Há dez anos, eclodia um dos principais ciclos de protesto da história da democracia brasileira. As Jornadas de Junho de 2013 são um marco na política do país. Um divisor de águas, podemos dizer. O que começou com um protesto pela redução no preço da passagem do transporte público culminou em uma das maiores mobilizações populares que o Brasil já viu.
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A essa altura, já sabemos que não foi apenas por 20 centavos, mas há muito a entender
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Os protestos fizeram bem pra o país? Ou foram responsáveis por todo o mal do mundo? Aqui, a gente acredita que não foi nem uma coisa, nem outra. Mas reconhecendo que é um assunto complexo – e com a intenção de cultivas essas complexidades -, vamos dedicar dois episódios ao tema.
Na semana que vem, a gente vai contar pra vocês das nossas experiências pessoas em lados diversos. Cobrindo, reportando, estudando e, ainda, o lado de quem estava dentro do governo. Mas antes disso, a gente traz uma análise técnica sobre as Jornadas de Junho. Vamos conversar com o professor Marcelo Kunrath Silva, do departamento de Sociologia da UFRGS.
E já que o dia pede, vamos falar sobre a indicação e sabatina de Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Apresentação de Geórgia Santos e participação de Igor Natusch – e Flávia Cunha na Palavra da Salvação. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
O STF decidiu que ao governo federal coube basicamente envio de recursos e meios para a Saúde. Não se justifica esta crítica do ex-presidente Lula, que agora inicia uma campanha.”
Assim Jair Bolsonaro reagiu ao pronunciamento de Lula, nessa semana. O discurso ocorreu depois de decisão do ministro do STF, Edson Fachin, que anulou todas as condenações do ex-presidente pela Justiça Federal do Paraná relacionadas à operação Lava Jato. Durante sua fala, Lula fez duras críticas ao descaso do governo federal com a condução da pandemia no Brasil. Após o posicionamento do adversário político, Bolsonaro usou dois recursos para tentar se defender. Mentir e atacar o Supremo Tribunal Federal.
Falácias repetidas
O argumento de “não poder fazer nada” porque foi impedido pelo STF é tão requentado que já teve nota oficial do Supremo publicada há quase dois meses. No texto, há o desmentido em relação a falas semelhantes do presidente da República e à viralização dessa alegação falsa nas redes sociais.
Mas Bolsonaro não parece se constranger em repetir o discurso baseado em uma inverdade, Afinal, o Supremo é um de seus alvos preferidos de ataques desde a campanha eleitoral de 2018. Ele parecia adivinhar que, ao chegar ao poder, tomaria decisões que seriam contestadas pelo Judiciário. Afinal, a função do Supremo é justamente a de fazer com que a Constituição brasileira seja cumprida. Saiba todas as funções detalhadas do STF aqui.
Guerra sem fim com o Judiciário
Considero um fato curioso que Bolsonaro siga atacando o STF, ainda que indiretamente decisões do Supremo tenham o beneficiado. Um desses exemplos foi a rejeição do pedido de habeas corpus da defesa de Lula, em abril de 2018. A prisão do ex-presidente poderia ter sido adiada ou mesmo evitada, naquela época, se a decisão dos ministros do STF tivesse sido diferente. Mesmo assim, a lógica bolsonarista é a de manter um clima de guerra com o Judiciário como nenhum presidente fez desde o início da chamada Nova República, em 1985.
Ataques históricos ao Supremo
Porém, não é a primeira vez que a instância máxima do Judiciário brasileiro sofre perseguições desde a sua criação, em 1891. As ameaças ao STF ocorreram sempre que a democracia esteve ameaçada de alguma maneira, conforme alerta o jornalista Felipe Recondo no livro Tanques e Togas. A publicação é fruto de uma extensa pesquisa sobre o papel do Supremo durante a ditadura militar, conforme comenta o autor na introdução da obra:
“Os tanques estavam nas ruas. Os militares comandavam o Brasil em um clima típico de guerra fria. O ‘Comando da Revolução’ depusera um presidente legítimo. Garantias fundamentais foram suspensas. Prisões políticas, efetuadas. Cassações, tortura, censura, desaparecimentos e mortes marcaram a ditadura. A Constituição foi substituída por atos de exceção. Em meio a tudo isso encontrava-se o Supremo Tribunal Federal (stf). Um tribunal desconhecido da população. Fechado para a imprensa. Discreto. Uma corte que viu seu presidente, o ministro Ribeiro da Costa, legitimar e apoiar o golpe de Estado em 1964. Uma corte ameaçada, diluída e, cinco anos depois […] violada pela cassação de três de seus integrantes.”
