Nesta semana vamos falar do famigerado PL 2630/2020. O PL das Fake News, ou PL… não, esse último apelido, não. E ainda a operação da PF contra Bolsonaro em função de fraude no cartão de vacinação.
O PL 2630/2020 institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O projeto é de autoria do senador Alessandro Vieira (PSDB) e tem o deputado Orlando Silva (PCdoB) como relator. A votação do polêmico PL das Fake News estava marcada para essa terça, 02, mas foi adiada depois de forte pressão das big techs, entre outras coisas. O texto foi bastante alterado ao longo dos últimos tempos, também após discussões entre diversas entidades da sociedade. Ele torna crime a promoção ou financiamento de divulgação em massa de mensagens com conteúdo mentiroso por meio das chamadas contas-robôs.
Além disso, estabelece que provedores tenham representação por pessoa jurídica no Brasil; sejam responsabilizados por conteúdos cuja distribuição tenha sido impulsionada por meio de pagamento; que as plataformas digitais mantenham regras transparentes de moderação; exige a retirada imediata de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes; determina que conteúdos jornalísticos deverão ser remunerados; além da extensão da imunidade parlamentar às redes sociais.
A proposta começou a tramitar no Congresso em 2020 e chegou a ser aprovada pelo Senado no mesmo ano. Mas parou na Câmara. Desde então, o relator tem trabalhado na construção de um texto que seja palatável para a maioria das bancadas. Até pouco tempo atrás, acreditava-se que havia maioria para aprovação da proposta, mas o clima não foi favorável e a votação foi adiada.
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Os dias que antecederam a data marcada para a votação foram marcados por um forte embate, especialmente depois que as big techs entraram na jogada
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Google e outras grandes empresas de tecnologia se empenharam em um lobby intenso contra o projeto. Ao mesmo tempo que grandes veículos de comunicação também se empenharam em defender a proposta. Além, é claro, da disputa de narrativas justamente nas redes sociais. Na arena de apoiadores de Lula versus Bolsonaristas, temos os governistas defendendo o projeto de lei e os apoiadores de Bolsonaro tentando derrubar a proposta. Quem diria, google e igrejas evangélicas do mesmo lado.
Pra não dar palpite furado, nós convidamos o professor Marcelo Träsel pra participar do episódio de hoje. Träsel é professor do departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Mas não para por aí, porque estamos gravando em um grande dia. Na quarta-feira, 03, a Polícia Federal (PF) realizou uma operação na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro. Os agentes ainda prenderam o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid Barbosa, e outros cinco suspeitos. Suspeita é que grupo tenha agido para fraudar cartões de vacinação de Bolsonaro, familiares e assessores.
A apresentação é de Geórgia Santos. Marcelo Nepomuceno participa do debate e Flávia Cunha traz a Palavra da Salvação. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Moro, um dos pré-candidatos à presidência da enfraquecida terceira via, teve seu nome envolvido em uma fake news literária nesta semana. Na última segunda-feira, Dia Nacional do Livro Infantil, o ex-juiz postou em suas redes sociais a obra que encantou sua infância.
A citação ao livro Dendeleão foi o que bastou para acusarem Sérgio Moro de mentiroso contumaz. Afinal, de acordo com os “especialistas” da Internet, a obra, escrita pelo norte-americano Don Freeman, teria sido publicada no Brasil, em língua portuguesa, pela editora Ediouro, apenas em 1995, quando ele já teria mais de 20 anos de idade.
Mas qual foi a fonte para essa informação replicada à exaustão no Twitter?
Conforme as pesquisas que fiz nas redes sociais e no oráculo Google, a referência principal para esta data da década de 1990 foi o site Estante Virtual, de venda de livros usados. Portanto, não era uma fonte acadêmica ou editorial confiável sobre o lançamento da obra.
