Igor Natusch

Ninguém é obrigado a responder mamadeira de piroca

Igor Natusch
1 de agosto de 2019

A frase do título foi publicada no Twitter pelo editor-executivo do The Intercept Brasil, Leandro Demori. Deveria ser alçada ao status de mantra, ser adotada sempre que nos fosse exigido um posicionamento sobre alegações absurdas e ridiculamente mentirosas. É tudo muito simples, na verdade: tudo que é falso e mentiroso ganha uma estranha espécie de legitimação quando recebe a dignidade de uma resposta. Não alimente os trolls. Não responda mamadeira de piroca.

Infelizmente, as coisas não estão funcionando assim. E é profundamente preocupante quando a legitimação, mesmo indireta, vem dos próprios veículos e espaços criados para combater a falsidade, para deslegitimar a mentira sem-vergonha com a exposição implacável da verdade e dos fatos. Vejamos, por exemplo, essa manifestação do Lupa, especializado em fact-checking:

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Com todo o respeito aos profissionais que trabalham no veículo, mas essa manifestação é um absurdo

Mais: é um absurdo perigoso

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Sites como Boatos.org e Snopes prestam um excelente serviço, basicamente porque partem de uma ótima premissa: ser uma database de desmentidos. O valor que oferecem, embora dialogue de forma óbvia com o noticiário, pouco tem a ver com instantaneidade: é ser uma fonte confiável a ser consultada sempre que o usuário da internet tiver dúvida sobre a veracidade de alguma alegação. Você tem dúvidas, e vai até eles fazer uma consulta. É eficiente, e com alto potencial de convencimento.

Veículos de fact-checking como Lupa são diferentes. Sua proposta é enfrentar fake news de forma dedicada e jornalística. O que é igualmente importante nesses tempos difíceis que vivemos, embora com uma metodologia diversa. Há uma informação que finge ser jornalística, e ela é desmontada a partir do próprio método jornalístico.

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Mas checar fatos é muito diferente de checar o que o outro lado tem a dizer

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Glenn Greenwald e David Miranda não têm que dizer absolutamente nada sobre a mentira cretina da qual foram vítimas. Por vários motivos, mas acima de tudo porque é uma mentira cretina, disseminada de forma cretina via redes sociais. Não é como se estivéssemos diante de uma denúncia séria, feita por uma instituição confiável ou a partir de uma metodologia adequada: é uma safadeza absoluta, feita para agredir desafetos políticos e ganhar alguns cliques e likes no processo.

De qualquer forma, o hospital onde supostamente a internação ocorreu já havia negado tudo. O próprio David Miranda havia publicado, no momento em que se disseminava a mentira, um vídeo ao lado do marido, sorridente e tranquilo no quarto do casal. Ainda assim, e mesmo com o histórico nada recomendável do pseudo-veículo que publicou a sujeira, os profissionais da Lupa, que “duvidam por essência”, não se sentiam seguros para cravar um “falso”.

Se a Lupa acha que Glenn Greenwald e David Miranda não “negaram de forma clara a alegação”, é porque o veículo começa a assumir, enquanto procedimento, que a fake news é uma indagação “respondível” e não uma mentira a ser desmascarada. Isso inverte a própria lógica que se espera do fact-checking, de uma forma degradante e que coloca sua própria função de existir em risco.

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Se não tinham convicção de que era falso, o problema não é de Glenn ou do Intercept Brasil: é do seu próprio método e, mais ainda, da sua concepção sobre o próprio trabalho

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É crescente o risco de criar-se uma espécie de simbiose com as fake news. As agências de fact-checking não apenas não saem da postura reativa, nunca conseguindo antecipar os movimentos da indústria de desinformação (o que é difícil mesmo, sem dúvida) como parecem estar retirando o seu próprio valor, por assim dizer, da existência das fake news. Não estão apenas desmentindo, mas sendo pautados por elas. E, na medida em que se permitem ficar em tal posição, vão reforçando o mecanismo que dá a essa indústria seu poder de persuasão.

