Igor Natusch

A isenção de Sergio Moro: outro mito que vai para o espaço

Igor Natusch
1 de novembro de 2018

Há dois anos, o juiz Sergio Moro era enfático: jamais entraria para a vida política.

“Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política. É uma atividade importante, existe muito mérito em quem atua na política, mas eu sou um juiz, estou em outra realidade, outro perfil. Então, não existe jamais esse risco.” Sérgio Moro, em entrevista concedida ao Estado de São Paulo.

Muita coisa muda em dois anos. Nesta quinta-feira, Sergio Moro aceitou convite do presidente eleito Jair Bolsonaro para assumir uma espécie de super-ministério, reunindo as pastas de Justiça e Segurança Pública. Não só entrou na política, como aderiu imediatamente (e “muito honrado”, como ele mesmo coloca em nota oficial) ao primeiro governo federal que apresentou convite. Embora não seja, é claro, um governo qualquer – e essa simples constatação faz toda, absolutamente toda a diferença.

Para o governo Bolsonaro, escalar Sergio Moro traz benefícios claros. Menos de uma semana depois de ganhar a eleição, o recém-eleito já sofre abalos em apoio e popularidade, graças a decisões esdrúxulas como fundir Meio Ambiente e Agricultura, convidar pessoas enroladas com a Lei para ministérios e a possível criação de um insólito Ministério da Família, com ninguém menos que Magno Malta no timão. Contestado até por setores econômicos, dos quais depende decisivamente para evitar turbulências, Bolsonaro ganha uma injeção de popularidade muito bem-vinda ao colocar a boa aceitação da Lava-Jato no coração de seu ministério. A medida pode criar efeitos indesejados a médio prazo, mesmo porque demitir um ministro como Moro é quase impossível. Mas isso pouco importa no momento – em especial para o próprio núcleo do governo, que dá claros sinais de que não está preocupado em planejar muito adiante o que quer que seja.

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Nada disso, porém, pesa da mesma forma para o próprio Sergio Moro

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Acima de tudo, está definitivamente legitimado o discurso de atuação política na Lava-Jato. Ou alguém lembra de juízes da operação Mãos Limpas, na Itália, entrando no ministério de Silvio Berlusconi? Poderá alguém esquecer que os vários supostos erros de condução de Moro – a divulgação inacreditável de áudios de uma presidente em mandato, as articulações em plenas férias para evitar a soltura de Lula – foram sempre para um lado, sempre prejudiciais a uma esfera específica, e que (vejam só a surpresa) essa esfera calha de ser justamente a oposta ao presidente agora eleito?

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Será possível ignorar que, em plena campanha deste ano, Moro levantou sigilo sobre as delações de Antonio Palocci, que o próprio Ministério Público Federal declarou inúteis – e haverá quem, diante de indicações de que o convite de Bolsonaro ao juiz foi feito ainda antes das urnas, seja incapaz de unir os pontos e chegar a uma conclusão?

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Moro afirma que se afastará imediatamente das atividades da Lava-Jato, de forma a evitar “controvérsias desnecessárias”. Tarde demais: sua isenção já foi para o espaço, transformada em cargo político em um governo de inclinações ideológicas indisfarçáveis.  

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Ao aceitar o convite do futuro presidente, Sergio Moro não apenas lançou sombras sobre seu presente, mas cristalizou um discurso que há muito paira sobre sua atuação na Lava-Jato: a de que foi perseguidor e não juiz, atuando como braço de uma guerra política e não como guardião das leis.

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Mesmo os que defendiam a isenção do super-herói de Curitiba ficam sem argumentos diante da quase confissão simbólica que ele acaba de cometer. O conflito de interesse é cristalino, tão óbvio que colocá-lo em dúvida é pedir para passar vergonha.

Graças à obsessão pessoal de Sergio Moro contra Lula, o ex-presidente foi alijado da disputa eleitoral – e, como recompensa, o justiceiro foi convidado (mesmo antes do pleito acontecer) para ocupar um cargo ministerial na chapa mais obviamente beneficiada pela ausência do barbudo. Valendo dizer que a própria esposa de Moro comemorou abertamente a vitória de Bolsonaro, pouco antes do marido ganhar uma privilegiada oportunidade de emprego junto ao novo chefão do Brasil. Questionem o quanto desejarem essa leitura, mas ela é óbvia demais para ser ignorada – e certamente será majoritária em vários lugares, em especial fora do Brasil. Afinal, a Lava-Jato não é exatamente uma campeã de popularidade na mídia internacional, e Lula construiu muito bem a imagem de injustiçado e vítima de lawfare.