Reunião de pauta
No início da noite desta terça-feira (dia 19), acionei meus colegas do Vós, antes da gravação do podcast Bendita Sois Vós. Parecia um assunto interessante de ser mencionado no episódio desta semana, já que sempre fazemos referência à política, mas levando em conta aspectos mais aprofundados das notícias. Até o momento da gravação, na noite do dia 19, tínhamos suspeitas que o livro teria sido lançado na década de 1970, porém não tínhamos uma confirmação oficial. Alguns indícios nos levavam a esse caminho, após pesquisas realizadas em grupo. A Geórgia Santos descobriu, por exemplo, que na época a Ediouro se chamava Edições de Ouro e a tradutora de Dendeleão, a escritora Stella Leonardos, havia lançado livros infantis por esta editora. Posteriormente, a Edições de Ouro uniu-se à empresa Tecnoprint, criando a Ediouro, ainda em atuação. Sendo assim, seria possível que a indicação de edições do livro fosse modificada, a partir desta mudança.
Além disso, outros sites confiáveis, como da Academia Carioca de Letras, apontavam que o trabalho mais frequente de Stella como tradutora foi entre os anos 1960 e 1970. Portanto, as edições da obra em questão poderiam ter simplesmente utilizado a mesma tradução, prática comum no mercado editorial. Diante de tais dúvidas, após um período de debates internos, optamos por não incluir o assunto no podcast. Afinal, se a nossa crítica era justamente a reprodução de uma informação incorreta, precisávamos ter responsabilidade.
Assim, fiquei com a missão de, no dia seguinte, acionar a assessoria de imprensa da Ediouro e aguardar esta resposta que seria destinada ao conteúdo desta coluna. Sem ter a ânsia pelo “furo” jornalístico, já que até aquele momento nenhum veículo de comunicação havia falado sobre a possibilidade de fake news envolvendo o assunto.
Fake news confirmada
Na manhã desta quarta-feira, o site Boatos.org divulgou que era falsa a informação de que Sérgio Moro teria citado um livro lançado em 1995 como se tivesse marcado a sua infância. No entanto, o site não tinha informações da parte da editora, que foi a confirmação que o Vós optou por fazer.
A confirmação da Ediouro
Segue a resposta da assessoria de imprensa da Editora Ediouro, enviada especialmente para a coluna Voos Literários:
“A Ediouro contratou a obra Dendeleão, assim como a sua tradução, na década de 1970, o que nos leva a crer que a primeira edição da obra foi lançada nessa época. Em 1995, contratamos ilustrações para uma nova edição e a obra voltou a circular nesse momento. Não encontramos registros de data da primeira edição em nossos sistemas, pois trata-se de informação bem antiga.
Aproveito para deixar registrado que o autor do livro é o Don Freedman. A Stella Leonardos é a tradutora.”
Mais debates e análises conjuntas
Ao receber a resposta da Ediouro, entrei em contato, mais uma vez, com meus colegas do Vós. Ao comentar que a declaração da editora não havia sido categórica, o Igor Natusch conseguiu uma informação interessante, que ajudou na confirmação mais exata de que o assunto que circulava nas redes sociais era uma fake news. Em um arquivo da Procempa (Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre), havia referências à listagem de obras literárias de uma biblioteca local. Neste documento, a obra Dendeleão estava na quinta edição em 1995, o que já comprova que o livro não havia sido lançado naquele ano.
Anúncio de 1973
Por fim, mas não menos importante como fonte de confirmação, está o tweet do usuário Jobson Camargo.
Ele resgatou um anúncio da Ediouro, publicado no jornal Folha de São Paulo, em dezembro de 1973 (imagem ao lado.)
A publicidade da editora incluiu Dendeleão como uma das obras sugeridas para a leitura de férias e Natal de crianças, há quase 49 anos.
No detalhe da imagem original, editada pelo Igor Natusch, é possível ver o nome da obra em questão, dentre outras lançadas pelo Pingos de Ouro, um selo editorial já extinto, da Ediouro.
Moro disse a verdade (ao menos dessa vez)
Sendo assim, percebemos que é perfeitamente possível que essa leitura tenha marcado a infância de Sérgio Moro, nascido em 1972. Por isso, fiz questão de citar todo o percurso sobre checagem de notícias. Pois assim, procurei salientar como pode ser irresponsável e perigoso o atropelo das redes sociais em citar como mentiroso um pré-candidato à presidência da República.
Fake news “do bem”?
Claro que seria delicioso apontar uma inverdade tão descarada em uma figura que já demonstrou não ter afinidade com a Literatura, como no episódio da entrevista com Pedro Bial, em abril de 2019.
Porém, precisamos ter o cuidado de confirmar as informações antes de sair espalhando-as por aí. Sempre é bom lembrar: não existe fake news “do bem”. Pois quando atinge o nosso lado da trincheira, nós bradamos contra as tias do zap-zap. Então, não podemos cometer os mesmos erros.
E para quem acha que envolver um livro infantil em uma notícia falsa é algo superficial ou bobo, não nos esqueçamos da menção à obra para crianças Aparelho Sexual e Cia como parte do fantasioso kit gay. Ao não ser questionado, em rede nacional, porque estava inventando que um livro infantil era pornográfico, o então candidato Jair Bolsonaro abriu um precedente perigoso.
* Após a publicação deste texto, recebi a informação de que a primeira edição do livro em questão foi registrada junto à Biblioteca Nacional, em 1973, pela editora Tecnoprint. A confirmação foi feita através do depósito legal (envio obrigatório de exemplar de livros publicados no Brasil) e consta no catálogo da Biblioteca Nacional.
BSV Especial Coronavírus #73 Terceira via entre protestos e jantares
Geórgia Santos
15 de setembro de 2021
Nesta semana, a terceira via entre protestos e jantares. Porque além do encontro de homens empoeirados, vamos falar dos protestos contra Jair Bolsonaro no último dia 12.
Afinal, a política brasileira parece estar girando em torno da terceira via, que agora ganha um reforço mofado com a entrada de Michel Temer. Em vídeo divulgado nesta semana, André Marinho, filho do empresário Paulo Marinho – aquele que apoiou Bolsonaro em 2018 e prestou depoimento sobre o trio “Rachadinha, Flávio e Queiroz” – aparece imitando e ridicularizando o presidente da República em um jantar na casa do especulador Naji Nahas. A imitação de Marinho provocou gargalhadas nos convidados, entre eles, Michel Temer, o novo fetiche da terceira via; o presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, o presidente do Grupo Bandeirantes, Johnny Saad; e o jornalista Roberto Dávila, da Globo News.
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Por isso é importante apoiar o jornalismo independente, porque ele é independente. Porque nós somos independentes
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Aliás, girando em torno, não, andando em círculos, porque dizem que todo mundo quer uma terceira via, mas ninguém conhece esse todo mundo. Tanto que, no último domingo, 12, os protestos que pediam uma terceira via foram um fracasso de público.
Mas pera aí, os protestos não eram contra o presidente? Em teoria, sim, mas as faixas e os pixulecos eram bem objetivos: nem Bolsonaro, nem Lula. Logo, eram manifestações pela terceira via. Tanto que vimos Dória, Ciro, Leite e Mandetta desfilando e discursando. Há quem culpe o PT pelo fracasso. Mas bora desapegar da síndrome de Power Ranger, ninguém é criança aqui. Esperar que o PT apoie uma manifestação que infla boneco do Lula vestido de presidiário é um pouco demais.
E só pra gente não ficar um episódio inteiro sem falar das barbaridades de Jair Bolsonaro, ele agora resolveu fazer carinho nas Fake News e dizer que fazem parte da vida. Disso nós já sabíamos, não é mesmo? Ainda mais depois do fiasco com os caminhoneiros na semana passada, que não acreditaram no áudio de Bolsonaro e comemoraram um falso estado de sítio. Pane no sistema, como diria Pitty.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
BSV Especial Coronavírus #16 Fake News em tempos de pandemia
Geórgia Santos
9 de julho de 2020
Desde março, os jornalistas do BSV discutem os diversos aspectos da pandemia e da política brasileira. Hoje, eles falam sobre as Fake News, que não só bagunçaram e bagunçam a política como já são um problema para quem quer se informar a respeito do coronavírus.
Uma pesquisa realizada pela Avaaz, uma comunidade de mobilização online que leva a voz da sociedade civil para os espaços de tomada de decisão em todo o mundo, indica que as Fake News sobre a pandemia atingem 110 milhões de pessoas no Brasil.E o estudo mostra que sete em cada 10 brasileiros acreditam em pelo menos uma notícia falsa sobre o coronavírus.
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E qual a resposta institucional? Aprovar, às escuras e às pressas, o PL das Fake News
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Parece bom, um projeto de lei que visa combater a desinformação, mas o buraco é mais embaixo. Apesar de ter sido submetido a mudanças, o texto aprovador pelo Senado no dia 30 de junho implica em sérios riscos à privacidade, à liberdade de expressão, abre caminho para a autocensura e para a perseguição a jornalistas.
O convidado desta semana é o jornalista Marcelo Trasel, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), uma das entidades que mais criticou o fato de o projeto ter sido aprovado sem discussão com a sociedade civil e com sérios problemas. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Mais de 7 mil pessoas morreram e o presidente fez o que Paulo Cintura – sim, aquele mesmo da Escolhinha do Professor Raimundo – chamou de FESTA MARAVILHOSA. Mais de 7 mil pessoas morreram e, no Twitter, o governo federal celebra os números do combate ao coronavírus no Brasil. Segundo o texto postado pelo perfil da secretaria de comunicação do Palácio do Planalto, os números seguem amplamente positivos.
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E nesse caldeirão de negação e irresponsabilidade que poderia ser classificado como criminoso, há milhares de brasileiros que escutam o presidente, defendem o presidente
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Há milhares de brasileiros que lutam por um projeto econômico que ninguém entende; que minimizam a doença; que fazem pouco caso das mortes; que protestam contra profissionais da saúde, contra quem defende o isolamento social amplamente apoiado pela ciência.
É dessas pessoas que vamos falar hoje. Na verdade, a ideia é tentar entender se há maneira de falar com essas pessoas, que acreditam que o coronavírus é uma gripezinha, e qual retórica usar para combater o bolsonarismo. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol.Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Nesta semana, Lula Livre. Vamos falar da decisão do Supremo Tribunal Federal que, por 6 votos a 5, decidiu contra a prisão após condenação em segunda instância e impactou diretamente o caso do ex-presidente Lula, que foi solto no dia seguinte à votação do STF.
Apesar de a decisão apenas ratificar o que sempre esteve na Constituição, não agradou ao ex-juiz Sérgio Moro, antes algoz de Lula, hoje ministro da Justiça. O desfecho tampouco foi uma notícia para o presidente Jair Bolsonaro, que admitiu que, sem a ajuda de Moro, o cenário político poderia ser outro.
O Supremo passou um ano discutindo uma cláusula pétrea da Constituição, mas o mais impressionante é que foi uma votação apertada; amplamente contestada por alguns setores da sociedade e seguida por inúmeras informações falsas. E é disso que a gente vai falar no programa de hoje, do STF enquanto espaço político. Participam Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch.
OUÇA Bendita Sois Vós #27 A normalização do absurdo
Geórgia Santos
2 de agosto de 2019
No episódio cinco da segunda temporada do Bendita Sois Vós, os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch discutem a normalização do absurdo. O debate acontece a partir das declarações mentirosas e preconceituosas do presidente Jair Bolsonaro que, entre outras coisas, mentiu que a jornalista Miriam Leitão era guerrilheira; disse que a Ancine precisa de filtro; chamou os governadores nordestinos de “paraíbas”, de forma pejorativa; afirmou que ninguém passa fome no Brasil; e ainda relativizou o trabalho infantil.
No Sobre Nós, com direção de Raquel Grabauska, as palavras da escritora Carolina de Jesus sobre a fome em reprodução de um episódio da temporada passada.
Ninguém é obrigado a responder mamadeira de piroca
Igor Natusch
1 de agosto de 2019
A frase do título foi publicada no Twitter pelo editor-executivo do The Intercept Brasil, Leandro Demori. Deveria ser alçada ao status de mantra, ser adotada sempre que nos fosse exigido um posicionamento sobre alegações absurdas e ridiculamente mentirosas. É tudo muito simples, na verdade: tudo que é falso e mentiroso ganha uma estranha espécie de legitimação quando recebe a dignidade de uma resposta. Não alimente os trolls. Não responda mamadeira de piroca.
Infelizmente, as coisas não estão funcionando assim. E é profundamente preocupante quando a legitimação, mesmo indireta, vem dos próprios veículos e espaços criados para combater a falsidade, para deslegitimar a mentira sem-vergonha com a exposição implacável da verdade e dos fatos. Vejamos, por exemplo, essa manifestação do Lupa, especializado em fact-checking:
Com todo o respeito aos profissionais que trabalham no veículo, mas essa manifestação é um absurdo
Mais: é um absurdo perigoso
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Sites como Boatos.org e Snopes prestam um excelente serviço, basicamente porque partem de uma ótima premissa: ser uma database de desmentidos. O valor que oferecem, embora dialogue de forma óbvia com o noticiário, pouco tem a ver com instantaneidade: é ser uma fonte confiável a ser consultada sempre que o usuário da internet tiver dúvida sobre a veracidade de alguma alegação. Você tem dúvidas, e vai até eles fazer uma consulta. É eficiente, e com alto potencial de convencimento.
Veículos de fact-checking como Lupa são diferentes. Sua proposta é enfrentar fake news de forma dedicada e jornalística. O que é igualmente importante nesses tempos difíceis que vivemos, embora com uma metodologia diversa. Há uma informação que finge ser jornalística, e ela é desmontada a partir do próprio método jornalístico.
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Mas checar fatos é muito diferente de checar o que o outro lado tem a dizer
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Glenn Greenwald e David Miranda não têm que dizer absolutamente nada sobre a mentira cretina da qual foram vítimas. Por vários motivos, mas acima de tudo porque é uma mentira cretina, disseminada de forma cretina via redes sociais. Não é como se estivéssemos diante de uma denúncia séria, feita por uma instituição confiável ou a partir de uma metodologia adequada: é uma safadeza absoluta, feita para agredir desafetos políticos e ganhar alguns cliques e likes no processo.
De qualquer forma, o hospital onde supostamente a internação ocorreu já havia negado tudo. O próprio David Miranda havia publicado, no momento em que se disseminava a mentira, um vídeo ao lado do marido, sorridente e tranquilo no quarto do casal. Ainda assim, e mesmo com o histórico nada recomendável do pseudo-veículo que publicou a sujeira, os profissionais da Lupa, que “duvidam por essência”, não se sentiam seguros para cravar um “falso”.
Se a Lupa acha que Glenn Greenwald e David Miranda não “negaram de forma clara a alegação”, é porque o veículo começa a assumir, enquanto procedimento, que a fake news é uma indagação “respondível” e não uma mentira a ser desmascarada. Isso inverte a própria lógica que se espera do fact-checking, de uma forma degradante e que coloca sua própria função de existir em risco.
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Se não tinham convicção de que era falso, o problema não é de Glenn ou do Intercept Brasil: é do seu próprio método e, mais ainda, da sua concepção sobre o próprio trabalho
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É crescente o risco de criar-se uma espécie de simbiose com as fake news. As agências de fact-checking não apenas não saem da postura reativa, nunca conseguindo antecipar os movimentos da indústria de desinformação (o que é difícil mesmo, sem dúvida) como parecem estar retirando o seu próprio valor, por assim dizer, da existência das fake news. Não estão apenas desmentindo, mas sendo pautados por elas. E, na medida em que se permitem ficar em tal posição, vão reforçando o mecanismo que dá a essa indústria seu poder de persuasão.
Pois, em um cenário desses, não são mais apenas os veículos de checagem que precisam se antagonizar à mentira; a realidade também precisa dizer que é a verdade, e não uma versão calhorda dela, que define sua existência. E quem aqui não sabe que, se Glenn Greenwald diz que é mentira, isso será visto, pelos que os detestam, justamente como prova de que tudo é exatamente como as fake news estão dizendo?
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Há um limite, e ele precisa ser delimitado. Ninguém deve ser convocado a responder sobre mamadeira de piroca
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O fact-checking não é, e não pode virar, uma mera tabelinha com as fake news. Não há dois lados no combate a pseudo-notícias mentirosas. Checagem é o espírito do jornalismo, mas como forma de buscar os fatos, não de dar uma satisfação aos que vivem de disseminar a mentira.
OUÇA Bendita Sois Vós #5 Como lidar com as Fake News?
Geórgia Santos
21 de outubro de 2018
No quinto episódio do podcast Bendita Sois Vós, Geórgia Santos conversa com os jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol sobre o problema das Fake News.
Evelin Argenta entrevista Luiz Fernando Martin Castro, membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil e do Conselho Consultivo do TSE para acompanhar o processo eleitoral.
Confira também uma entrevista com o sociólogo Rogério Barbosa, do projeto Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.
No quadro Sobre Nós, Raquel Grabauska traz Instruções para Esquivar o Mau Tempo, de Paco Urondo.
*Artigo publicado originalmente no site Coletiva.net
Eu estava apenas curtindo a água fria da piscina em um dia de verão na Califórnia. Na época, vivia nos Estados Unidos para aperfeiçoar a minha pesquisa de doutorado e resolvi nadar para descansar um pouco, oxigenar as ideias. Era um centro de lazer comunitário, ou seja, eu não estava sozinha. Havia também um senhor idoso, pesado, nadando com dificuldade ao som de música clássica.
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Eu estava apenas curtindo a água. Até que ele resolveu interagir
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Entre perguntar o meu nome e discorrer sobre o Brasil, era inevitável que indagasse sobre qual era minha profissão. Respondi que era jornalista com o orgulho do ofício que me é peculiar e ele fez uma cara horrível. “Não sabia que vocês ainda existiam”, disse em tom de deboche.
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Desabei. Eu queria apenas curtir a água
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Na primeira menção às famigeradas “fake news”, tive a impressão de ver um holograma de Trump sobrevoando a cabeça calva do homem cujo nome eu, estranhamente, esqueci. “TODAS as notícias são falsas, todas”, disse ele, que ocupou os minutos seguintes com um discurso sobre como a mídia é manipuladora, como há jornalistas desonestos, como a qualidade do jornalismo caiu.
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Eu digeri tudo em silêncio parcial, falando eventualmente para tentar salvar a pouca dignidade que ele concedia a mim e aos meus colegas. Em vão. Ele não estava interessado.
E eu queria apenas curtir a água
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Eu fui embora, mas as palavras inflamadas ficaram comigo. Eu não conseguia deixar de pensar na porção de razão que aquele homem tinha. Teorias da conspiração à parte, já não posso negar que o jornalismo tem falhado. E a sociedade sabe disso. Somos cobaias em um momento extraordinário da história, um período definido por intensa polarização política e social e pelo impacto sem precedentes de novas tecnologias. O debate na esfera pública mudou dramaticamente nos últimos anos e as empresas de jornalismo tentam, ao máximo, se adaptar a isso. Mas será suficiente? Basta tentar? Basta a adaptação? Acredito que não. As circunstancias em que apuramos, produzimos e reportamos uma informação mudaram o suficiente para forçar a revisão do que estamos fazendo e por que.
O modelo comercial adotado pelas grandes empresas está em decadência. É cada vez menos eficaz o formato em que se vendem anúncios estáticos para financiar o trabalho jornalístico. O novo padrão, que surge com os anúncios no Facebook, Twitter e Instagram, também está entrando em colapso. Ao contrário da cada vez mais procurada permuta com o digital influencer. Como resultado, a produção digital está cada vez mais vazia. A caça aos cliques completa a crise, com a necessidade de um fluxo de publicação frenético. A demanda por muita informação gerou, ironicamente, o esvaziamento das noticias.
. O jornalismo foi substituído por “conteúdo”
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Os leitores estão sobrecarregados pela quantidade de informação despejada todos os dias por diversos canais, portais e redes sociais; estão incomodados com posts patrocinados enfiados goela abaixo; estão confusos com o que é verdade e o que é mentira. Por isso, mais do que nunca, é fundamental redefinir a missão e viabilidade do jornalismo, qual o propósito do trabalho e que papel exercemos em uma sociedade que não considera nosso ofício importante. Precisamos reaproximar o público, recuperar a confiança das pessoas. Precisamos contar histórias com cuidado, precisamos dedicar tempo à apuração.
Precisamos checar os fatos, precisamos de compromisso com a informação, precisamos reforçar o comprometimento com a realidade.
Há um ano, meu sócio, Emerson Zapata, e eu criamos o Vós, justamente para tentar restabelecer esse diálogo. O caminho ainda é muito longo, mas estamos satisfeitos com o primeiro passo e prontos para ampliar essa conversa. É tempo de o jornalismo se posicionar, e nós temos lado. Não é um posicionamento a priori, mas uma atitude progressista construída em consonância com a realidade social da qual fazemos parte. Assim, optamos pela transparência, conceito que se tornou turvo pela suposta neutralidade oferecida por grandes conglomerados.
Em tempos em que as notícias falsas invadem as telas, jornalismo é resistência por essência, e o Vós quer fazer parte da reconstrução do propósito do jornalismo na sociedade. Não quero mais só curtir a água.