Igor Natusch

O namoro entre Bolsonaro e Lava-Jato acabou – e a separação será litigiosa

Igor Natusch
19 de setembro de 2019
Presidente da República, Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro durante a final da Copa América 2019, entre as seleções do Brasil e Peru.

Houve um tempo em que o bolsonarismo e a luta contra a corrupção andavam de mãos dadas – mesmo que, mais recentemente, fosse apenas para manter as aparências. Esses dias, contudo, estão cada vez mais distantes. E o que se percebe, de forma cada vez mais indisfarçável, é a iminência da separação.

Não é um rompimento que desagrade aos Bolsonaros, isso é certo.

Se há algo que se move sempre para frente neste governo, é a disposição em transformar o poder em negócio de família, sem qualquer disfarce, sem prender-se ao mínimo de decência. Mesmo a fundamental disputa no Senado pela reforma da previdência fica em segundo plano: mais importante é encher as burras dos senadores com cargos lucrativos no governo, para que topem a infâmia de sagrar Eduardo Bolsonaro embaixador nos EUA. Não é possível imaginar uma submissão mais escandalosa do público ao mais mesquinho interesse pessoal.

Mas pudores dessa natureza nunca fizeram qualquer diferença para Jair Bolsonaro, acostumado desde sempre a ver a política como uma generosa teta na qual mamar.

Para Bolsonaro e os seus, o argumento contra a corrupção foi apenas mais uma dessas torneiras vertendo leite. Muito útil durante a eleição do ano passado, fiador importante de popularidade a partir de Sergio Moro ministro, mas nunca uma bandeira irrenunciável – mesmo porque, no modelo bolsonarista de política, nenhuma bandeira é tão importante que não possa, em algum momento, virar pano de chão.

Com o avanço dos meses, esse papo de combater o crime a qualquer custo foi ficando pesado para o governo federal. Não apenas pela situação de Flávio Bolsonaro, enrascada que está exigindo uma série de ações pouco republicanas para ser minimizada, mas também pela posição cada vez mais incômoda de Moro no ministério. As muitas humilhações a que foi submetido não parecem ter sido suficientes para convencer o ex-juiz a desistir da pasta, escada importante para suas pretensões futuras, seja no STF, seja em um cargo eletivo próprio. E, mesmo desmoralizados pelas ruidosas revelações da Vaza Jato, Moro e a operação Lava-Jato seguem populares. Mais do que Bolsonaro, como provam as pesquisas.

Livrar-se de Sergio Moro, livrar a cara do filho encurralado, cravar os dentes ainda mais fundo no poder. Para cumprir todas essas tarefas, o caminho é um só: usar a bandeira contra a corrupção como capacho para limpar os pés.

Diante de tal tarefa, a aposta dos Bolsonaros tende a ser a de sempre: a radicalização no discurso ideológico.

A disposição de colocar Augusto Aras na PGR, rasgando vergonhosamente a lista tríplice e escancarando a disposição de brigar contra a Lava-Jato em nome da salvação do 01, disparou de vez a cisão. Janaína Paschoal, a proponente do impeachment de Dilma, revela seu desagrado; Moro, cansado de ser feito de palhaço, condiciona sua permanência à manutenção de Maurício Valeixo como diretor-geral da PF. E Olavo de Carvalho, guru picareta do delírio reacionário à brasileira, apressa-se a dar o tom: a “luta contra a corrupção”, segundo ele, foi inventada pelo PT nos anos 1990, como parte da rebuscadíssima, maléfica e eternamente inconclusa estratégia comunista para tomar o poder em escala global.

O casamento entre reacionários políticos e ativistas do Judiciário é, cada vez mais, de fachada. Não há mais paixão, nunca houve muito respeito mútuo e, a essa altura, mesmo o tesão já se perdeu.

O jogo, agora, é fazer com que o rompimento inevitável tenha o menor efeito possível sobre a horda fiel a Bolsonaro. O que também traz, é claro, um fortalecimento da família como únicos detentores do poder, assumindo de vez a nau desgovernada, para o bem e para o mal. Jogar a Lava-Jato para o lado de lá está longe de ser uma tarefa simples, mas não parece haver grandes constrangimentos na hora de tentar essa acrobacia.

Acumular inimigos sempre foi uma má estratégia de guerra. Mas Bolsonaro e os seus não se importam, ao contrário; na verdade, eles até que gostam bastante dessa posição.

Foto: Carolina Antunes / PR

Igor Natusch

Com Lava-Jata enfraquecida, STF e Congresso se unem no contra-ataque

Igor Natusch
8 de agosto de 2019

Se há algo que aproxima a operação Lava-Jato do atual governo, é a disposição de usar o conflito como estratégia de legitimação e fidelidade. É apenas a partir deste ângulo que a intempestiva decisão de transferir o ex-presidente Lula de Curitiba para o presídio do Tremembé, em São Paulo, ganha motivação e significado.

Diante do enfraquecimento da aura de santidade em torno da operação, disparada pelos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil, a decisão da juíza federal Carolina Lebbos recoloca a figura odiada de Lula no centro do noticiário. Como elemento central da brincadeira, ficava no ar a possibilidade de colocá-lo em uma cela coletiva, ao invés da sala especial de Curitiba. Um aceno nada sutil aos anseios sádicos da ala que sempre sonhou em ver o ex-presidente em uma cela superlotada de um penitenciária comum. Ao frustar a realização (mesmo que apenas imaginária) dessa tara, o STF colaria em si mesmo a etiqueta de aliado de Lula, logo inimigo da Lava-Jato, logo inimigo do Brasil.