Ameaças desde o início da República
Fazendo uma retrospectiva do histórico do STF, Felipe Recondo explica que as primeiras perseguições ocorreram ainda no século 19, no governo de Floriano Peixoto. Esse período histórico é marcado por uma grande instabilidade política após a renúncia de Deodoro da Fonseca, general que proclamou a República e que saiu do cargo ao tentar, sem êxito, fechar o Congresso Nacional.
O episódio relatado no trecho abaixo se refere a um pedido de habeas corpus feito pelo jurista Rui Barbosa. A medida visava tirar da prisão generais que se rebelaram contra a deposição de governadores leais a Deodoro da Fonseca.
“Naqueles primeiros anos da República, o tribunal sofreu as primeiras ameaças de sua história. Dias antes do julgamento do novo habeas corpus impetrado por Rui Barbosa, correu como verdadeira a notícia de que o presidente da República, Floriano Peixoto, teria se antecipado a uma improvável derrota e vaticinado: ‘Se os juízes do tribunal concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão’. O governo venceu com folga, e é muito provável que assim teria sido com ou sem ameaça.”
Um aparte necessário
Claro que não estou aqui atribuindo a mais completa perfeição ao Supremo Tribunal Federal e aos ministros que integram ou integraram a corte. Mas é preciso ficar muito claro que eventuais alterações nas competências do STF seriam possíveis apenas por meio de uma reforma constitucional. E, vale lembrar, esse pedido de mudança na Constituição relativo ao Judiciário não parece estar entre as prioridades de reformas de Bolsonaro, que prioriza pautas econômicas.
Atitudes antidemocráticas
Sendo assim, a retórica bolsonarista beira mesmo a defesa do fim da democracia. Quem não se lembra das faixas criticando o STF e pedindo a volta da ditadura, em um protesto, em Brasília, em 2020? O reiterado e constante direcionamento de crítica e ódio ao Judiciário por parte da extrema-direita é, no mínimo, um motivo de alerta. Não é à toa que depois da decisão favorável a Lula, maior adversário político do presidente da República, o ministro Edson Fachin foi alvo de ameaças. tendo sua segurança reforçada como medida preventiva.
Um lembrete histórico
Como destaca Felipe Recondo:
“O caminho do Supremo Tribunal Federal brasileiro, desde os primeiros dias, foi vacilante, ao sabor de golpes e mudanças de regime, de ameaças e violências institucionais.”
Em tempo
Muito antes do bolsonarismo, eu pessoalmente tinha algumas críticas ao STF. Uma delas é ao rebuscado linguajar jurídico, que acaba fazendo com que a maioria da população tenha dificuldades em compreender as decisões e até as atribuições do Supremo. Por isso, indico aos interessados o livro O Judiciário ao Alcance de Todos – Noções Básicas de Juridiquês. Ele é disponibilizado gratuitamente pela Associação dos Magistrados Brasileiros e pode ser acessado aqui.
O dia a que Luiz Inácio Lula da Silva se refere é o dia em que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu anular as condenações do ex-presidente petista na Operação Lava Jato. Como se não bastasse, o ministro Gilmar Mendes resolveu retomar a discussão sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. No dia seguinte.
Depois de anos, Lula convocou uma coletiva para falar justamente sobre a anulação das condenações. Mas ao contrário do que muitos esperavam, o tom não foi de raiva, ódio ou ressentimentoNo pronunciamento desta quarta-feira (10), Lula mostrou uma face humana, conciliadora, que dialoga com os mais pobres, que se solidariza com os parentes dos mortos pelo coronavírus. O discurso do petista se opõe frontalmente ao de Jair Bolsonaro. Na forma e no conteúdo. Contrasta com a posição raivosa que, infelizmente, estamos habituados a ouvir. Eleva o nível do debate político e deixa de lado grosserias, ameaças, termos chulos. Mas nao se exime de críticas, pelo contrário. Acerta Bolsonaro na jugular e defende a vacina.