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Só um alienado age e pensa política ignorando a esfera internacional. E só um aloprado – ou alguém movido pela vaidade – poderá achar que ninguém vai estranhar que o juiz que prendeu Lula ganhe um super-ministério no governo do rival.

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O guerreiro contra a corrupção e que enfrentava de forma destemida o sistema ficou, definitivamente, nas séries do Netflix: na vida real, alinhou-se na primeira chance que teve com a ala política que favoreceu, dando fortes elementos para argumentar que sua atuação sempre foi movida por simpatias.

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E quem poderá dizer que, daqui para frente, deixará de tê-las?

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Diz-se que, envaidecido pelos aplausos das massas, Moro já cogita inclusive a Presidência da República. Mas as urnas ainda nem esfriaram do pleito deste ano, e 2022 ainda é uma ponte muito distante. Pisando nas nuvens, Sergio Moro talvez não perceba que é como a mulher de César: mais até do que ser honesto, precisa parecer sê-lo. E é precisamente isso que foi comprometido hoje, de forma que pode ser decisiva mais adiante.

Foto original: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil. Montagem: Vós

Igor Natusch

Lula segue preso, mas habeas corpus o fez mais pré-candidato do que nunca

Igor Natusch
9 de julho de 2018

É possível analisar a lambança em torno da não-soltura do ex-presidente Lula, pedida pelo desembargador Rogério Favreto e protelada de todas as formas até ser inviabilizada, por diferentes ângulos. Na esfera do Direito, para citar apenas o mais óbvio, tivemos um fiasco épico para o Judiciário, que se vê com as entranhas expostas e mais esculachado publicamente do que nunca. Mas me parece mais interessante o aspecto político, porque é de política que estamos falando – de uma guerra política, melhor dizendo, centralizada em um pré-candidato fortíssimo mesmo atrás das grades.

Que as circunstâncias em torno do habeas corpus são, no mínimo, peculiares é algo muito difícil de ignorar. Assim como não há como deixar para lá o passado político de Favreto – ex-filiado ao Partido dos Trabalhadores, integrante de governos petistas, único voto a favor do processo contra Sergio Moro pelo levantamento do sigilo na famosa conversa entre Lula e Dilma. Ingênuo também seria pensar que isso não foi levado em conta na hora de ingressar com o pedido de soltura, no timing quase exato para que fosse Favreto, e nenhum outro, a apreciá-lo. Até na pouco sólida alegação de um suposto fato novo – a dificuldade do pré-candidato Lula de conceder entrevistas a veículos de imprensa – se escancara o aspecto absolutamente político em torno do pedido. Se Favreto decidiu pela própria consciência ou em tabelinha com os impetrantes, no fundo, pouco importa: a manobra é política, seja o desembargador jogador ativo ou mero instrumento na obtenção do gol.

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E que golaço, convenhamos. Menos de dois dias depois do Brasil ser eliminado da Copa do Mundo, toda a atenção midiática do Brasil estava à disposição. Corações e mentes, paixões e ódios irracionais dirigidos imediatamente à carceragem de Curitiba. Soltarão Lula? Eis o que todos se perguntavam.

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E aí o outro time entrou em campo

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Sergio Moro, super-herói da moralidade, surgiu mais rápido que o trovão para, em pleno gozo de férias, trazer uma inovação daquelas: um despacho absolutamente maluco, que ninguém saberá dizer a que tipo de figura jurídica se refere, questionando a autoridade de Favreto e admitindo, de forma tão insólita quanto imprudente, que se aconselharia com o relator no TRF-4, João Gebran Neto, sobre o que fazer.

Temos um juiz de primeira instância, em momento no qual não tem jurisdição nem na própria vara (está de férias, por Deus), dizendo que um desembargador em plantão não tem competência para expedir habeas corpus – aquela que é, convenhamos, a mais óbvia de suas competências. Admitindo que, por fora de todos os procedimentos legais, consultou integrantes da mesma instância para decidir como derrubar um habeas corpus que o incomodava e no qual sequer era coator (afinal, refere-se à juíza da execução de pena de Lula). E sendo em seguida confirmado pelo próprio Gebran, que – sempre alerta e à disposição da Justiça, mesmo nas tardes de folga! – chama para si a decisão de soltura tomada por outro desembargador, alegando que ele é relator do caso. Algo deveras questionável, já que, se há fato novo, a decisão de urgência cabe ao desembargador de plantão. E um habeas corpus do tipo, certo ou errado que seja, só pode ser anulado por decisão do colegiado, ou de instância superior. Ou ao menos assim era, nos tempos em que o ordenamento jurídico valia alguma coisa.