Esse parece ser o plano. Se o plano deu ou está dando certo, são outros quinhentos.

A movimentação mais significativa parece ter vindo do Congresso Nacional. O repúdio uniu parlamentares e senadores, de oposição e de centro, e recebeu um endosso emblemático do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Fazer uma pausa na votação dos destaques da Reforma da Previdência para que uma delegação de deputados pudesse falar com o presidente do STF, Dias Toffoli, é de uma simbologia muito forte.

Nada é mais importante no Congresso do que aprovar a reforma – mas enfrentar a decisão da Lava-Jato mostrou-se ainda mais importante do que isso. E ganhou, a partir do intervalo trazido por Maia, um caráter institucional.

Se a Câmara dos Deputados decidiu comprar essa briga, certamente não foi por solidariedade, ou porque acham o Lula bonito.

Ao enfrentamento explícito do Congresso, sucedeu-se uma demonstração quase afrontosa do Supremo. Um placar de 10 a 1 contra a transferência, vindo de um tribunal pressionado e dividido como o STF, é muito significativo, ainda mais em tema tão delicado e com rapidez de poucas horas. E que não surge da mera convicção de que a medida fosse equivocada. Quem poderá ignorar as recentes revelações do Intercept Brasil e veículos parceiros, mostrando ações do procurador Deltan Dallagnol para investigar, de forma ilegal, ministros do STF?

Se a ideia da Lava-Jato era demonstrar força e capacidade de enfrentamento, o efeito parece não ter sido o desejado. O que ficou evidente, isso sim, foi o enfraquecimento da operação, pelo menos diante de seus antagonistas.

A classe política, que passou anos no córner e viu muitas de suas principais figuras atrás das grades, ensaia uma reação. O STF, atacado tanto nos bastidores quanto à luz do dia, deixa claro que está disposto a dobrar a aposta. Pressionados pela opinião pública até então apaixonada pela Lava-Jato, esses núcleos evitavam reagir aos excessos da operação; agora, que o desgaste de Moro, Dallagnol e cia. é notório e crescente, unem-se para o contra-ataque. E nem o nome de Lula (figura cuja defesa pública, até há pouco tempo, era impensável para esses grupos) tem o mesmo poder de intimidação de antes.

Não é uma simples reação de corruptos contra o braço forte da Justiça. É um posicionamento coletivo na disputa pelo poder. E que se torna possível agora, que a Lava-Jato não parece mais tão imbatível quanto antes.

A estratégia de manter-se no ataque o tempo todo é eficiente para direcionar leituras e narrativas, mas não é livre de limites. Um deles é um tanto óbvio: quanto mais numerosas as frentes de batalha, mais difícil é manter a intensidade da artilharia.

A Operação Tremembé certamente amplia o fosso entre os defensores da Lava-Jato e os que criticam suas práticas, e isso favorece quem extrai seu poder justamente dessa oposição inconciliável. Mas o episódio também marca a primeira vez que uma ação da força-tarefa é enfrentada de forma coletiva, enfática e eficiente. E talvez o apoio da torcida não seja mais suficiente para garantir a vitória em casa.

Foto: STF / Divulgação

Igor Natusch

Sobre hackers, estado de exceção e macarronada

Igor Natusch
24 de julho de 2019
Spaghetti. Sause. Fork. Spaghetti. Stevejn Depolo-Flickr

Suponhamos que um estado de exceção seja como uma macarronada. Como sabemos, dá para usar muitas coisas diferentes na hora de fazer uma macarronada. Mas, no fim das contas, tudo se resume a dois ingredientes principais: macarrão e molho.

Macarrão é fácil de obter. Toda nação tem uma massa impressionável, exausta pelos abusos de todos os dias, que pouco entende das disputas políticas e que, por isso mesmo, mostra-se relativamente fácil de manipular.

Esqueça o macarrão, portanto. Esse ingrediente está sempre à disposição de quem deseja fazer uma macarronada. Não é sobre ele que vamos falar.

Essa é uma história sobre como se faz extrato de tomate.

Na última terça-feira, foi disparada pela Polícia Federal a Operação Spoofing, que cumpriu mandatos de prisão associados à suposta invasão do celular do ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Quatro pessoas foram presas no interior de São Paulo e levadas até Brasília. E isso é, quase literalmente, tudo que sabemos de oficial: mais detalhes, só no dia seguinte, quando será enfim levantado o sigilo sobre a investigação. Escrevo no final da noite de terça-feira; não sei, portanto, de nada que os leitores e leitoras do futuro já devem saber.

Longas horas de incerteza. Uma noite inteira, talvez uma manhã completa e uma boa parte da tarde para especulações, insinuações, palpites. Para disseminar, pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, as mais delirantes leituras e as mais infames acusações.