Lula não fala em 2022, não diz se será ou não candidato, afinal, essa decisão faz com que ele possa disputar as eleições, mas a disputa está lançada e parece que Bolsonaro entendeu o recado.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Nós pensávamos que o assunto dominante seria o avanço da Covid-19 pelo Brasil, mas não é. O assunto dominante continua sendo Jair Bolsonaro, que está em guerra declarada contra o Supremo Tribunal Federal (STF).
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Bolsonaro afirma que o STF age contra a liberdade de expressão. Logo ele, que espantou a imprensa do Planalto. Pela primeira vez no período democrático, parte dos veículos da mídia tradicional se recusa a fazer cobertura por falta de segurança
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Esses defensores da liberdade de expressão que acham normal uma ameaça de morte. Como disse Eduardo Bolsonaro em entrevista ao jornalista José Luís Datena, na intimidade, até um pais pode dizer que quer matar o filho.
Que coronavírus, que nada, nem Ministro da Saúde temos. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
BSV Especial Coronavírus #11 Enfim, o vídeo de Bolsonaro
Geórgia Santos
22 de maio de 2020
E como já é de praxe, estamos sextando! De novo por culpa de Jair Bolsonaro. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, derrubou o sigilo do vídeo da famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril. Segundo Sérgio Moro, foi nesta reunião em que o presidente ameaçou interferir na Polícia Federal.
O vídeo é bastante claro com relação a tentativa de interferência e confirma a denúncia de Moro. Mostra que Bolsonaro incorreu em crime de responsabilidade. Mas o vídeo mostra mais que isso.
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Mostra que somos governados por pessoas ignorantes, grosseiras, ineptas e cruéis
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O ministro da educação, Abraham Weintraub, pede a prisão de ministros do STF e destila podridão. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, quer aproveitar que a mídia só fala em Covid para afrouxar regulação ambiental. O ministro da Economia, Paulo Guedes, garante que o Brasil surpreendera o mundo. Já está surpreendendo. Estamos perto de ser o país com o maior número de mortes por dia em função do coronavírus.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natuch e Tércio Saccol.Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Nesta semana, Lula Livre. Vamos falar da decisão do Supremo Tribunal Federal que, por 6 votos a 5, decidiu contra a prisão após condenação em segunda instância e impactou diretamente o caso do ex-presidente Lula, que foi solto no dia seguinte à votação do STF.
Apesar de a decisão apenas ratificar o que sempre esteve na Constituição, não agradou ao ex-juiz Sérgio Moro, antes algoz de Lula, hoje ministro da Justiça. O desfecho tampouco foi uma notícia para o presidente Jair Bolsonaro, que admitiu que, sem a ajuda de Moro, o cenário político poderia ser outro.
O Supremo passou um ano discutindo uma cláusula pétrea da Constituição, mas o mais impressionante é que foi uma votação apertada; amplamente contestada por alguns setores da sociedade e seguida por inúmeras informações falsas. E é disso que a gente vai falar no programa de hoje, do STF enquanto espaço político. Participam Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch.
Com Lava-Jata enfraquecida, STF e Congresso se unem no contra-ataque
Igor Natusch
8 de agosto de 2019
Se há algo que aproxima a operação Lava-Jato do atual governo, é a disposição de usar o conflito como estratégia de legitimação e fidelidade. É apenas a partir deste ângulo que a intempestiva decisão de transferir o ex-presidente Lula de Curitiba para o presídio do Tremembé, em São Paulo, ganha motivação e significado.