Por fim, a pá de cal. Thompson Flores, presidente do TRF-4, ergue-se em plena folga para, com a autoridade dos grandes árbitros, revogar a decisão de Favreto e coloca ordem na bagunça. Qual o mecanismo que dá a um desembargador, pelo simples fato de ser presidente, poder para revogar a decisão de um colega em pleno exercício do plantão, ninguém sabe direito qual seja. Nunca, na história do Judiciário brasileiro, se ouviu falar que a presidência de um tribunal seja uma instância recursal no próprio tribunal. Mas é o presidente, ora pois: que bom que alguém colocou as coisas em seus devidos lugares!

Não importa muito, a essa altura. O golaço narrativo – de placa, no ângulo – o time dos pró-Lula já pode comemorar.

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Temos, antes de tudo, um recorde: um habeas concedido em período de plantão, não cumprido por aqueles legalmente obrigados a tal e revogado, com velocidade de Usain Bolt e grande criatividade jurídica, durante o mesmo período de plantão. Temos também a narrativa, que já existe há tempos, mas a petição acolhida por Favreto tinha como interesse reforçar: Lula é um preso político, e sua prisão é objetivo, não consequência. E, por fim, o texto nas entrelinhas, ou o canto da sereia, se preferirem: se a candidatura de Lula causa tanto horror, aí sim é que ela não pode ser deixada para trás.

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Um recado para os colegas de trincheira, sem dúvida. E uma leitura que Moro, Gebran e Thompson Flores não tiveram pudores de fortalecer.

Com sua pressa quase maníaca em garantir que o ex-presidente não ficasse solto um segundo sequer, os três escancararam não apenas a vaidade, a visão justiceira do Direito e a falta de respeito pelos procedimentos que, há tempos, consomem o Judiciário brasileiro. Deixaram claro que, quando o assunto é manter Lula fora de cena e o PT longe do poder, nenhum prazo é muito curto, nenhuma ausência é distante demais. Quem ainda achar que são isentos cumpridores da lei, depois da pataquada de domingo, pode retirar sua carteirinha de sócio master do Clube Velhinha de Taubaté no guichê mais próximo.

Numa batalha tão profunda entre narrativas, deixar o adversário nu é uma moeda política valiosa. As chances de Lula concorrer seguem escassas, mas agora ele é – inclusive, e especialmente, no campo simbólico – mais pré-candidato do que nunca.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

Um STF amigo do rei não é capaz de proteger a democracia

Igor Natusch
14 de março de 2018

Ninguém precisa simpatizar com o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para concordar com ele sobre o patético encontro da presidente do STF, Cármen Lúcia, com o presidente da República, Michel Temer. Segundo ele, o papo informal entre ambos, ocorrido no último final de semana, causa “perplexidade“. Está certo: é de deixar qualquer um perplexo, mesmo.

Claro que os nomes máximos do Executivo e do Judiciário podem (muitas vezes devem) se encontrar para discutir questões de interesse nacional. Mesmo que o presidente tenha contra si acusações graves e enfrente uma inédita quebra de sigilo bancário durante o mandato, ele ainda é o presidente e tem obrigações que exigem uma interlocução com o Supremo.

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O que não dá para engolir é que isso seja feito sem a liturgia que um encontro entre poderes exige – e que se mostra ainda mais indispensável em uma situação de incerteza profunda sobre os rumos da nação.

 

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Quem não gostaria de sentar na sala de estar da ministra Cármen Lúcia e discutir questões de seu interesse em um ambiente informal, talvez desfrutando de café recém-passado e bolinhos de chuva? Terão os advogados do ex-presidente Lula, que tanto pleiteiam uma definição sobre o cumprimento de penas em segunda instância, a perspectiva de uma acolhida tão calorosa? A Sepúlveda Pertence, integrante da defesa de Lula e igualmente interessado nos desdobramentos na alta corte, Cármen Lúcia dedicou a formalidade de um encontro de gabinete, ao final de uma manhã de meio de semana, sem salamaleques ou intimidades exageradas.

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Está totalmente correta, é claro. Errada esteve antes, ao aparecer sorridente ao lado de Michel Temer dentro da própria casa.

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Aliás, a insistência de Cármen Lúcia em não pautar a resolução sobre o imbróglio em torno do cumprimento de penas de segunda instância merece um parênteses. Finge firmeza, a ministra, ao dizer que não se dobra a pressões, que evita um comportamento casuístico. Não é igualmente casuístico deixar de discutir uma questão absolutamente central para a segurança jurídica do País, apenas para não causar a impressão de estar favorecendo uma figura pública? Não será preocupante (para não dizer catastrófico) deixar uma incerteza dessas pendendo sobre todos, manter um cenário onde ninguém sabe direito se o condenado em segunda instância ainda pode recorrer em liberdade ou não, apenas porque se quer bancar o jogo do sério com os defensores do pré-candidato?

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Não é firmeza: é teimosia, e talvez possa ser coisa pior. Coloca o Brasil em uma panela de pressão, de forma perigosa e potencialmente insustentável.

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Quando a presidente do STF recebe o mandatário da Nação em sua casa, fora do horário de expediente, para um dedo de prosa a portas fechadas, está passando um recado horroroso para os brasileiros. E está reforçando a leitura coletiva de que o Supremo é um clube de amigos, severo apenas com os que estão do lado de fora, caloroso e sorridente com os integrantes de seu círculo de poder. Ou alguém é ingênuo ao ponto de achar que a troca de ideias entre Cármen e Temer tratou somente da intervenção no Rio e da situação dos presídios, sem entrar no tema do inquérito sobre as propinas da Odebrecht, que envolve diretamente o presidente?

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Se os temas eram formais e republicanos, o que impedia a discussão durante o expediente? Ou será que a agenda da presidente do Supremo é cheia de coisas mais importantes do que conversar com o líder do Executivo, ou vice-versa?

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Uma alta corte que, de guardiã da Constituição, transformou-se em editora e reescritora da mesma, ao ponto de abrir margem para coisas juridicamente complicadíssimas, como achar que trânsito em julgado pode acontecer antes de todas as esferas recursais estarem esgotadas. Um STF que, ao invés de ser uma constância em tempos difíceis, transformou-se em ator da crise, em uma força que intensifica conflitos e amplia a sensação geral de incerteza e desalento. Uma casa que julga para um diferente do que julga para outro, ao ponto de submeter a própria Cármen Lúcia a um dos momentos mais vexatórios de sua carreira jurídica, que vai à imprensa antecipar juízos e opinar sobre questões em aberto sem constrangimento, que reveza a agilidade de um puma com a lerdeza de um caramujo dependendo de quem está na berlinda.

Quem poderá, diante de semelhante lista de problemas, dizer que o STF é confiável, que sobre os seus não paira dúvida, que é possível contar com ele para ser a rocha sólida em tempos de caótica fluidez? E que democracia poderá sobreviver quando não se confia naquela que deveria ser a voz serena, que se faz ouvir apenas quando tudo o mais fraqueja, que protege a lei maior como bem mais precioso? O que nos resta quando o STF não se constrange em aparecer como amigo do rei, colocando a estabilidade e a própria Justiça em risco?

Foi nesse cenário, e em nenhum outro, que Cármen Lúcia acenou sorridente ao lado de Michel Temer no fim de semana. Pelo jeito, até os ateus terão que pedir que Deus proteja o Brasil, porque essa tarefa o STF não dá pinta de que vá cumprir.

Foto: TV Globo/Reprodução

Igor Natusch

A intolerância crescente dá fôlego ao sonho eleitoral da extrema-direita

Igor Natusch
20 de setembro de 2017

FATO 1

Depois de ter sua encenação proibida em Jundiaí (SP) por meio de uma insólita antecipação de tutela para não macular o “sentimento do cidadão comum” (seja lá o que for isso, juridicamente falando), houve quem quisesse que a peça “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, que coloca uma mulher trans no papel principal, fosse proibida também em Porto Alegre. Felizmente, o juiz Jose Antonio Coitinho não embarcou nessa canoa furadíssima e, em uma decisão no geral bastante sábia, rechaçou completamente, no último dia 19, um pedido de suspensão da peça – que recorria, é claro, ao batidíssimo e nada jurídico argumento de “afronta aos costumes religiosos”.

A peça, desde já um sucesso, teve que ser transferida da acanhada Pinacoteca Rubem Berta para o Teatro Bruno Kiefer, bem mais amplo e capaz de acomodar a todos que desejam assisti-la. Os ingressos estão esgotados para as duas sessões. Pena, pois realmente gostaria de assisti-la.