Ninguém que esteja lendo esse texto esteve na nebulosa de Orion nas últimas semanas, então vocês provavelmente sabem que o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato (entre eles, o amigão de Moro, Deltan Dallagnol) estão às voltas com uma série de matérias constrangedoras. Essas matérias estão sendo feitas a partir de material obtido pelo The Intercept Brasil: milhares de diálogos via celular, demonstrando uma série de desvios éticos (e algumas ilegalidades flagrantes) cometidas por Moro, Dallagnol e outros super-heróis da moralidade nacional.

Segundo Moro e a Lava-Jato, esse material foi obtido por um hacker. A única evidência disso, até agora, é a palavra dessas pessoas, e mais nada. Ao que se sabe no momento em que escrevo,   sequer uma perícia nos celulares foi realizada.

O mesmo Moro havia denunciado ter sido vítima de um hacker, pouco antes da revelação que o Intercept tinha obtido arquivos comprometedores. Invadiram meu celular, reclamou Moro. Sem demonstrar, mas reclamou.

É o mesmo hacker? Não sei. Ninguém sabe. E é assim que precisa ser, se queremos fazer um bom extrato de tomate. Ninguém pode saber com certeza de coisa alguma.

Enquanto a gente não sabe, a gente vai especulando.

Esse é um elemento que ajuda a dar o ponto para a receita, sabe. A gente fica vulnerável à especulação. Nervosos, inseguros. Impressionáveis. Fica com medo da denúncia do jornalista ser verdade, e também fica com medo que ela seja mentira.

Claro que essa panela de pressão não esquenta de uma hora para outra. Muita coisa foi insinuada e vociferada nos últimos dias. Pavões misteriosos falando de Bitcoins russos. Negociatas envolvendo suposta compra de mandato pelo marido do jornalista à frente das reportagens. Acusações de que fazer matéria jornalística com material vazado é crime, algo que poderia gerar até deportação. Pretensas adulterações de conteúdo das quais muito se fala, mas nada se evidencia. Muita coisa, enfim.

Mas o mais importante é insistir na narrativa. Ninguém viu provas do hacker, mas o ministro Moro diz que foi hacker, então ninguém pode duvidar. E se o informante for alguém do Ministério Público, talvez um membro da própria Lava-Jato? Pode até ser, mas não pode ser. Foi hacker, você não viu? Foi Sergio Moro quem disse – e agora a PF, mesmo sem ter dito, disse também. Foi hacker. Um perigoso e maligno hacker, usando tecnologia desconhecida para atacar um dos super-heróis da nação. Talvez vários hackers. Imagine: uma gangue de hackers. Contratados por alguém. Quem são os hackers? Quem contratou os hackers? O que eles vão dizer?

É mais ou menos nessa hora que as pessoas começam a perguntar: e aí, ninguém vai fazer nada?

O extrato de tomate está ficando no ponto.

É possível, dentro do cada vez menos relevante mundo real dos fatos e acontecimentos verificáveis, que os hackers não tenham nada a ver com a #VazaJato. Que sejam apenas uns golpistas meia-boca, que usaram um cavalo de troia para tentar roubar umas senhas bancárias de Moro ou algo assim. Talvez não sejam nem mesmo isso.

Mas, e aí está o segredo que dá o sabor especial à receita: você não sabe. Até quarta-feira à tarde, ou talvez ainda depois, ninguém vai saber. Mas todo mundo vai querer saber. Todo mundo vai pensar sobre qual é, no fim das contas, a verdade. E todo mundo vai estar querendo que alguém resolva logo essa situação.

Quando a gente quer que alguém resolva logo a situação, a gente fica mais tolerante com atalhos. A gente fica menos apegado ao modo certo de fazer as coisas.

O estado de exceção adora isso. Um líder autoritário gosta muito de tomar atalhos.

Do lado de cá de tudo que está rolando, noto que o pessoal ainda está muito preocupado com o macarrão. Talvez achem que o macarrão pode ser devolvido à prateleira. Talvez achem que, conversando com o macarrão, ele vá se recusar a ir para a panela cozinhar.

Bobagem, digo eu. O macarrão está sempre à disposição. É a parte mais fácil da receita.

O que interessa, agora mais do que nunca, é o extrato de tomate.

Talvez ainda esteja em tempo de estragar a macarronada de domingo. De repente a receita do extrato desande, ou um pontapé bem dado possa até derrubar a travessa no chão. De repente dá para esquentar a panela além da conta e fazer o prato inteiro queimar, ficar intragável e impossível de servir. Mas não é boa ideia perder tempo. Como a gente sabe, uma vez que se tenha o macarrão, fica faltando só o molho para servir uma tremenda macarronada.

E o molho está quase pronto.

Foto: Steven Depolo / Flickr

Igor Natusch

A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos

Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.

Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:

Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?

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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.

Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?

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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.

Para Dallagnol, em especial, a situação é grave. As negociações entre os dois para a realização de um vídeo promovendo as chamadas 10 medidas contra a corrupção, por exemplo, são infames e escandalosas, elas próprias indícios da mesma corrupção que os super-heróis da vez se propuseram tão tenazmente a combater. E as movimentações do procurador para lucrar com palestras, usando a esposa como sócia para fugir de críticas, são o descumprimento evidente de uma regra clara da magistratura.

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Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível.  Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).

Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”

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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras

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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil 

Geórgia Santos

Sobre #VazaJato e o que cabe ao jornalista

Geórgia Santos
12 de junho de 2019

No último final de semana, o Brasil foi surpreendido com o #Vazajato. O The Intercept Brasil publicou uma série de reportagens que desnudam a Operação Lava Jato e mostram uma colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e o então juiz Sérgio Moro. A operação baseada na Mãos Limpas se mostrou suja, imunda. Mas de repente, o escândalo que mostra que a operação contra a corrupção também corrompeu o sistema virou um debate sobre práticas jornalísticas. Tá bom, vamos embarcar nessa então.

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Nunca fui fã de câmeras escondidas. Em debates com amigos jornalistas, porém, alguns colegas argumentaram que certas coisas jamais seriam descobertas de outra forma. Quantos políticos corruptos já foram desmascarados assim, afinal de contas. Eu discordei de alguns exemplos, concordei com outros e cheguei à conclusão de que é um recurso necessário, mesmo que de exceção. Ou seja, não pode ser a regra, mas precisa existir para os casos extremos, na minha opinião.

Mas a questão é que as câmeras escondidas nunca incomodaram o público, de maneira geral. Pelo contrário, as pessoas parecem gostar de ver um figurão caindo porque alguém gravou algo à espreita. Aquela imagem de qualidade não muito boa com um deputado contando maços de dinheiro dá aquela sensação inigualável de flagrante a quem assiste. Provoca uma reação natural e emocional de justiça. É visceral. Tira da garganta aquele “Toma!”

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Qual não foi minha surpresa, então, ao ver tantas pessoas – jornalistas ou não – questionando a retidão ética do The Intercept Brasil ao publicar conversas privadas que escancaram as relações da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro

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O The Intercept Brasil publicou reportagens que mostram, entre outras coisas, que os procuradores do Ministério Público Federal responsáveis pela Operação Lava Jato falavam abertamente sobre impedir a vitória do PT nas eleições passadas e, mais do que isso, tomaram atitudes para auxiliar nessa questão. As reportagens também mostram que o juiz Sergio Moro colaborou de forma secreta  com os procuradores para ajudar a montar a acusação contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – apesar das dúvidas internas sobre as provas que fundamentaram as acusações e da ilegalidade da coisa toda.

Segundo os editores, as reportagens foram produzidas a partir de arquivos, enviados por uma fonte anônima, que continham mensagens privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo procuradores da Lava Jato e o hoje ministro da Justiça. Os jornalistas garantem que o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo e que eles foram contatados semanas antes da notícia de invasão do celular de Sérgio Moro – o próprio ministro garantiu que não houve “captação” de conteúdo.”

Mesmo assim, inúmeras pessoas se incomodaram com a publicação que consideraram uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo – e de forma antiética -, atitude que impediu, inclusive, que o público pudesse avaliar a validade das acusações de que as figuras de acusador e julgador estavam misturadas. Lembrando que, no Brasil, a coordenação entre juízes e promotores não é permitida.

Na mesma linha, Sérgio Moro se defendeu questionando a legalidade do processo. Na sequência da publicação das reportagens,  publicou nota em que não nega o teor das conversas, mas sugeriu os meios ilegais pelos quais os arquivos foram obtidos. “Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, disse. 

Sobre a indicação de fonte, o sigilo é algo garantido aos jornalistas pela Constituição Brasileira. Sobre ser uma “invasão criminosa” nos celulares, também não há evidências de que seja o caso. Inclusive, o aplicativo de mensagens Telegram divulgou nota em que se afirma não haver indícios de hacker. “É mais provável que tenha sido malware [um tipo de vírus] ou alguém que não esteja usando uma senha de verificação em duas etapas”, diz a nota. Sem contar a possibilidade de vazamento interno. Sobre entrar em contato antes da publicação, foi uma escolha que o TIB se permitiu para garantir que nenhum dispositivo legal pudesse censurar a divulgação das reportagens, como aconteceu com a revista Crusoé no início em abril deste ano. Mas a defesa de Moro colou.

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Os limites éticos do jornalismo

As primeiras críticas vieram de pessoas preocupadas com o que consideram ser um comportamento “imoral” por parte do The Intercept.  Esse grupo entende que os jornalistas não deveriam utilizar dados obtidos de forma supostamente ilegal – mesmo que não tenha ficado claro. Mas chamou atenção que vários jornalistas que já utilizaram câmeras escondidas tenham endossado essa preocupação.

Se essa divulgação tivesse sido, de fato, equivocada, por que seria mais grave que o uso rotineiro de uma câmera escondida? Por que seria pior fazer imagens de alguém sem que essa pessoa saiba que está sendo gravada? Por que seria pior que gravar o áudio de uma conversa sem autorização? Eu acho que não seria.

Não consigo compreender no que essa divulgação é diferente, por exemplo, do caso Watergate, em que diversas fontes anônimas revelaram segredos da administração de Richard Nixon que provavam, entre outras coisas, abuso de poder. Entre 1972 e 1974, alguém questionou, além dos aliados de Nixon,  a ética do The Washington Post por publicar reportagens a partir da indicação de fontes anônimas?  Durante todo o processo que culminou com a renúncia do presidente dos Estados Unidos e ao indiciamento de dezenas de agentes públicos, os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein trabalhavam majoritariamente com fontes anônimas. A identidade da mais famosa dessas fontes, o Garganta Profunda, só foi revelada 33 anos depois, em 2005.

