam mal do PT
Até o dia em que descobri que o posicionamento político da gente tem mais a ver com o nosso posicionamento na vida do que com qualquer outra coisa. Os dois tem extremos, e eu achava errado. Talvez por isso me sentia confusa. Mas foi só perceber que muitos são mais fortes que um só e que defender igualdade e direitos básicos dos cidadãos são obrigações. Foi só olhar para a história é perceber que grandes nações precisaram de radicalismos, de revoluções, para viverem de respeito pleno.
Que se preocupar com os outros e não só consigo mesmo, se revoltar com injustiças e desigualdades, não achar normal gente morando na rua e criança pedindo comida, querer mudar um pedacinho do mundo são parte de uma personalidade, da minha personalidade, genuína de que pensa no próximo, de quem não consegue se ver como indivíduo sozinho no mundo.
Eu cobri dois momentos tristes da nossa história: o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Eu cobri uma mobilização popular em cada um destes eventos, de gente que acredita tanto nestes valores que quer recuperá-los.
Acho que agora, já adulta e com a ajuda da minha profissão, minha pergunta foi respondida e as coisas ficaram mais claras. Sim, eu estou triste com o que estão fazendo com a nossa democracia. Sim, nós precisamos de novos líderes políticos e uma geração menos corrupta. Sim, há um grande líder, apesar de você.
Meu coração tá batendo como quem diz: não tem jeito. Canta Alceu Valença e canto eu. Ele canta que o coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Canto eu que o coração dos aflitos encolhe dentro do corpo. Coração bobo. Encolhe a cada palavra de ódio, encolhe toda vez que alguém perde a razão, encolhe sempre que a empatia se apaga, encolhe quando o absurdo se torna a verdade de alguns.
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O coração dos aflitos pipoca dentro do peito
O coração dos aflitos encolhe cada vez mais
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É como se a gente não conseguisse fugir do destino de que já não há mais coração. A gente se ilude dizendo: já não há mais coração. Canta Alceu Valença e canto eu. Já não há. Não pode haver diante do absurdo que se torna a verdade de alguns. Ontem mesmo, o procurador da República Deltan Dallagnol escreveu no Twitter sobre o que ele chamou de “Dia D da luta contra a corrupção na Lava Jato.” Nada fora do comum. É prerrogativa de ofício e ele já havia se posicionado sobre o tema da prisão em segunda instância. “Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além.” A derrota seria a concessão do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhuma novidade. Inclusive concordo que o precedente é perigoso, embora considere que a prisão em segunda instância talvez seja o precedente uma vez analisado o texto da constituição. Mas ele continua: “O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país.”
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Um procurador da República discorre sobre uma questão jurídica e espera que ela se resolva não com a análise de legislação do Estado laico em que vive, mas com oração, com jejum, com torcida. O absurdo que se torna a verdade de alguns está normalizado. Já não há coração que aguente. Não pode haver.
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Pouco tempo depois, o juiz federal Marcelo Bretas respondeu: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso país e do nosso povo.” Assim, em alguns minutos, duas autoridades transformaram uma discussão jurídica absolutamente válida em uma disputa entre o bem e o mal. Por meio da narrativa, mistura-se religião ao judiciário – para além da questão do aborto. O absurdo que se torna a verdade de alguns é reforçado. Já não há coração inteiro. Não pode haver.
O colunista da Veja, Ricardo Noblat, solta o balão de ensaio e escreve que um “ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo.” Já não há coração. Não pode haver. Os amigos de Michel Temer são presos e a resposta do Planalto é que não passa de conspiração. Já não há coração. Não pode haver. Tiro, relho, racismo, hipocrisia. Já não há coração. Não pode haver.
A desesperança me toma e, como já não há mais coração, penso que talvez aquele de quem não falamos o nome deva mesmo ser o próximo presidente do Brasil. Quem sabe assim o fundo do poço não chegue mais depressa e mais depressa podemos sair de lá.
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Mas não. Esse papo de que já não há mais coração é uma ilusão
A gente se ilude
Canta Alceu Valença e canto eu
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A letra que sugere uma desilusão amorosa é uma homenagem ao Clube Náutico Capibaribe, que por anos demoliu o coração do torcedor pernambucano. Mesmo diante de derrotas, porém, os aflitos sempre voltam para casa. É assim comigo. A desesperança é só da boca pra fora, é só um desabafo de um coração cansado.