Diante do enfraquecimento da aura de santidade em torno da operação, disparada pelos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil, a decisão da juíza federal Carolina Lebbos recoloca a figura odiada de Lula no centro do noticiário. Como elemento central da brincadeira, ficava no ar a possibilidade de colocá-lo em uma cela coletiva, ao invés da sala especial de Curitiba. Um aceno nada sutil aos anseios sádicos da ala que sempre sonhou em ver o ex-presidente em uma cela superlotada de um penitenciária comum. Ao frustar a realização (mesmo que apenas imaginária) dessa tara, o STF colaria em si mesmo a etiqueta de aliado de Lula, logo inimigo da Lava-Jato, logo inimigo do Brasil.
Esse parece ser o plano. Se o plano deu ou está dando certo, são outros quinhentos.
A movimentação mais significativa parece ter vindo do Congresso Nacional. O repúdio uniu parlamentares e senadores, de oposição e de centro, e recebeu um endosso emblemático do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Fazer uma pausa na votação dos destaques da Reforma da Previdência para que uma delegação de deputados pudesse falar com o presidente do STF, Dias Toffoli, é de uma simbologia muito forte.
Nada é mais importante no Congresso do que aprovar a reforma – mas enfrentar a decisão da Lava-Jato mostrou-se ainda mais importante do que isso. E ganhou, a partir do intervalo trazido por Maia, um caráter institucional.
Se a Câmara dos Deputados decidiu comprar essa briga, certamente não foi por solidariedade, ou porque acham o Lula bonito.
Ao enfrentamento explícito do Congresso, sucedeu-se uma demonstração quase afrontosa do Supremo. Um placar de 10 a 1 contra a transferência, vindo de um tribunal pressionado e dividido como o STF, é muito significativo, ainda mais em tema tão delicado e com rapidez de poucas horas. E que não surge da mera convicção de que a medida fosse equivocada. Quem poderá ignorar as recentes revelações do Intercept Brasil e veículos parceiros, mostrando ações do procurador Deltan Dallagnol para investigar, de forma ilegal, ministros do STF?
Se a ideia da Lava-Jato era demonstrar força e capacidade de enfrentamento, o efeito parece não ter sido o desejado. O que ficou evidente, isso sim, foi o enfraquecimento da operação, pelo menos diante de seus antagonistas.
A classe política, que passou anos no córner e viu muitas de suas principais figuras atrás das grades, ensaia uma reação. O STF, atacado tanto nos bastidores quanto à luz do dia, deixa claro que está disposto a dobrar a aposta. Pressionados pela opinião pública até então apaixonada pela Lava-Jato, esses núcleos evitavam reagir aos excessos da operação; agora, que o desgaste de Moro, Dallagnol e cia. é notório e crescente, unem-se para o contra-ataque. E nem o nome de Lula (figura cuja defesa pública, até há pouco tempo, era impensável para esses grupos) tem o mesmo poder de intimidação de antes.
Não é uma simples reação de corruptos contra o braço forte da Justiça. É um posicionamento coletivo na disputa pelo poder. E que se torna possível agora, que a Lava-Jato não parece mais tão imbatível quanto antes.
A estratégia de manter-se no ataque o tempo todo é eficiente para direcionar leituras e narrativas, mas não é livre de limites. Um deles é um tanto óbvio: quanto mais numerosas as frentes de batalha, mais difícil é manter a intensidade da artilharia.
A Operação Tremembé certamente amplia o fosso entre os defensores da Lava-Jato e os que criticam suas práticas, e isso favorece quem extrai seu poder justamente dessa oposição inconciliável. Mas o episódio também marca a primeira vez que uma ação da força-tarefa é enfrentada de forma coletiva, enfática e eficiente. E talvez o apoio da torcida não seja mais suficiente para garantir a vitória em casa.
OUÇA Bendita Sois Vós #24 Criminalização da homofobia e transfobia
Geórgia Santos
22 de junho de 2019
No segundo episódio da segunda temporada do Bendita Sois Vós, o tema é a criminalização da homofobia e da transfobia pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, nem só de Vazajato vive o Brasil – embora novas revelações sejam publicadas pelo The Intercept Brasil a cada semana.
Por oito votos a três, os ministros do STFconsideraram que atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais devem ser enquadrados no crime de racismo. A pauta vinha sendo debatida desde fevereiro deste ano, quando o relator, Ministro Celso de Mello, deu parecer favorável à causa. Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol discutem os méritos e controvérsiasda questão que, inclusive, não foi bem recebida por Jair Bolsonaro. O presidente do Brasil acredita que é preciso um ministro evangélico na corte.
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Além do debate, um teste do Buzzfeed para medir o nosso conhecimento sobre novo entendimento da lei
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No quadro Sobre Nós, Raquel Grabauska traz uma adaptação do texto Garopaba Mon Amour, de Caio Fernando Abreu. Um retrato da violência decorrente do pensamento torpe e moralizador que insiste em perseguir homossexuais no Brasil e no mundo.
Dizer que a Lava-Jato foi ferida de morte seria uma grande besteira, é claro. Mas não há exagero em apontar que a operação, personificada em suas figuras definidoras, está definitivamente desmoralizada a partir da série de reportagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no último domingo. A broderagem explícita, escandalosa e ilegal entre Moro e a operação, em especial o procurador Deltan Dallagnol, estava há tempos visível, mas ainda existia em um terreno, digamos, não material. Agora, com a revelação de conversas indecentes e dos acordos absurdos que qualquer um pode ler, está escancarada de forma acachapante, impossível de ignorar.
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Os justiceiros estão nus, e sua nudez é tamanha que ignorá-la deixou de ser um acordo coletivo para virar profissão de fé. A Operação Mãos Limpas Made in Brasil revela suas mãos encardidas, imundas. A casa caiu, em suma
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Estivesse o Brasil em condições normais de temperatura e pressão, o ministro Sergio Moro renunciaria ao cargo ainda hoje
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Sabemos, no entanto, que o Brasil está muito longe das CNTP dos tempos de escola. As reações de Moro e Dallagnol até aqui, fazendo pouco ou nenhum caso das graves revelações, demonstram uma aposta na força do capital político e social adquirido: isso é algo menor, não nos tira do rumo, olhem tudo que já fizemos pela nação, seguiremos atuando de forma incansável para combater a chama corrupta que consome o país. Difícil imaginar que as multidões que organizaram “Acampamentos Sérgio Moro” e usaram camisetas com o rosto do ídolo vão simplesmente abandoná-lo a essa altura – afinal, como bem sabemos, a idolatria não deixa de ser uma forma de teimosia.
Apostar em uma rápida desidratação que forçasse Moro a juntar os cacos de dignidade e pedir a renúncia seria apostar em um Brasil onde a razão, o respeito às instituições e o bom senso fossem levados em conta. Talvez esse Brasil exista em algum best seller de livraria de aeroporto, porque no mundo real não há nem sinal dele.
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Ainda assim, o golpe é duríssimo. O capital moral de Moro e da Lava-Jato sangra em praça pública, com consequências imensas e potencialmente imprevisíveis
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O STF, apenas para citar o aspecto mais óbvio, tem em mãos material mais do que suficiente para botar abaixo boa parte da Lava-Jato – o que, por óbvio, implica sim em tornar nulos os casos contra Lula e soltá-lo o mais rapidamente possível. Se isso de fato ocorrerá, veremos nos próximos capítulos.
Verdade que nada do que vem sendo exposto significa que não tivemos desvios criminosos na Petrobrás e que agentes públicos não tiveram envolvimento na bandalheira. Nada inocenta Lula ou qualquer outra pessoa das acusações imputadas. Mas não se pode, em um Estado que se pretende de Direito, manter alguém preso apenas porque se deseja que ele fique atrás das grades, muito menos tolerar que o julgador atue como acusador. Se o absurdo uso de escutas de advogados para montar o caso contra o ex-presidente já seria suficiente para abalar decisivamente a condenação (e é), os fatos agora revelados deixam tudo ainda mais inescapável.
Se houve tabelinha entre juiz e força-tarefa para prender Lula (e quem duvidará que houve, depois de tudo que se revelou desde ontem?), o caso revela-se nulo, sua condenação nada vale e ele é um homem livre. Agir de forma diferente é confirmar que a Constituição virou papel para acender lareira, que estamos no reino do arbítrio e nada vale senão a vontade de quem tem poder. Se o material publicado pelo The Intercept Brasil foi obtido pelo hacker de forma ilegal, ainda assim ele serve para declarar nulidade de processos – o que, aliás, diz o próprio ministro Alexandre de Moraes, em livro elogiado por sua doutrina.
É um jogo de muitos riscos – e soltar Lula, é claro, também envolve riscos tremendos para muitas pessoas. Mas a disputa de poder entre Lava-Jato e Supremo não é de agora, e fica difícil visualizar os ministros perdendo a chance de aplicar em seus inimigos um golpe potencialmente mortal. Isso para não falarmos no quanto o sonho de Moro em tornar-se ministro do STF fica distante depois do escândalo em torno de seus procedimentos.
Além disso, temos as ruas. A revelação das conversas nada institucionais de Moro surge dias antes de uma greve geral, convocada para o dia 14 – um ato que, desde o início, amplia a pauta dos cortes em universidades em um discurso potencialmente mais amplo, mais aberto ao combate à reforma da previdência, por exemplo. Não é nada difícil imaginar que os setores que pedem Lula Livre estão inflamados, e engrossarão ainda mais essas manifestações daqui para frente.
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Quem viveu 2013 sabe que os protestos se transformaram em fenômeno viral justamente quando se tornaram permeáveis a outros gritos, indo (de forma não raro histriônica e caótica) muito além da pauta original do transporte público. Em uma semana que se promete horrorosa para o governo, os movimentos de oposição ao governo Bolsonaro ganham uma boa chance de saírem das cordas de vez
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Não se trata, aqui, de tentar prever uma onda de arrependidos abandonando Moro e Bolsonaro rumo à oposição. É um cenário meio fantasioso, na verdade, e que no fundo pouco interessa. O que surge, a partir das conversinhas de Moro e da inserção delas em um cenário já incerto e conturbado, é a possibilidade de um movimento agregador de insatisfações, até aqui, pulverizadas. Impossível dizer se acontecerá, mas os fatores estão presentes. E, caso ocorra uma escalada da crise, somada a um fortalecimento de seus antagonistas, Lava-Jato e governo Bolsonaro estarão colocados, juntos, no olho do furacão. Tudo por força de Sergio Moro, o elo que liga essas duas pontas em risco.
Vivemos em um estado laico, pelo menos isso é que consta na Constituição brasileira, em seu artigo 19, inciso I:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Na prática, sabemos que em um país de maioria católica, assuntos como a interrupção da gravidez saem da esfera de saúde pública e do direito individual para misturarem-se com fé e religião. Foi o que vimos no Supremo Tribunal Federal durante a debate sobre a descriminalização do aborto, ainda sem data para ir à votação. O julgamento e a falta de alteridade com quem faz abortos clandestinos no Brasil, em especial com as integrantes de classes sociais mais baixas, me lembra a época da Inquisição. Os condenados eram, na maioria, mulheres que rompiam com os padrões vigentes.
Arthur Miller, no clássico As Bruxas de Salém, questiona a perseguição contra determinadas personagens da peça teatral, em um enredo baseado em fatos reais:
O acusador agora é sempre sagrado? Eles nasceram hoje de manhã, limpos como as mãos de Deus? Eu digo ao senhor o que está a solta em Salém: vingança é o que está à solta em Salém.”
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As “bruxas modernas” não estão só no Brasil. Na Argentina, outro país em que a religião mistura-se com o Estado, as mulheres livres enfrentaram um revés, com o Senado rejeitando a legalização do aborto. Lembrando que os países latino-americanos são os que mais restringem essa prática no mundo.
E se você que está me lendo agora é contra o aborto, não o faça. Mas não tente exigir que uma mulher crie um filho sem condições financeiras ou amor ou qualquer que seja o motivo pelo qual ela sofre. Todas as partes envolvidas sofrerão a longo prazo, principalmente em um sociedade como a brasileira, em que o sistema de adoção é lento e complicado e o apoio a crianças em situação de rua é insuficiente. Sem contar as situações em que as mulheres são obrigadas a abortar e correm risco de vida por se tratar de um procedimento clandestino. Um procedimento que não trata da morte de um bebê, mas da interrupção da gravidez de um feto cujo sistema nervoso central sequer está formado.