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No jornalismo investigativo, as fontes sigilosas, conhecidas como whistleblowers, são amplamente utilizadas para revelar ilegalidades e crimes e o caso Watergate é prova da eficiência do método

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Eu acho que debater o limite ético do jornalismo nunca é demais. Mesmo. Mas talvez estejamos fazendo esse debate no nível micro enquanto deveria ser feito no macro. Ou seja, devemos discutir os limites da investigação jornalística – se há – no que se pode chamar de sociedade da informação, em que o fluxo de dados não é unidirecional e atinge uma intensidade, velocidade e volume inéditos.

De todo modo, o limite ético da divulgação das conversas privadas de Dallagnol e Moro levou a uma segunda questão: a comparação entre o #Vazajato e o vazamento da conversas de Lula e Dilma há três anos.

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O grampo de Dilma

Em março de 2016, o então juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de interceptações telefônicas do ex-presidente Lula. As conversas gravadas pela Polícia Federal incluíam um diálogo do petista com a então presidente Dilma Rousseff – que tinha foro privilegiado. Um dos diálogos todos conhecemos, é a conversa que Dilma manda “o “Bessias” junto com o papel” e Lula despede-se com o hoje infame “Tchau, querida”. À época, depois do estrago feito, Moro pediu desculpas pelo equívoco.

Estranhamente, o episódio está sendo usado como comparativo por todos os lados. Alguns veem ironia no fato de Moro questionar a legalidade de vazamentos uma vez que ele mesmo já lançou mão desse artifício. Outros, acham interessante que as pessoas que criticavam o então juiz agora se regozijem com o vazamento do TIB. O tuíte do humorista Antônio Tabet resume o sentimento:

Mas voltemos ao jornalismo. O que Tabet e outros críticos esquecem é que um jornalista e um juiz não tem a mesma função. Um juiz tem o dever de proteger um áudio que não tenha conexão com o processo. Um jornalista tem o dever de divulgar uma informação que seja relevante ao interesse público.

De novo, nunca é demais discutir a ética dos procedimentos e rotinas jornalísticas, mas não é o que se tem feito ao longo desse caso. Questionar a apuração do The Intercept Brasil tem servido somente para diminuir a gravidade de um problema que é de interesse público, que precisa ser de conhecimento do público porque traz à tona um sistema corrompido. As reportagens não mostram que Lula é inocente ou culpado, mas mostram que ele sempre esteve condenado, desde o início. Mostram que eram verdadeiros os alertas de que a Operação estava sendo instrumentalizada para servir a uma força política.

E esse tipo de reportagem precisa ser exaltado, não perseguido. Porque é por esse tipo de história que a liberdade de imprensa é fundamental em uma democracia e é por esse tipo de matéria que ela precisa ser preservada, para que as pessoas possam saber o que as autoridades dizem e fazem quando ninguém está olhando.

Para se ter uma ideia, um “influencer” que não merece menção porque eu não sou escadinha disse que o The Intercept Brasil tem que ser fechado, os “responsáveis” presos e Glen Greenwald tem que ter seu visto brasileiro cassado. O conteúdo foi retuitado por deputados federais do PSL e outros partidos da aliança que sustenta o governo federal. Sem contar as hashtags pedindo para que Greenwald – que já ganhou o Prêmio Pulitzer, considerado o mais importante do jornalismo – seja deportado e as histórias falsas que afirmam que ele e o marido são acusados de espionagem no Reino Unido e, por isso, ele teria encomendado que os hackers invadissem os celulares dos procuradores. Chega de passar pano.

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Ofereço um tuíte do próprio procurador Deltan Dallagnol, de 20 de março de 2016. “Para Dotti [jurista René Dotti que, na ocasião, estava defendendo Sérgio Moro] no conflito entre direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha interesse público.” 

 

Igor Natusch

Sergio Moro, a Lava-Jato e a Operação Mãos Sujas

Igor Natusch
10 de junho de 2019

Dizer que a Lava-Jato foi ferida de morte seria uma grande besteira, é claro. Mas não há exagero em apontar que a operação, personificada em suas figuras definidoras, está definitivamente desmoralizada a partir da série de reportagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no último domingo. A broderagem explícita, escandalosa e ilegal entre Moro e a operação, em especial o procurador Deltan Dallagnol, estava há tempos visível, mas ainda existia em um terreno, digamos, não material. Agora, com a revelação de conversas indecentes e dos acordos absurdos que qualquer um pode ler, está escancarada de forma acachapante, impossível de ignorar.

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Os justiceiros estão nus, e sua nudez é tamanha que ignorá-la deixou de ser um acordo coletivo para virar profissão de fé. A Operação Mãos Limpas Made in Brasil revela suas mãos encardidas, imundas. A casa caiu, em suma

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Estivesse o Brasil em condições normais de temperatura e pressão, o ministro Sergio Moro renunciaria ao cargo ainda hoje

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Sabemos, no entanto, que o Brasil está muito longe das CNTP dos tempos de escola. As reações de Moro e Dallagnol até aqui, fazendo pouco ou nenhum caso das graves revelações, demonstram uma aposta na força do capital político e social adquirido: isso é algo menor, não nos tira do rumo, olhem tudo que já fizemos pela nação, seguiremos atuando de forma incansável para combater a chama corrupta que consome o país. Difícil imaginar que as multidões que organizaram “Acampamentos Sérgio Moro” e usaram camisetas com o rosto do ídolo vão simplesmente abandoná-lo a essa altura – afinal, como bem sabemos, a idolatria não deixa de ser uma forma de teimosia.