Pois, em um cenário desses, não são mais apenas os veículos de checagem que precisam se antagonizar à mentira; a realidade também precisa dizer que é a verdade, e não uma versão calhorda dela, que define sua existência. E quem aqui não sabe que, se Glenn Greenwald diz que é mentira, isso será visto, pelos que os detestam, justamente como prova de que tudo é exatamente como as fake news estão dizendo?

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Há um limite, e ele precisa ser delimitado. Ninguém deve ser convocado a responder sobre mamadeira de piroca

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O fact-checking não é, e não pode virar, uma mera tabelinha com as fake news. Não há dois lados no combate a pseudo-notícias mentirosas. Checagem é o espírito do jornalismo, mas como forma de buscar os fatos, não de dar uma satisfação aos que vivem de disseminar a mentira.

Arte: Hrag Vartanian / Flickr

Igor Natusch

Sobre hackers, estado de exceção e macarronada

Igor Natusch
24 de julho de 2019
Spaghetti. Sause. Fork. Spaghetti. Stevejn Depolo-Flickr

Suponhamos que um estado de exceção seja como uma macarronada. Como sabemos, dá para usar muitas coisas diferentes na hora de fazer uma macarronada. Mas, no fim das contas, tudo se resume a dois ingredientes principais: macarrão e molho.

Macarrão é fácil de obter. Toda nação tem uma massa impressionável, exausta pelos abusos de todos os dias, que pouco entende das disputas políticas e que, por isso mesmo, mostra-se relativamente fácil de manipular.

Esqueça o macarrão, portanto. Esse ingrediente está sempre à disposição de quem deseja fazer uma macarronada. Não é sobre ele que vamos falar.

Essa é uma história sobre como se faz extrato de tomate.

Na última terça-feira, foi disparada pela Polícia Federal a Operação Spoofing, que cumpriu mandatos de prisão associados à suposta invasão do celular do ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Quatro pessoas foram presas no interior de São Paulo e levadas até Brasília. E isso é, quase literalmente, tudo que sabemos de oficial: mais detalhes, só no dia seguinte, quando será enfim levantado o sigilo sobre a investigação. Escrevo no final da noite de terça-feira; não sei, portanto, de nada que os leitores e leitoras do futuro já devem saber.

Longas horas de incerteza. Uma noite inteira, talvez uma manhã completa e uma boa parte da tarde para especulações, insinuações, palpites. Para disseminar, pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, as mais delirantes leituras e as mais infames acusações.

Ninguém que esteja lendo esse texto esteve na nebulosa de Orion nas últimas semanas, então vocês provavelmente sabem que o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato (entre eles, o amigão de Moro, Deltan Dallagnol) estão às voltas com uma série de matérias constrangedoras. Essas matérias estão sendo feitas a partir de material obtido pelo The Intercept Brasil: milhares de diálogos via celular, demonstrando uma série de desvios éticos (e algumas ilegalidades flagrantes) cometidas por Moro, Dallagnol e outros super-heróis da moralidade nacional.

Segundo Moro e a Lava-Jato, esse material foi obtido por um hacker. A única evidência disso, até agora, é a palavra dessas pessoas, e mais nada. Ao que se sabe no momento em que escrevo,   sequer uma perícia nos celulares foi realizada.

O mesmo Moro havia denunciado ter sido vítima de um hacker, pouco antes da revelação que o Intercept tinha obtido arquivos comprometedores. Invadiram meu celular, reclamou Moro. Sem demonstrar, mas reclamou.

É o mesmo hacker? Não sei. Ninguém sabe. E é assim que precisa ser, se queremos fazer um bom extrato de tomate. Ninguém pode saber com certeza de coisa alguma.

Enquanto a gente não sabe, a gente vai especulando.

Esse é um elemento que ajuda a dar o ponto para a receita, sabe. A gente fica vulnerável à especulação. Nervosos, inseguros. Impressionáveis. Fica com medo da denúncia do jornalista ser verdade, e também fica com medo que ela seja mentira.

Claro que essa panela de pressão não esquenta de uma hora para outra. Muita coisa foi insinuada e vociferada nos últimos dias. Pavões misteriosos falando de Bitcoins russos. Negociatas envolvendo suposta compra de mandato pelo marido do jornalista à frente das reportagens. Acusações de que fazer matéria jornalística com material vazado é crime, algo que poderia gerar até deportação. Pretensas adulterações de conteúdo das quais muito se fala, mas nada se evidencia. Muita coisa, enfim.

Mas o mais importante é insistir na narrativa. Ninguém viu provas do hacker, mas o ministro Moro diz que foi hacker, então ninguém pode duvidar. E se o informante for alguém do Ministério Público, talvez um membro da própria Lava-Jato? Pode até ser, mas não pode ser. Foi hacker, você não viu? Foi Sergio Moro quem disse – e agora a PF, mesmo sem ter dito, disse também. Foi hacker. Um perigoso e maligno hacker, usando tecnologia desconhecida para atacar um dos super-heróis da nação. Talvez vários hackers. Imagine: uma gangue de hackers. Contratados por alguém. Quem são os hackers? Quem contratou os hackers? O que eles vão dizer?

É mais ou menos nessa hora que as pessoas começam a perguntar: e aí, ninguém vai fazer nada?

O extrato de tomate está ficando no ponto.

É possível, dentro do cada vez menos relevante mundo real dos fatos e acontecimentos verificáveis, que os hackers não tenham nada a ver com a #VazaJato. Que sejam apenas uns golpistas meia-boca, que usaram um cavalo de troia para tentar roubar umas senhas bancárias de Moro ou algo assim. Talvez não sejam nem mesmo isso.

Mas, e aí está o segredo que dá o sabor especial à receita: você não sabe. Até quarta-feira à tarde, ou talvez ainda depois, ninguém vai saber. Mas todo mundo vai querer saber. Todo mundo vai pensar sobre qual é, no fim das contas, a verdade. E todo mundo vai estar querendo que alguém resolva logo essa situação.

Quando a gente quer que alguém resolva logo a situação, a gente fica mais tolerante com atalhos. A gente fica menos apegado ao modo certo de fazer as coisas.

O estado de exceção adora isso. Um líder autoritário gosta muito de tomar atalhos.

Do lado de cá de tudo que está rolando, noto que o pessoal ainda está muito preocupado com o macarrão. Talvez achem que o macarrão pode ser devolvido à prateleira. Talvez achem que, conversando com o macarrão, ele vá se recusar a ir para a panela cozinhar.

Bobagem, digo eu. O macarrão está sempre à disposição. É a parte mais fácil da receita.

O que interessa, agora mais do que nunca, é o extrato de tomate.

Talvez ainda esteja em tempo de estragar a macarronada de domingo. De repente a receita do extrato desande, ou um pontapé bem dado possa até derrubar a travessa no chão. De repente dá para esquentar a panela além da conta e fazer o prato inteiro queimar, ficar intragável e impossível de servir. Mas não é boa ideia perder tempo. Como a gente sabe, uma vez que se tenha o macarrão, fica faltando só o molho para servir uma tremenda macarronada.

E o molho está quase pronto.

Foto: Steven Depolo / Flickr

Igor Natusch

A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos

Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.

Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:

Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?

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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.

Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?

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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.

Para Dallagnol, em especial, a situação é grave. As negociações entre os dois para a realização de um vídeo promovendo as chamadas 10 medidas contra a corrupção, por exemplo, são infames e escandalosas, elas próprias indícios da mesma corrupção que os super-heróis da vez se propuseram tão tenazmente a combater. E as movimentações do procurador para lucrar com palestras, usando a esposa como sócia para fugir de críticas, são o descumprimento evidente de uma regra clara da magistratura.

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Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível.  Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).

Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”

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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras

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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil