Igor Natusch

A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos

Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.

Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:

Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?

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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.

Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?

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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.

Para Dallagnol, em especial, a situação é grave. As negociações entre os dois para a realização de um vídeo promovendo as chamadas 10 medidas contra a corrupção, por exemplo, são infames e escandalosas, elas próprias indícios da mesma corrupção que os super-heróis da vez se propuseram tão tenazmente a combater. E as movimentações do procurador para lucrar com palestras, usando a esposa como sócia para fugir de críticas, são o descumprimento evidente de uma regra clara da magistratura.

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Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível.  Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).

Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”

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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras

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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil 

Geórgia Santos

Coração bobo

Geórgia Santos
2 de abril de 2018

Meu coração tá batendo como quem diz: não tem jeito. Canta Alceu Valença e canto eu. Ele canta que o coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Canto eu que o coração dos aflitos encolhe dentro do corpo. Coração bobo. Encolhe a cada palavra de ódio, encolhe toda vez que alguém perde a razão, encolhe sempre que a empatia se apaga, encolhe quando o absurdo se torna a verdade de alguns.

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O coração dos aflitos pipoca dentro do peito

O coração dos aflitos encolhe cada vez mais

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É como se a gente não conseguisse fugir do destino de que já não há mais coração. A gente se ilude dizendo: já não há mais coração. Canta Alceu Valença e canto eu. Já não há. Não pode haver diante do absurdo que se torna a verdade de alguns. Ontem mesmo, o procurador da República Deltan Dallagnol escreveu no Twitter sobre o que ele chamou de “Dia D da luta contra a corrupção na Lava Jato.” Nada fora do comum. É prerrogativa de ofício e ele já havia se posicionado sobre o tema da prisão em segunda instância. “Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além.” A derrota seria a concessão do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhuma novidade. Inclusive concordo que o precedente é perigoso, embora considere que a prisão em segunda instância talvez seja o precedente uma vez analisado o texto da constituição. Mas ele continua: “O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país.”

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Um procurador da República discorre sobre uma questão jurídica e espera que ela se resolva não com a análise de legislação do Estado laico em que vive, mas com oração, com jejum, com torcida. O absurdo que se torna a verdade de alguns está normalizado. Já não há coração que aguente. Não pode haver.

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Pouco tempo depois, o juiz federal Marcelo Bretas respondeu: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso país e do nosso povo.” Assim, em alguns minutos, duas autoridades transformaram uma discussão jurídica absolutamente válida em uma disputa entre o bem e o mal. Por meio da narrativa, mistura-se religião ao judiciário – para além da questão do aborto. O absurdo que se torna a verdade de alguns é reforçado. Já não há coração inteiro. Não pode haver.

O colunista da Veja, Ricardo Noblat, solta o balão de ensaio e escreve que um “ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo.” Já não há coração. Não pode haver. Os amigos de Michel Temer são presos e a resposta do Planalto é que não passa de conspiração. Já não há coração. Não pode haver. Tiro, relho, racismo, hipocrisia. Já não há coração. Não pode haver.

A desesperança me toma e, como já não há mais coração, penso que talvez aquele de quem não falamos o nome deva mesmo ser o próximo presidente do Brasil. Quem sabe assim o fundo do poço não chegue mais depressa e mais depressa podemos sair de lá.

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Mas não. Esse papo de que já não há mais coração é uma ilusão

A gente se ilude

Canta Alceu Valença e canto eu

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A letra que sugere uma desilusão amorosa é uma homenagem ao Clube Náutico Capibaribe, que por anos demoliu o coração do torcedor pernambucano. Mesmo diante de derrotas, porém, os aflitos sempre voltam para casa. É assim comigo. A desesperança é só da boca pra fora, é só um desabafo de um coração cansado.

Eu continuo acreditando nas pessoas, continuo acreditando na democracia representativa, no Estado de bem-estar social, na liberdade de expressão, religião e associação, nos Direitos Humanos, na igualdade.

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Coração bobo, bobo, bobo, bobo, bola, bola, bola de balão

A gente se ilude dizendo: já não há mais coração

 

Imagem: Pixabay