Apostar em uma rápida desidratação que forçasse Moro a juntar os cacos de dignidade e pedir a renúncia seria apostar em um Brasil onde a razão, o respeito às instituições e o bom senso fossem levados em conta. Talvez esse Brasil exista em algum best seller de livraria de aeroporto, porque no mundo real não há nem sinal dele.

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Ainda assim, o golpe é duríssimo. O capital moral de Moro e da Lava-Jato sangra em praça pública, com consequências imensas e potencialmente imprevisíveis

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O STF, apenas para citar o aspecto mais óbvio, tem em mãos material mais do que suficiente para botar abaixo boa parte da Lava-Jato – o que, por óbvio, implica sim em tornar nulos os casos contra Lula e soltá-lo o mais rapidamente possível. Se isso de fato ocorrerá, veremos nos próximos capítulos.

Verdade que nada do que vem sendo exposto significa que não tivemos desvios criminosos na Petrobrás e que agentes públicos não tiveram envolvimento na bandalheira. Nada inocenta Lula ou qualquer outra pessoa das acusações imputadas. Mas não se pode, em um Estado que se pretende de Direito, manter alguém preso apenas porque se deseja que ele fique atrás das grades, muito menos tolerar que o julgador atue como acusador. Se o absurdo uso de escutas de advogados para montar o caso contra o ex-presidente já seria suficiente para abalar decisivamente a condenação (e é), os fatos agora revelados deixam tudo ainda mais inescapável.

Se houve tabelinha entre juiz e força-tarefa para prender Lula (e quem duvidará que houve, depois de tudo que se revelou desde ontem?), o caso revela-se nulo, sua condenação nada vale e ele é um homem livre. Agir de forma diferente é confirmar que a Constituição virou papel para acender lareira, que estamos no reino do arbítrio e nada vale senão a vontade de quem tem poder. Se o material publicado pelo The Intercept Brasil foi obtido pelo hacker de forma ilegal, ainda assim ele serve para declarar nulidade de processos – o que, aliás, diz o próprio ministro Alexandre de Moraes, em livro elogiado por sua doutrina.

É um jogo de muitos riscos – e soltar Lula, é claro, também envolve riscos tremendos para muitas pessoas. Mas a disputa de poder entre Lava-Jato e Supremo não é de agora, e fica difícil visualizar os ministros perdendo a chance de aplicar em seus inimigos um golpe potencialmente mortal. Isso para não falarmos no quanto o sonho de Moro em tornar-se ministro do STF fica distante depois do escândalo em torno de seus procedimentos.

Além disso, temos as ruas. A revelação das conversas nada institucionais de Moro surge dias antes de uma greve geral, convocada para o dia 14 – um ato que, desde o início, amplia a pauta dos cortes em universidades em um discurso potencialmente mais amplo, mais aberto ao combate à reforma da previdência, por exemplo. Não é nada difícil imaginar que os setores que pedem Lula Livre estão inflamados, e engrossarão ainda mais essas manifestações daqui para frente.

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Quem viveu 2013 sabe que os protestos se transformaram em fenômeno viral justamente quando se tornaram permeáveis a outros gritos, indo (de forma não raro histriônica e caótica) muito além da pauta original do transporte público. Em uma semana que se promete horrorosa para o governo, os movimentos de oposição ao governo Bolsonaro ganham uma boa chance de saírem das cordas de vez

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Não se trata, aqui, de tentar prever uma onda de arrependidos abandonando Moro e Bolsonaro rumo à oposição. É um cenário meio fantasioso, na verdade, e que no fundo pouco interessa. O que surge, a partir das conversinhas de Moro e da inserção delas em um cenário já incerto e conturbado, é a possibilidade de um movimento agregador de insatisfações, até aqui, pulverizadas. Impossível dizer se acontecerá, mas os fatores estão presentes. E, caso ocorra uma escalada da crise, somada a um fortalecimento de seus antagonistas, Lava-Jato e governo Bolsonaro estarão colocados, juntos, no olho do furacão. Tudo por força de Sergio Moro, o elo que liga essas duas pontas em risco.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Igor Natusch

A isenção de Sergio Moro: outro mito que vai para o espaço

Igor Natusch
1 de novembro de 2018

Há dois anos, o juiz Sergio Moro era enfático: jamais entraria para a vida política.

“Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política. É uma atividade importante, existe muito mérito em quem atua na política, mas eu sou um juiz, estou em outra realidade, outro perfil. Então, não existe jamais esse risco.” Sérgio Moro, em entrevista concedida ao Estado de São Paulo.

Muita coisa muda em dois anos. Nesta quinta-feira, Sergio Moro aceitou convite do presidente eleito Jair Bolsonaro para assumir uma espécie de super-ministério, reunindo as pastas de Justiça e Segurança Pública. Não só entrou na política, como aderiu imediatamente (e “muito honrado”, como ele mesmo coloca em nota oficial) ao primeiro governo federal que apresentou convite. Embora não seja, é claro, um governo qualquer – e essa simples constatação faz toda, absolutamente toda a diferença.