FATO 2

O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, achou justo atender pedido de um grupo de psicólogos (alguns deles claramente identificados com grupo religiosos e políticos antipáticos à população LGBT) e decidiu que o Conselho Federal de Psicologia não pode “proibir” profissionais de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, caso pacientes “voluntariamente venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade”. Um bonito jogo de palavras que, por ignorância ou má intenção, esconde o óbvio: uma resolução de mais de 18 anos, que impede psicólogos de tratar homossexualidade como doença, foi invalidada na base do canetaço. Ainda cabe recurso à liminar, e nos resta esperar que instâncias superiores revoguem essa sandice.

FATO 3

Pesquisa CNT-MDA mostra Jair Bolsonaro com 10,9% de intenções de voto na pesquisa espontânea para a Presidência da República, situação em que o entrevistador apenas pergunta em quem a pessoa deseja votar. Como sabemos, esse é o voto teoricamente mais consolidado, o menos vulnerável ao noticiário e aos acontecimentos em geral, o menos aberto a qualquer tipo de argumentação. Em fevereiro, ele tinha 6,5% nessa modalidade. O mesmo pré-candidato que declarou que os organizadores da mostra Queermuseu “deveriam ser fuzilados” – logo depois dourou a pílula e disse que era “força de expressão”, mas ainda assim deixou bem claro o seu grau de tolerância com manifestações artísticas de temática LGBT.

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De posse desses dados, aparentemente disparatados, que trilhas nos surgem?

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Acho que todos falam, basicamente, de um encorajamento de posturas francamente intolerantes. Não que jamais tenhamos tido pessoas indo à Justiça para impedir a visibilidade de outras, ou mesmo que não tenham inclusive vencido em alguns casos. Mas agora temos uma onda, um processo onde uma ousadia autoritária encoraja a outra, onde um movimento intolerante não devidamente combatido serve de estímulo a outra intolerância, ainda mais estridente e desavergonhada. Estivéssemos razoavelmente saudáveis, enquanto sociedade, e ninguém cogitaria seriamente que uma exposição inteira fosse fechada aos gritos de que há “pedofilia” em algumas ilustrações, tampouco veríamos turbas comemorando a proibição de uma peça teatral.

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São movimentos que ganham força na medida em que a intolerância se espalha, quando cada vez mais parece que a solução não deve ser dialogada, mas sim imposta, se possível com a eliminação física do problema. Quando nada parece seguro, as respostas fáceis e verticais parecem cada vez mais tentadoras – e quando elas se mostram possíveis, fica muito difícil controlar o vagalhão

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Por outro lado, todos sabemos que o pré-candidato mencionado acima é uma espécie de meme ambulante, uma figura que conjuga de forma cada vez mais visível tanto a imagem de outsider, supostamente sem “rabo preso” como os políticos mais tradicionais, quanto de pessoa que não tem medo de dizer o que pensa, que não dá folga a vagabundos, que vai botar ordem na casa da forma mais simples e radical possível – todos argumentos intangíveis e sem grande base racional, mas que caem como uma luva em um momento tão cheio de incertezas, medos e cisões.

Segundo a mesma pesquisa da CNT-MDA, Bolsonaro perde para Lula em um eventual segundo turno, mas venceria tanto Dória quanto Alckmin – um sinal claro de que a polarização política, ainda que siga muito importante para impulsionar o virtual candidato da extrema direita, não é tão decisiva assim para o seu voo solo.

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Há mais coisas envolvidas em Bolsonaro do que pode parecer – e elas são do conjunto da sociedade e de sua fragmentação, bem mais do que originadas no medo irracional do barbudo comunista que pode voltar à presidência

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Esse é o cenário que torna possível que, estatisticamente, mais de um décimo dos brasileiros esteja disposto a votar em Bolsonaro, independente de qualquer coisa. E que dá à sua candidatura uma relevância crescente e que, racionalmente, não pode ser ignorada. Daí a dizer que a vitória da extrema-direita em 2018 é um fato consumado ou mesmo a hipótese mais provável vai uma longa distância, cujas circunstâncias pretendo desdobrar em um post futuro. Por enquanto, fica o alerta: são as rachaduras em nossa convicção democrática que estão alimentando a intolerância, e é essa intolerância triunfante que dá fôlego à candidatura bolsonarista. É um cenário de sonhos reacionários possíveis, tanto no Judiciário quanto no dia a dia, e certamente também na frente da urna. Mudar o cenário só é possível a partir dessa compreensão.

Foto: Divulgação