Voos Literários

As bruxas modernas, o aborto e a religião

Flávia Cunha
14 de agosto de 2018

Vivemos em um estado laico, pelo menos isso é que consta na Constituição brasileira, em seu artigo 19, inciso I:

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”

Na prática, sabemos que em um país de maioria católica, assuntos como a interrupção da gravidez saem da esfera de saúde pública e do direito individual para misturarem-se com fé e religião. Foi o que vimos no Supremo Tribunal Federal durante a debate sobre a descriminalização do aborto, ainda sem data para ir à votação. O julgamento e a falta de alteridade com quem faz abortos clandestinos no Brasil,  em especial com as integrantes de classes sociais mais baixas, me lembra a época da Inquisição. Os condenados eram, na maioria, mulheres que rompiam com os padrões vigentes.

Arthur Miller, no clássico As Bruxas de Salém, questiona a perseguição contra determinadas personagens da peça teatral, em um enredo baseado em fatos reais:

O acusador agora é sempre sagrado? Eles nasceram hoje de manhã, limpos como as mãos de Deus? Eu digo ao senhor o que está a solta em Salém: vingança é o que está à solta em Salém.”

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As “bruxas modernas” não estão só no Brasil. Na Argentina, outro país em que a religião mistura-se com o Estado, as mulheres livres enfrentaram um revés, com o Senado rejeitando a legalização do aborto. Lembrando que os países latino-americanos são os que mais restringem essa prática no mundo.

E se você que está me lendo agora é contra o aborto, não o faça. Mas não tente exigir que uma mulher crie um filho sem condições financeiras ou amor ou qualquer que seja o motivo pelo qual ela sofre. Todas as partes envolvidas sofrerão a longo prazo, principalmente em um sociedade como a brasileira, em que o sistema de adoção é lento e complicado e o apoio a crianças em situação de rua é insuficiente. Sem contar as situações em que as mulheres são obrigadas a abortar e correm risco de vida por se tratar de um procedimento clandestino.  Um procedimento que não trata da morte de um bebê, mas da interrupção da gravidez de um feto  cujo  sistema nervoso central sequer está formado.

Foto:: Fernando Frazão – Agência Brasil