Para o governo Bolsonaro, escalar Sergio Moro traz benefícios claros. Menos de uma semana depois de ganhar a eleição, o recém-eleito já sofre abalos em apoio e popularidade, graças a decisões esdrúxulas como fundir Meio Ambiente e Agricultura, convidar pessoas enroladas com a Lei para ministérios e a possível criação de um insólito Ministério da Família, com ninguém menos que Magno Malta no timão. Contestado até por setores econômicos, dos quais depende decisivamente para evitar turbulências, Bolsonaro ganha uma injeção de popularidade muito bem-vinda ao colocar a boa aceitação da Lava-Jato no coração de seu ministério. A medida pode criar efeitos indesejados a médio prazo, mesmo porque demitir um ministro como Moro é quase impossível. Mas isso pouco importa no momento – em especial para o próprio núcleo do governo, que dá claros sinais de que não está preocupado em planejar muito adiante o que quer que seja.

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Nada disso, porém, pesa da mesma forma para o próprio Sergio Moro

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Acima de tudo, está definitivamente legitimado o discurso de atuação política na Lava-Jato. Ou alguém lembra de juízes da operação Mãos Limpas, na Itália, entrando no ministério de Silvio Berlusconi? Poderá alguém esquecer que os vários supostos erros de condução de Moro – a divulgação inacreditável de áudios de uma presidente em mandato, as articulações em plenas férias para evitar a soltura de Lula – foram sempre para um lado, sempre prejudiciais a uma esfera específica, e que (vejam só a surpresa) essa esfera calha de ser justamente a oposta ao presidente agora eleito?

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Será possível ignorar que, em plena campanha deste ano, Moro levantou sigilo sobre as delações de Antonio Palocci, que o próprio Ministério Público Federal declarou inúteis – e haverá quem, diante de indicações de que o convite de Bolsonaro ao juiz foi feito ainda antes das urnas, seja incapaz de unir os pontos e chegar a uma conclusão?

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Moro afirma que se afastará imediatamente das atividades da Lava-Jato, de forma a evitar “controvérsias desnecessárias”. Tarde demais: sua isenção já foi para o espaço, transformada em cargo político em um governo de inclinações ideológicas indisfarçáveis.  

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Ao aceitar o convite do futuro presidente, Sergio Moro não apenas lançou sombras sobre seu presente, mas cristalizou um discurso que há muito paira sobre sua atuação na Lava-Jato: a de que foi perseguidor e não juiz, atuando como braço de uma guerra política e não como guardião das leis.

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Mesmo os que defendiam a isenção do super-herói de Curitiba ficam sem argumentos diante da quase confissão simbólica que ele acaba de cometer. O conflito de interesse é cristalino, tão óbvio que colocá-lo em dúvida é pedir para passar vergonha.

Graças à obsessão pessoal de Sergio Moro contra Lula, o ex-presidente foi alijado da disputa eleitoral – e, como recompensa, o justiceiro foi convidado (mesmo antes do pleito acontecer) para ocupar um cargo ministerial na chapa mais obviamente beneficiada pela ausência do barbudo. Valendo dizer que a própria esposa de Moro comemorou abertamente a vitória de Bolsonaro, pouco antes do marido ganhar uma privilegiada oportunidade de emprego junto ao novo chefão do Brasil. Questionem o quanto desejarem essa leitura, mas ela é óbvia demais para ser ignorada – e certamente será majoritária em vários lugares, em especial fora do Brasil. Afinal, a Lava-Jato não é exatamente uma campeã de popularidade na mídia internacional, e Lula construiu muito bem a imagem de injustiçado e vítima de lawfare.

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Só um alienado age e pensa política ignorando a esfera internacional. E só um aloprado – ou alguém movido pela vaidade – poderá achar que ninguém vai estranhar que o juiz que prendeu Lula ganhe um super-ministério no governo do rival.

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O guerreiro contra a corrupção e que enfrentava de forma destemida o sistema ficou, definitivamente, nas séries do Netflix: na vida real, alinhou-se na primeira chance que teve com a ala política que favoreceu, dando fortes elementos para argumentar que sua atuação sempre foi movida por simpatias.

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E quem poderá dizer que, daqui para frente, deixará de tê-las?

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Diz-se que, envaidecido pelos aplausos das massas, Moro já cogita inclusive a Presidência da República. Mas as urnas ainda nem esfriaram do pleito deste ano, e 2022 ainda é uma ponte muito distante. Pisando nas nuvens, Sergio Moro talvez não perceba que é como a mulher de César: mais até do que ser honesto, precisa parecer sê-lo. E é precisamente isso que foi comprometido hoje, de forma que pode ser decisiva mais adiante.

Foto original: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil. Montagem: Vós

Geórgia Santos

Entre o Bolsa Família e uma Louis Vuitton

Geórgia Santos
5 de fevereiro de 2018

Há muitos anos são ouvidos brados retumbantes de quem é contra o Bolsa Família. Esse programa criminoso que ajuda os miseráveis a saírem da pobreza extrema, que absurdo, vejam só.