Eu continuo acreditando nas pessoas, continuo acreditando na democracia representativa, no Estado de bem-estar social, na liberdade de expressão, religião e associação, nos Direitos Humanos, na igualdade.
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Coração bobo, bobo, bobo, bobo, bola, bola, bola de balão
LGBTs no centro das decisões políticas – por que não?
Samir Oliveira
29 de março de 2018
Em maior ou menor escala, o mundo inteiro assiste a uma crise brutal da democracia representativa. No Brasil não é diferente. O sistema, a política, tem muito pouco de democráticos. Pergunte aos LGBTs. Ou alguém realmente acha que chamar o povo para apertar um botão a cada dois anos é democracia?
As instituições estão distanciadas do povo, que não é chamado a decidir sobre a aplicação de políticas públicas. Mais do que isso: seus dirigentes estão encastelados em privilégios e temem a participação cidadã.
Há algumas maneiras mais ou menos eficientes de furar os bloqueios impostos por nossa racionada democracia. Uma delas é a criação de conselhos – órgãos vinculados à administração pública e compostos por integrantes da sociedade civil, sem caráter remunerativo. Assim temos conselhos municipais, estaduais e federais dedicados a diversas áreas. Os exemplos mais estruturados são saúde, educação e cultura.
Estas entidades atuam de forma a assessorar o poder público, mas também têm a missão de fiscalizar as ações, denunciar irregularidades, cobrar medidas efetivas e acompanhar execuções orçamentárias. O trabalho dos conselhos promove um controle social indispensável sobre os governos. Limita um pouco a sensação de “cheque em branco” que muitos imaginam receber do povo após uma eleição.
Com o avanço das lutas por direitos civis no país, novos conselhos foram se fazendo necessários nas diversas esferas de poder – como de mulheres, idosos e negros e negras. Mas ainda há um avanço que precisa ser concretizado: a criação de conselhos de políticas para a população LGBT. São raros os municípios que possuem algum tipo de estrutura pública voltada para esta comunidade. Porto Alegre, que poderia utilizar o prestígio político de ser a Capital para tornar-se uma referência ao restante do Estado, não possui um conselho LGBT.
Essa lacuna não existe por acaso. O preconceito dos governantes acaba afastando qualquer possibilidade de criação destes conselhos, ainda que os argumentos utilizados para isso sejam outros.
Mesmo quando, após muita pressão, a comunidade LGBT conquista a aprovação de um conselho municipal, acaba tendo que se mobilizar para impedir que o órgão torne-se uma correia de transmissão do governo e tenha seu caráter fiscalizatório e independente esvaziado.
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Resistindo às manobras
É o que ocorre neste momento em Pelotas, em que a prefeitura e entidades que apoiam o governo do PSDB na cidade tentam controlar a criação do Conselho Municipal LGBT. Um grupo de ativistas tem reagido a estas manobras e elaborou uma proposta de regimento interno para o órgão. Garantindo um funcionamento democrático, a eleição de seus integrantes e a paridade entre representações da administração pública e da sociedade civil. Um abaixo assinado para a implementação deste estatuto pode ser conferido aqui.
O caminho para a conquista de uma democracia real no Brasil é longo e árduo. A casta política não vai abrir mão de seus privilégios facilmente. Quem sempre decidiu tudo sozinho não está acostumado a compartilhar poder e a ouvir a população. Os mecanismos de participação popular através de conselhos não são perfeitos, nem são a única solução. É preciso combater seus vícios, como a eternização de velhas lideranças distanciadas de suas bases e a burocratização de suas estruturas, que sofrem tentativas permanentes de cooptação por parte dos governos.
O movimento que ocorre em Pelotas dialoga com esta necessidade de refundar fórmulas viciadas de participação limitada do povo nas decisões políticas. Esta mobilização não poderia vir de outro setor que não a população LGBT, historicamente colocada à margem do poder. Que Pelotas dê o exemplo que Porto Alegre se furtou de ser e coloque a comunidade LGBT no centro das decisões sobre as políticas públicas que lhe dizem respeito!
A foto (Harvey MIlk Foundation) de capa mostra Harvey Milk, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, em 1978, como supervisor da cidade de São Francisco. Um símbolo da luta LGBT por representatividade em cargos oficiais.