Não foi nem uma, nem duas vezes que eu perguntei a mim e a outros qual seria o limite de Jair Bolsonaro. Quão longe ele iria nas mentiras e ofensas? Mas também sempre fiquei intrigada com o que ele precisaria dizer para que não fosse defendido? O que ele precisaria dizer para que fosse chamado pelo que ele realmente é: preconceituoso, autoritário, despreparado e cruel.
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Antes da campanha eleitoral e durante as eleições, foram muitas as oportunidades. Agora, enquanto presidente da República, absurdos são normalizados todos os dias
Na última semana, porém, Bolsonaro parece ter ido longe demais. Ele atacou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, dizendo que se ele quiser saber de que forma o pai dele desapareceu no período militar, ele contaria.
“Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro durante coletiva de imprensa.
Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira era integrante do grupo Ação Popular (AP) e foi preso pelo governo em 1974 e nunca mais foi visto. No livro “Memórias de uma guerra suja”, lançado em 2012, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra diz que o corpo de Fernando foi incinerado no forno de uma usina de açúcar na cidade de Campos, no Rio de Janeiro. Além da versão do ex-delegado, o atestado de óbito de Fernando, incluído no sistema da Comissão de Mortos e desaparecidos, diz que ele foi morto pelo Estado brasileiro.
Bolsonaro, porém, depois da polêmica, disse que o pai do presidente da OAB foi morto pelos companheiros, a quem ele classificou como terrorista. O presidente foi além e ainda questionou a legitimidade da Comissão da Verdade, que apurou os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Militar.
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Bem, o limite de Bolsonaro ainda é desconhecido. Mas esse incidente com o presidente da OAB mostrou que talvez esse seja o limite para muitos dos apoiadores. A reação mais surpreendente foi a do governador de São Paulo, João Dória (PSDB)
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É inaceitável que um presidente da República se manifeste dessa forma como se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz do presidente Jair Bolsonaro — disse. Na sequência, Doria ainda negou ter alinhamento político com o governo de Bolsonaro.
Bom, a fotografia mostra a mentira do alinhamento. E obviamente, o distanciamento de Dória tem na mira a próxima eleição presidencial. Mas ele não foi o único. As manifestações de repúdio ocorreram em profusão, inclusive de figuras notadamente vinculadas à direita, como Rodrigo Constantino, e outros apoiadores. Talvez esse seja o limite de alguns apoiadores, diminuir a dor de alguém que perdeu o pai pelas mãos do Estado. Veremos.
De todo modo, me surpreende que as pessoas tenham ficado surpresas com o quão longe ele foi. Afinal, ele não elogiou Ustra, a quem ele chamou de “o terror de Dilma Rousseff”? Não disse que o erro do regime foi torturar e não matar? Não “brincou” que queria “fuzilar a petralhada”? Bolsonaro sempre foi isso. Autoritário, preconceituoso, cruel, torpe.
OUÇA Bendita Sois Vós #27 A normalização do absurdo
Geórgia Santos
2 de agosto de 2019
No episódio cinco da segunda temporada do Bendita Sois Vós, os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Igor Natusch discutem a normalização do absurdo. O debate acontece a partir das declarações mentirosas e preconceituosas do presidente Jair Bolsonaro que, entre outras coisas, mentiu que a jornalista Miriam Leitão era guerrilheira; disse que a Ancine precisa de filtro; chamou os governadores nordestinos de “paraíbas”, de forma pejorativa; afirmou que ninguém passa fome no Brasil; e ainda relativizou o trabalho infantil.
No Sobre Nós, com direção de Raquel Grabauska, as palavras da escritora Carolina de Jesus sobre a fome em reprodução de um episódio da temporada passada.
Há 55 anos, o Brasil ingressava em um período cruel de sua história, com os militares tomando o poder à força, com tanques nas ruas e apoio de parte da classe média e alta e da grande mídia. A partir de 1º de abril de 1964, iniciou-se um período de exceção no Brasil, com a cassação de direitos políticos de opositores; restrição de liberdades individuais; censura às artes e aos meios de comunicação; e uma série de outras medidas autoritárias, inclusive prisões extrajudiciais, o fim do habeas corpus, tortura, assassinatos e desaparecimentos . A tortura de militantes de esquerda durante a Ditadura é fato histórico. Afinal, os métodos utilizados pelos militares para silenciar quem se opusesse ao regime estão fartamente documentados e estudados pelo meio acadêmico.
Porém, nesses tempos de pós-verdade e fake news, temos parte da sociedade tentando encobrir e reinventar o passado
Querem até tornar o dia do golpe militar em uma data festiva, como se houvesse realmente algo a ser comemorado. Nesse cenário, o Vós e a coluna Voos Literários aderem à campanha #ditaduranuncamais. Em momentos como esse, mais do que nunca, é preciso honrar a História e a memória para evitar que atrocidades como a Ditadura Militar voltem a acontecer. Por isso, além das manifestações nas ruas, foram compartilhadas nas redes sociais livros e filmes com relatos sobre os 21 anos sem civis no poder no país, entre 1964 e 1985.
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Um homem torturado, um homem morto
Destaco aqui o livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar. A investigação feita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles conta a trajetória de Frei Tito, um religioso quepreferiu combater a ditadura com a força das ideias e da justiça social. “Na Universidade de São Paulo, onde participava ativamente do movimento estudantil, Tito chegou a ter momentos de dúvida e de incerteza sobre a possibilidade de conciliar Marx e Cristo. Assim como Tito, outros frades foram encarcerados porque eram considerados ‘terroristas’ por terem feito a ‘opção preferencial pelos pobres’ pregada pelo Concílio Vaticano II. Eram ‘subversivos’ por praticarem um Evangelho que tenta transformar o mundo. Eram ‘perigosos’ porque pregavam a liberdade e a igualdade. O ‘ópio do povo’ estava do outro lado, do lado da Igreja conservadora que não entendia aquele combate.”
Frei Tito foi preso, junto com outros religiosos, dentro do convento em que achava que sempre teria segurança. Os militares queriam Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), e usaram os frades para isso. Ele foi levado algemado para a prisão, na madrugada de 4 novembro de 1969:
Eram três horas da manhã. O provincial trocou de roupa diante de um policial armado, com a metralhadora apontada. Ao descer as escadas, viu frei Tito descendo já algemado, ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este cercara o prédio de madrugada, dando início à “Operação Batina Branca”, que consistia na invasão do Convento das Perdizes e na prisão dos dominicanos. No claustro, o policial fez o provincial aguardar por alguns minutos, encostado na parede, de mãos para trás. Fleury deu ordem aos policiais para colocarem frei Tito no camburão dos presos. Frei Domingos foi no carro do delegado, juntamente com frei Edson. Receberam ordem de sentar-se no banco traseiro da viatura, entre dois policiais armados de metralhadoras. Fleury foi no banco da frente, ao lado do motorista. Além de Tito, foram levados o dominicano italiano Giorgio Callegari e frei Sérgio Lobo.
Ao prender Tito, Fleury lhe disse: — Com gente da tua estirpe não temos piedade nenhuma. Somos pagos para isso. Sabemos que você tem muito para contar. Se não quiser falar, será pior. Te torturaremos. No Deops, o delegado havia enfileirado todos os presos num corredor. Frei Domingos só reconheceu frei Ivo Lesbaupin pela camisa. O rosto estava totalmente deformado pela tortura.
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Batismo de Sangue
A história também está contada no livro de memórias Frei Betto, um dos frades da Ordem dos Dominicanos presos na mesma operação. Batismo de Sangue – que também virou filme, dirigido por Helvécio Ratton (2006) – é um dos relatos mais importantes e tocantes sobre os horrores da ditadura e conta a história dos Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo. Todos foram terrivelmente torturados, mas o caso do Frei Tito é o mais emblemático e revoltante:
Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. […] Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia obre o cimento frio e sujo. […] Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria agüentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.
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Frei Tito nunca se recuperou
Frei Tito não morreu naquele momento, mas também não sobreviveu. Além das marcas deixadas pela tortura física, as feridas emocionais sofridas nunca foram curadas. Cinco anos depois, já exilado na França, ele foi encontrado morto. A causa apontada foi suicídio. Sobre seu destino, escreveu o psquiatra Jean-Claude Rolland, em trecho do livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar:
Tito de Alencar foi submetido a torturas de tal forma cruéis, não somente do ponto de vista físico, mas também no nível psíquico, foi tão humilhado, que algo nele estava efetivamente morto. Na aparência, ele estava vivo, mas de fato era apenas um sobrevivente. Não há dúvida de que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas”
Por esse e muitos outros motivos: Ditadura Nunca Mais! Tortura Nunca Mais!
Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram.
O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos.
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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico
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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia. Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.
Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura.
O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas.
OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.
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2. “A educação era melhor”
Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).
Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.
Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.
É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.
O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.
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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”
João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.
O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.
Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango.
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6. “A população queria a ditadura”
Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava.
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7. “O Brasil cresceu”
É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre.
Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.
Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.
Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.
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8. “Só morreram vagabundos”
Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenasdurante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.
Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.
OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.
Recomendaram-me perguntar ao meu avô sobre o período que se iniciou em 1964. Não foi diretamente. Eu li em um daqueles cards mequetrefes que se proliferam em redes sociais como larvas do mosquito da dengue em água parada. Em um deles, de tom esverdeado e bem sem graça, lia-se o seguinte:
“Não acredite no seu avô gente boa, honesto e trabalhador de 80 anos, que viu tudo acontecer antes, durante e depois de 64, e até hoje diz que foi ótimo!Acredite no seu professor maconheiro de história, de 35 anos formado na USP, que mora com a mãe e diz que foi horrível demais!”
Depois da provocação colegial, foi a vez de um dos filhos do excelentíssimo senhor presidente da República desafiar os cidadãos brasileiros. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) não apenas celebrou o 31 de março de 1964, data do golpe, como agradeceu aos militares.
“Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”
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Eu perguntei
Essa bobagem de mandar perguntar para o avô é apenas uma nova versão de negação da História, de negação da ciência. Ignora-se a factualidade, as evidências, os registros. Tudo vira subjetivo e, de repente, relega-se o fato à opinião. Mesmo assim, eu perguntei.
Meu avô, o seu Orozimbo, é um homem de 85 anos e muito simples, apesar de bastante vaidoso. A vida aconteceu e a educação formal foi pouca. O que não o impede de ser muito inteligente e, principalmente, consciente. O vô é um cara curioso, ele não gosta de não saber das coisas. Então ele pergunta, pergunta muito. Sobre a internet; sobre política; sobre novas formas de fazer jornalismo, para entender meu ofício; sobre minha tese de doutorado; sobre outros países; novas experiências. Mas ele também tem muito a contar.
Nunca viajou de avião, mas conta com orgulho de quando andou de helicóptero na época em que serviu ao Exército Brasileiro, no início dos anos 1950. Ele tem várias fotos daquele período em que ele parecia ser mais alto e, definitivamente, mais magro. Dos tempos em que era caminhoneiro e motorista de ônibus, sobram contos sobre todos os cantos desse país. Ele conhece o Brasil muito melhor do que qualquer outra pessoa da família que tenha milhas e milhas acumuladas em companhias aéreas. Com relação à política, nunca se encolheu, e a escolha pelo MDB desde muito cedo deixa isso bastante claro. Ainda assim, eu perguntei.
Mas não perguntei agora, sob o comando do projeto de capitãozinho. Havíamos conversado sobre isso há muitos anos e tocamos no assunto de novo no período da eleição. Eu disse a ele que o candidato que liderava as pesquisas dizia que a Ditadura tinha sido boa.
“E tem gente que acha bonito, vô. Tem gente dizendo que a Ditadura tinha que voltar.” [Ele fez uma careta estranha, meio que duvidando.]
“É verdade, pergunta pra mãe. Esse cara diz que a época da Ditadura era melhor e as pessoas acham que é verdade.” [Ele olhou pra minha mãe, que estava preparando a salada de batata com maionese para o churrasco de domingo. Ela assentiu e disse, “é verdade, pai.”]
“Olha, a minha vida era boa, eu não tinha nenhum problema, mas também não tenho agora se tu for olhar. Mas não era assim pra todo mundo. Pergunta pro [nome da pessoa] como era, das vezes em que ele apanhou ou que não deixavam ele fazer reunião. E isso que eu tô falando de cidade pequena. Imagina em cidade grande. Não se podia falar contra. Nada, nada, nada. Quem falava, pagava. Só que as pessoas fingem que era tudo normal. Elas esquecem que tem coisas que a gente não mistura. Exército é Exército, política é política. E lugar do Exército não é no governo. Tudo tem seu lugar. Eu não tinha problema, mas não é porque não aconteceu nada comigo que tava tudo certo. As coisas não são assim, é errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.”
Como eu disse, meu avô é um homem simples e isso se expressa na forma como ele falou daquele período. Mas nada poderia ser mais cristalino. Não se podia falar nada contra. Lugar do Exército não é no governo. É errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.
Na última segunda-feira (25), o general Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência da República, informou que Jair Bolsonaro havia determinado “comemorações devidas” no dia 31 de março, data em que se iniciou o golpe em 1964. Dois dias depois, mudou o tom e disse que a ideia era “rememorar”, não comemorar. Bolsonaro mudou o tom, mas as comemorações entusiasmadas dos filhos dão o tom da celebração. Além disso, vídeo apócrifo que nega o golpe de 64 foi distribuído em canal de comunicação do Planalto. A Secretaria de Imprensa diz que o governo não produziu o material e nem sabe quem o fez, mas distribuiu mesmo assim.
A iniciativa não tem precedentes na América Latina. Na Argentina, o dia 24 de março é feriado, mas dedicado a lembrar e celebrar as vítimas da Ditadura civil-militar (1976-1983). O Dia da Lembrança pela Verdade e a Justiça reúne, todos os anos, manifestações contra um dos regimes mais sangrentos do período. No Chile, o dia 11 de setembro marca o golpe do General Augusto Pinochet e o bombardeio do Palácio de La Moneda, que deu início à Ditadura (1973-1990) e culminou com a morte do então presidente, Salvador Allende. Não é feriado, mas as escolas tem jornada reduzida e há homenagens. Mas não à Pinochet. Há entrega de flores em homenagem a Allende. No Paraguai, ninguém ousa celebrar o início da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) no dia 4 de maio. Recentemente, o ditador paraguaio, conhecido pela crueldade e, inclusive, acusações de pedofilia, foi elogiado por Bolsonaro, que o chamou de “homem de visão, um estadista”. No Uruguai, o dia 27 de junho é reservado para a memória das vítimas da Ditadura (1973-1985) do país. No Brasil, vivemos presos a um delírio coletivo provocado por amnésia recente. Só pode. Porque segundo meu avô gente boa, honesto e de 80 anos, a ditadura não era boa.
Eram choques pelo corpo todo. Na vagina, no ânus, nos mamilos, nos ouvidos. E os meus filhos me viram dessa forma. Eu urinada, com fezes. Por fim, o meu filho chegou para mim e disse: “Mãe, por que você ficou azul e o pai ficou verde?”. O pai estava saindo do estado de coma e eu estava azul de tanto… Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no corpo.
Maria Amélia de Almeida Teles foi presa com o marido, em 1972, e teve os filhos raptados
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Memória. É disso que se trata, é isso que não se pode apagar. Memória. Precisamos nos apegar à memória para não repetir os mesmos erros, não normalizar a brutalidade, não institucionalizar a violência, a morte. Memória.
Em nome da memória, reeditamos o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que trouxe relatos de vítimas de tortura durante o período da Ditadura Militar no Brasil. O roteiro foi escrito com textos extraídos de depoimentos à Comissão da Verdade e é interpretado pelos atores Angelo Primon, Vinícius Petry, Vika Schabbach e Raquel Grabauska.
Em O Fim da História, Gilberto Gil disse que não acredita que o tempo venha comprovar ou negar que a História possa se acabar. Na poesia, tanto pode findar quanto pode ficar. “Basta ver que um povo derruba um czar e derruba de novo quem pôs no lugar.”
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Mas e se o tempo vier a comprovar que a História se pode negar?
Ao longo de duas décadas, entre 1964 e 1985, houve suspensão de direitos políticos; não havia eleições para presidente; o Congresso foi fechado; houve restrições à liberdade de imprensa e manifestação; perseguição à oposição; censura à classe artística; exílio forçado; e uma série de outras atrocidades. Os relatos de tortura colhidos pela Comissão da Verdade são assustadores. Choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, cadeira do dragão, estupros, tortura com animais fazem parte de um triste rol de performances desempenhadas pelos militares brasileiros por mais de 20 anos. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
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Pessoas foram torturadas. Pessoas desapareceram. Pessoas foram assassinadas
Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”
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O presidente eleito ignora os livros de História para eleger as memórias de um torturador como obra de cabeceira. A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (2006) foi escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI, um dos órgãos mais atuantes na repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Para historiadores, sociólogos e cientistas políticos, não se pode considerar que o livro ofereça precisão histórica. Dr. Tibiriçá, como era conhecido, foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o regime, em 2008. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
O problema em negar a História é que ela é cíclica. Quando se nega a história, ela volta a acontecer. Quando normalizamos autoritarismo e tortura, volta a História e reescreve o capítulo cujo título era pra ser “Nunca Mais”. “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, e assim por diante. Tanto faz.
Sobre Nós mistura jornalismo e arte para tratar de problemas reais do Brasil
Flávia Cunha
28 de setembro de 2018
O primeiro episódio trouxe relatos de vítimas de tortura durante a Ditadura Militar
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É quase frustrante pensar na quantidade de temas urgentes na vida dos brasileiros. Desemprego, racismo, machismo, homofobia, insegurança, baixa qualidade da educação, filas em emergências e até, mais recentemente, a ameaça do fantasma materializado da Ditadura Militar. Mas em um país desigual, os problemas não são os mesmos para todos. Enquanto a classe média foge de assaltos, há quem passe fome. Enquanto roubam seu carro, há quem não tenha farinha em casa.
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E assim, também de maneira desigual, vamos nos distanciando dos problemas que não parecem ser nossos, até que se tornem subjetivos, história, passado. Até que fiquem lá, longe
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É dessa distância que nasce o Sobre Nós, projeto de radioteatro que mistura jornalismo e arte com o objetivo de aproximar o indivíduo dos problemas que são de todos. A produção é uma parceria do Vós com o Grupo Cuidado Que Mancha e é coordenada pela jornalista Geórgia Santos e pela atriz, produtora e diretora Raquel Grabauska. A partir de depoimentos reais, de pessoas reais, atores interpretam verdades cruéis da nossa realidade. “A nossa ideia é chocar. Os brasileiros já passaram e passam por coisas horríveis, mas a gente se distancia dos outros e se recusa a enxergar a realidade alheia. Então o nosso objetivo é trazer essa realidade de forma desconfortável, pra que as pessoas fiquem mexidas e reflitam sobre a nossa sociedade”, explicou Geórgia.
O quadro é parte do podcast Bendita Sois Vós, veiculado todas as quintas-feiras pela Rádio Estação Web e disponível para download em outras plataformas. Mas o Sobre Nós também pode ser ouvido em separado, pelo Soundcloud ou Itunes (em breve estará em outros aplicativos).
O primeiro episódio, Tortura, traz relatos de vítimas de tortura durante o período da Ditadura Militar no Brasil. O roteiro foi escrito com textos extraídos de depoimentos à Comissão da Verdade e é interpretado por Angelo Primon, Vinícius Petry, Vika Schabbach e Raquel Grabauska.
O próximo episódio vai ao ar estará disponível na próxima sexta-feira, 28, e traz relatos do livro Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus. Em pauta, a fome.
No primeiro episódio do Bendita Sois Vós, jornalistas discutem “Que eleição é essa?” O programa é apresentado pela jornalista Geórgia Santos e conta com a participação de Evelin Argenta, Igor Natusch e Tércio Saccol em um debate sobre os aspectos atípicos das eleições, o fenômeno Bolsonaro e a ameaça autoritária.
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Essa eleição é, de fato, estranha. Até pouco tempo tinha candidato preso, candidato esfaqueado, candidato jejuando no monte. Por isso separamos algumas declarações de candidatos à presidencia da República, ou relacionados a eles, que exemplificam um pouco da anormalidade do pleito de 2018. Além disso, uma conversa com o cientista político Augusto de Oliveira, professor da PUCRS, sobre como e porquê surge o fenômeno Bolsonaro.
Falar de Bolsonaro implica discutir, ainda, viabilidade democrática. Afinal, o candidato ainda não afirmou que vai respeitar o resultado das eleições caso perca. Sem contar as declarações do vice do candidato do PSL, General Hamilton Mourão, que deixou clara a possibilidade de autogolpe em entrevista à GloboNews.
Como uma resposta também ao General Mourão, o Bendita Sois Vós traz uma verdade crua revelada por meio da arte. O quadro “SOBRE NÓS” é produzido por Raquel Grabauska, que é atriz, produtora, diretora e está à frente do grupo Cuidado Que Mancha. Toda a semana, um grupo de atores traz relatos reais sobre temas que nos tiram o sono. Na primeira edição, depoimentos de quem sofreu tortura durante a Ditadura Militar. O texto foi extraído dos relatórios da Comissão da Verdade e mostra a cara desse herói que mata.
* O Bendita Sois Vós, uma parceria do Vós com a Rádio Estação Web e vai ao ar todas quintas-feiras, das 19h às 20h. Clique aqui para saber como ouvir no seu celular e em aplicativos.