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“Onde já se viu, dar dinheiro a alguém sem que mereça”

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“As pessoas recebem esse dinheiro pra não ter que trabalhar. O povo tá sustentando vagabundo”

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“Não dá pra dar o peixe, tem que ensinar a pescar” (minha favorita)

 

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Esses são apenas três dos “argumentos” que recheiam caixas de comentários Facebook afora. Não vou entrar no mérito dos programas de mobilidade social, em cujo potencial eu acredito. Muito menos me dedico a comentar sua apropriação política, que não vem ao caso. Minha intenção é abordar o tema sob o ponto de vista humanitário.

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Você sabe o valor do Bolsa Família?

O benefício é pago de diferentes maneiras, dependendo da composição do grupo familiar e da faixa de renda. Não é um programa perfeito, mas ajuda as pessoas a superarem a linha da miséria. Há várias categorias dentro do Bolsa Família, mas para facilitar o entendimento, falemos do teto. O maior benefício possível de receber é de R$ 364,00.

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Uma família com baixo nível de renda, com CINCO crianças e DOIS adolescentes vinculados ao benefício , recebe R$ 364,00

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E isso é uma ofensa aos brasileiros, aos que se dizem cidadãos de bem e não admitem pagar pelo sustento dos outros com seus impostos, mesmo que sonegados. Compreendo perfeitamente o fato de que há pessoas que não acreditam em programas deste tipo, que não enxergam benefícios no assistencialismo, que não percebem vantagens em um auxílio como este. Compreendo mesmo, sem ironia. O indivíduo é formado por múltiplas variáveis e não sou do tipo que acredita em ideologia certa, por mais que defenda o lado que considero mais adequado à nossa realidade. Mas não compreendo como alguém pode ser desconectado da realidade a ponto de acreditar que R$364,00 é dinheiro suficiente para acomodar uma família inteira. Uma família numerosa, esquecida e marginalizada pela desigualdade cruel que assola o Brasil.

 

Hoje, quase 30% de toda a renda do Brasil está na mão de apenas 1% da população. A Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada pelo economista francês Thomas Pektty, ainda aponta que é a mais concentração no mundo. Em termos práticos, relatório da Oxfam indica que CINCO pessoas tem patrimônio equivalente ao da METADE DA POPULAÇÃO brasileira mais pobre.

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CINCO pessoas tem patrimônio equivalente ao de CEM MILHÕES

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Nessa linha, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que metade dos trabalhadores ocupados (formais) tem renda menor que um salário mínimo. A média salarial dessa fatia da população era, em 2016, de R$ 747,00, abaixo dos R$ 880,00 estipulados para o ano. Na outra ponta do espectro social há apenas 889 MIL pessoas, que compõem a fatia dos mais abonados e recebem, em média, R$ 27 mil por mês.

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É nessa faixa privilegiada em que se encontram os magistrados do país

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Segundo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), um juiz substituo recebe R$ 27.500 mensais, para falar apenas do salário mais baixo. É uma categoria distinta, especialmente diante da desigualdade colossal que mancha de sangue e suor a nossa sociedade. Mas não para por aí, os juízes (assim como parlamentares e outros membros dos três poderes) tem direito a um benefício chamado auxílio-moradia.

Assim como fiz com o Bolsa Família, falemos de teto. O valor máximo do benefício é de R$ 4.377, 37, número que, segundo a pesquisa já mencionada do IBGE, supera o salario de 92% da população brasileira. O benefício é um reembolso das despesas com moradia que começou com a mudança da capital brasileira para Brasília. Supondo-se que os deputados só teriam imóveis em suas cidades de origem, criou-se um dispositivo que suprisse os gastos com moradia em Brasília. Em seguida foi ampliado para outros poderes. Hoje, 17 mil juízes recebem auxílio-moradia.

Entre eles está o juiz Sérgio Moro, símbolo da justiça em sua cruzada contra a corrupção. O magistrado tem imóvel próprio em Curitiba e ainda assim recebe o teto de auxílio que, segundo ele, supre a falta de reajuste. O salário base de Moro é de R$ 28.948,00, além de gratificações.

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Mesmo assim, o cidadão de bem não se incomoda com os R$4.377,37 de auxílio-moradia, o valor de uma bolsa modelo Speedy 30 da Louis Vuitton 

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Moro não está fora da lei. O recebimento do benefício é absolutamente legal e é um direito dele. Mas está longe de ser justo e todos sabemos disso. Eu sei disso e ele sabe disso. Ainda assim, diante da injustiça que nos é esfregada na cara diariamente, falta indignação, e a única explicação que parece fazer sentido é a ilusão de uma meritocracia que ignora pontos de partida e a ofensa com uma possível mobilidade de classes. “Os juízes trabalham duro, estudaram, se prepararam, passaram em concurso, tem pilhas e pilhas de processos para análise. Quem recebe o Bolsa Família é vagabundo, não faz nada, só quer saber de mamar nas tetas do governo. Tem é que trabalhar.” É isso? O engraçado dessa história é que as tetas são as mesmas para os dois.

No final das contas, o brasileiro se ofende com o Bolsa Família mas não se importa em pagar uma Louis Vuitton para os magistrados.

Foto capa: Pixabay

Foto Sérgio Moro: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil