A essa altura vocês já sabem que a Reunião de Pauta é o espaço para os nossos devaneios mais diversos, aquele momento em que a gente conversa livremente, sem filtro e muito deboche. Nesta semana, a obsolescência não programada das reuniões online.
Fomos obrigados, por circunstâncias diversas, a gravar um episódio de forma remota e fomos tomados por um profundo ódio às novas tecnologias e videochamadas. E, ao que parece, há mais gente incomodada com as internets da vida. Além dos golpistas do oito de janeiro que acessaram a rede do Congresso usando o próprio nome e CPF e, assim, gerando provas contra si, há a investida da Polícia Federal contra Carla Zambelli e o Hacker de Araraquara.
A apresentação é de Geórgia Santos, com participação, reclamando das reuniões online, de Igor Natusch e Marcelo Nepomuceno. E tu, gosta de uma reunião online? Responde aí na caixinha.
Imagem: “A Última Ceia”, Leonardo Da Vinci (1452-1519)
Desde que Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, em primeiro de janeiro de 2023, muita coisa aconteceu. Já no dia da posse foi possível perceber a diferença do petista para o antecessor. Subindo a rampa, ao lado de Lula e do vice, Geraldo Alckmin, estavam representantes do povo brasileiro. Mais especificamente, de camadas mais agredidas pelas medidas de Jair Bolsonaro – ou falta delas. Também na posse, o prestígio do novo presidente era evidente pela fila das delegações estrangeiras, o que indicava, de fato, um novo tempo. Até o dólar caiu, apesar dos faniquitos do mercado.
Mas muita coisa aconteceu ao longo do mês. Primeiro, a história sendo feita com posses como as de Sonia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas e de Aniele Franco no Ministério da Igualdade Racial. Ou ainda mensagens fortes para setores negligenciados, como a posse da Marina Silva no Ministério Meio Ambiente ou de Nísia Trindade no Ministério da Saúde.
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Aconteceu tanta coisa ao longo do mês de janeiro que teve até tentativa de Golpe de Estado
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Depois disso tudo ainda houve intervenção federal em Brasília, golpistas e o ex-ministro Anderson Torres presos, e o bolsonarismo empenhado em dizer que os bolsonaristas golpistas não são bolsonaristas. Segundo eles, os apoiadores de Bolsonaro que passaram meses dizendo que fariam o que de fato fizeram não eram … apoiadores de Bolsonaro.
Muita coisa aconteceu em janeiro, e uma delas é que o rastro de destruição do governo anterior é cada vez mais evidente. Agora materializado na morte dos Yanonamis, que estão sendo dizimados por meio da fome causada pelo garimpo ilegal.
E, virando o mês, temos eleição para a presidência da Câmara e do Senado. A Câmara deve permanecer nas mãos de Artur Lira (PP-AL). Já o Senado é uma incógnita. Estão na disputa o atual presidente, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o bolsonarista Rogério Marinho (PL-RN). E tem também o glorioso senador Eduardo Girão (Podemos – CE), que só faz figuração. De todo modo, é o bolsonarismo se organizando – com sucesso – sem Bolsonaro, que continua nos Estados Unidos.
A apresentação é de Geórgia Santos. Participam Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Nesta semana, Sérgio Reis cantando onde não foi chamado, Bolsonaro despencando nas pesquisas e, principalmente, a volta do Talibã ao poder no Afeganistão. Uma situação que é MUITO diferente da do Brasil.
Por aqui, o cantor sertanejo Sérgio Reis está convocando uma manifestação com caminhoneiros e pessoas ligadas ao agronegócio para setembro. O protesto é uma mobilização A FAVOR de Jair Bolsonaro. Segundo o ex-deputado, o movimento pede a destituição dos ministros do Supremo Tribunal Federal e, é claro, o voto impresso. ‘Se em 30 dias não tirarem os caras nós vamos invadir, quebrar tudo’, disse.
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Ou seja, a tentativa de golpe da semana
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Mas Sérgio Reis, que podia ficar em casa cantando Menino da Porteira, não recebeu o apoio que imaginava. Inclusive, diz-se que ficou chateado com a repercussão negativa da investida, que não tem apoio nem dos caminhoneiros. Afinal, o combustível está caro.
Só Jair Bolsonaro gostou da mobilização do cantor, afinal, ele também não consegue ficar sem a ameaça da semana. Mas é só o que lhe resta, porque ele está despencando nas pesquisas. Levantamento da XP Ipespe mostra que a vantagem de Lula passou de 12 para 16 pontos. Agora, o ex-presidente aparece com 40% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro tem 24%.
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Mas se no Brasil estamos sob ameaça, o que acontece no Afeganistão é infinitamente mais grave
No episódio desta semana, a confusão no governo de Jair Bolsonaro. Por que, confusão? Vamos lá. O presidente da República foi pressionado pelo Congresso e teve que engolir a queda do chanceler Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores. Em reação surpreendente, ele forçou a saída do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa. Mas não parou por aí. Ao todo foram seis trocas no primeiro escalão do governo que, em princípio, indicam uma tentativa de agradar o Centrão e ter mais controle sobre as Forças Armadas.
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Porém, porém, porém, parece que o pessoal não concorda com essa ideia de controle. Tanto que, em um movimento inédito, os três comandantes das Forças Armadas colocaram seus cargos à disposição
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Mas isso não significa que os militares tenham abandonado o governo, eles só não querem pagar o pato do desastre. Aliás, espalhou-se o boato de que essa debandada foi um protesto às ações antidemocráticas de Jair Bolsonaro, num movimento de preservação das instituições. Ora, gente, não sejamos ingênuos.Aqui, a gente não acredita que os militares sejam os guardiães da democracia brasileira. Por aqui, esse papo não cola.
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Estamos, inclusive, na semana de aniversário do Golpe de 64
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Será que essa movimentação toda significa uma escalada autoritária ou, pelo contrário, um enfraquecimento de Bolsonaro? Ou os dois? Afinal, nessa dança das cadeiras, ninguém sabe que música está tocando. Mas a gente sabe que os militares estão dançando.
Não esquecendo que milhares de brasileiros morrem todos os dias em função da Covid-19, em função da inoperância e irresponsabilidade do governo. O desempenho desastroso na pandemia é, inclusive, um ponto de pressão fundamental sobre Jair Bolsonaro. Talvez a gota água.
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
BSV Especial Coronavírus #23 Queda do PIB, 4 anos do golpe e eleições
Geórgia Santos
2 de setembro de 2020
A queda do PIB fez com que o episódio desta semana fosse uma espécie de viagem no tempo. Isso porque a economia brasileira sofreu um tombo recorde, com uma queda história de 9,7% no segundo trimestre. Assim, o Brasil voltou ao patamar de 2009. O desempenho é parecido com o de países ricos durante a pandemia de coronavírus, mas, por aqui, também é reflexo da falta de liderança. O resultado ainda impactou diretamente na decisão do presidente Jair Bolsonaro, que resolveu prorrogar o auxilio emergencial com redução de 50%. Agora, o benefício será de R$300 reais, pago em quatro parcelas até o final do ano.
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Parece, afinal, que não bastava “tirar a Dilma”
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Aliás, nesta semana, dia 31 de agosto, fez quatro anos do golpe jurídico e institucional que tirou Dilma Rousseff do poder, em 2016. Algumas das repercussões desse evento ainda podem ser observadas hoje. Porém, talvez o momento exija uma guinada de discurso por parte da esquerda.
E do passado a gente dá pulinho no futuro porque as eleições municipais estão chegando e já mostram uma rearticulação das direitas brasileiras em torno de Bolsonaro. Quem sabe mostrando algo que pode acontecer em 2022. Afinal, já tem crítico arrependido, não é mesmo, governador Ronaldo Caiado?
Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox e outros agregadores.
A eleição de Jair Bolsonaro infectou a democracia brasileira com um vírus antigo
O vírus do autoritarismo
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Desde 2013 testemunhamos a fragilização do regime democrático no Brasil. No começo de tudo, as manifestações, depois um derrotado que não admite o resultado das eleições, o que leva a mais manifestações e um golpe institucional. Depois a preferência por um candidato autoritário. Até que chegamos à militarização do governo, mesmo conhecendo a experiência da Ditadura. Tudo isso levou a uma constante perda de direitos, aumento da já profunda desigualdade social e um crescimento da radicalização política no país. Como se não bastasse, em 2020, o mundo é assolado por um vírus novo. O novo coronavírus, que no caso do Brasil acentua os problemas gerados pelo vírus antigo e hoje temos milhares de mortos por completa inaptidão de um governo autoritário e militarizado.
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Vivemos, hoje, em uma democracia infectada
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Produção: Geórgia Santos e Raquel Grabauska. Texto, apresentação e edição: Geórgia Santos. Direção artística e locução: Raquel Grabauska. Trilha Sonora: Gustavo Finkler
O presidente Jair Bolsonaro conversa com turistas no Palácio da Alvorada.
Vamos começar com um exercício simples.
Projete sua mente para o início de 2023. A posse presidencial, toda aquela festa da democracia em Brasília, bandeiras verde-amarelas tremulando em todo o entorno do Planalto. Ao fim da rampa, Jair Bolsonaro – talvez sorridente, talvez ressabiado – segura a faixa presidencial, que ostentou sem necessidade inúmeras vezes durante os quatro anos anteriores, pela última vez. A seu lado, o homem ou mulher que assumirá a República em seu lugar. E Bolsonaro, de forma republicana, colocando a faixa no peito de seu sucessor ou sucessora, completando um ciclo de governo e dando início ao outro – tudo dentro da mais absoluta ordem democrática, com as instituições funcionando normalmente.
Agora, abra os olhos e responda, com sinceridade. Você realmente consegue visualizar isso acontecendo?
Nem eu.
E não estamos malucos, de forma alguma. O fato é que as eleições de 2022 não estão nem um pouco garantidas, e não existe nada suficientemente sólido para nos garantir que elas irão ocorrer. Nada. Nadica de coisa nenhuma.
A gente sabe, mesmo não querendo admitir. E a gente também sabe qual o motivo de tanta incerteza: o próprio Jair Bolsonaro e seu governo. Para essa aliança sombria, a democracia é um inimigo ou, na melhor das hipóteses, um incômodo a ser retirado do caminho. E estão agindo para destruir todos os alicerces democráticos, sem nenhum disfarce, diante dos nossos olhos.
Tem gente que escolhe a cegueira, mas mesmo esses enxergam muito bem o que está acontecendo.
O compartilhamento de mensagens convocando para protestos que pedem o fechamento do Congresso Nacional é apenas mais um dos muitos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro desde que tomou posse. É uma corda, que vem sendo esticada todos os dias e, por vezes, é submetida a violentos puxões. Não resta dúvida de qual seja a linha de chegada dessa corrida mórbida: o fechamento do Congresso e do STF, a criminalização do dissenso, a instauração de um regime de exceção com alicerces criminosos.
Pode levar vários meses, talvez um ano, talvez mais. Mas é essa a meta. E nenhuma ponderação, nenhum esforço racional ou freio democrático tem feito com que esse impulso sombrio seja contido. Há recuos, mas nenhum sinal de trégua, nada que sequer se aproxime de uma domesticação.
O cenário pode não ser dos mais agradáveis, mas seu enunciado é, na verdade, bastante simples. Ou as ditas instituições reagem, ou serão fechadas.
No momento, eu não apostaria nessa reação, infelizmente. Não sem um sacolejão violento por parte da sociedade.
Por agora, o governo Bolsonaro não tem força (política e bruta) para instaurar uma ditadura. E é meio por isso que ainda não estamos em uma. Pouco coeso, cravejado por disputas internas, em um clima de deslealdade aberta entre seus integrantes, o regime ainda tem o problema extra de ter um presidente que não consegue ser um líder – e tudo isso impede (talvez felizmente) ações sistemáticas de vulto. Tudo isso é verdade, e precisa ser levado em conta nesta complicada e tensa equação.
Não se pense, porém, que esse pessoal não vai buscar concretizar suas taras autoritárias. Está buscando, sim – e será cada vez mais vulgar e agressivo nessas tentativas, porque esta é a sua natureza, este é o cenário em que se sente mais confortável para atuar.
Apostar que a eleição de 2022 é um horizonte consolidado é pouco mais que um delírio desejoso, um alegre devaneio de verão. A única chance de existir um 2022 é forçando que ele exista.
A luta – desde já, e com urgência cada vez maior – é para interromper ou, pelo menos, enfraquecer essa enxurrada das trevas. É punir quem comete crimes contra a democracia. É fazer com que os delírios autocratas voltem a oferecer riscos àqueles que os acalentam, é garantir que o ataque à Constituição volte a ter consequências. Mesmo que isso signifique expulsar da cadeira presidencial aquele que a vê como um trono, como uma propriedade da qual não pretende abrir mão jamais. E apenas o sucesso nesse enfrentamento pode garantir a sobrevivência de um edifício democrático com alicerces fragilizados, que se esfarela a cada ataque e balança cada vez mais.
É preciso impor 2022 aos que anseiam por cancelá-lo. Desde agora. Ou talvez a profecia sinistra se confirme, e não seja mesmo necessário mais do que um cabo e um soldado para apagar a luz.
Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram.
O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos.
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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico
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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia. Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.
Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura.
O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas.
OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.
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2. “A educação era melhor”
Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).
Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.
Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.
É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.
O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.
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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”
João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.
O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.
Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango.
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6. “A população queria a ditadura”
Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava.
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7. “O Brasil cresceu”
É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre.
Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.
Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.
Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.
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8. “Só morreram vagabundos”
Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenasdurante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.
Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.
OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.
O plano de abertura de O Processo, documentário de Maria Augusta Ramos, sobrevoa a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para mostrar que há uma disputa política dada, encravada na polarização dos vermelhos, à esquerda, e dos verde-amarelos, à direita. A disputa pelos espaços midiáticos, narrativos, conceituais, encobre o tal processo do título, tempera os conflitos políticos, incendeia a já muito confusa discussão rodeada de “certezas históricas” e prerrogativas morais que corroem a esfera pública nacional. A batalha campal que é filmada de cima, dividindo dois focos de luta, amor e ódio, ao menos no plano simbólico, remete ao aspecto falsamente dual de nosso contexto político. Apesar de não romper com o dualismo, O Processo retira, na medida da possível, a política da esfera do espetacular, do televisivo, e a coloca em um espaço de observação e de crítica.
Consumado em agosto de 2016, após longo circo político-midiático, o impechment de Dilma Rousseff interrompeu seu segundo mandato presidencial, encerrando prematuramente o ano 14 de sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores.
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O Processo é feito de imagens de arquivo e captadas pela diretora em sessões do congresso, comissões, votações e debates da bancada governista no senado planejando os próximos movimentos da defesa de Dilma.
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O entendimento geral, no entanto, era de que o processo já possuía suas jogadas marcadas, seu xeque-mate programado. Resistir por todos os meios e fins era, pois, um ato político derradeiro.
Há uma coleção de imagens muito interessantes e bem articuladas, especialmente as captadas por Maria Augusta Ramos durante o “rito” jurídico, que respeita o tempo do drama e da fala, percebe a encenação que se apresenta para a câmera nas filmagens internas, de gabinete, nos corredores, as ligações telefônicas e entrevistas para imprensa. Ela respeita isso e seu filme ganha força e densidade dramática. Mas ao filmar o absurdo da política partidária institucional, o absurdo olha para você em reação. Momentos involuntariamente cômicos se embaralham com momentos de crise.
O filme quer tornar claro que houve um golpe parlamentar contra o PT e Dilma ao mesmo tempo em que, como documentário sobre o processo do impechment, quer também compreender os acontecimentos que basearam o golpe. No filme, está claro: não houve crime de responsabilidade fiscal, diz a defesa e a bancada governista representadas, entre outros, como personagens num thriller político, por José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin e Lindbergh Farias. A acusação teve em Janaína Paschoal, advogada e professora de Direito Penal, sua mais proeminente figura atendida pela câmera paciente e dedicada da cineasta. Mas se há uma coisa que o filme não faz é duvidar de si mesmo, explorar mais vivamente as tensões fora da máquina polarizadora para, aí então, buscar compreender algo. A narrativa é muito justa, retilínea e segura de sua ordem para que se possa compreender muito além da narrativa do golpe, como decerto era intenção do filme. Antes, já tinha as respostas: aqui está o golpe e foi assim. Os vermelhos, lá fora, choram a derrota e anunciam a volta por cima; os verde-amarelos, pujantes e satisfeitos, gozam não se sabe muito bem o que. O filme militante, muito justo, escorrega em suas virtudes.
Não se pode cobrar, claro, imparcialidade do documentário – embora, caso se queira, é plenamente possível ser imparcial. A história narrada por suas imagens tem um fio condutor, causalidade e uma sucessão de eventos em meio ao trâmite político cujo desenlace é o golpe, o impechment. É possível dizer que se tentou dar espaço para o outro lado, mas a construção da câmera é voltada para destruir a retórica da acusação, para isolar seus personagens ou para dimensioná-los, vez ou outra, pela caricatura. Isso é legítimo, embora fragilize a ideia de um filme feito “para que as pessoas possam refletir”. É verdade que, mesmo sem função, há imagens muito raras para não participarem do filme, como quando Janaína Paschoal bebe um achocolatado de canudinho no intervalo de alguma sessão ou o presidente da comissão que interrompe um debate para pedir a troca de uma campainha que não estava à altura do local. Esses momentos de precisão estética (fruto de atenção documental, atenção com o espaço ao redor) casam bem com o fato de alguns personagens aparecerem pouco, como Aécio Neves, Lula, Gilberto Carvalho e a própria Dilma.
Gilberto Carvalho é quem, aliás, marca um momento de reflexão tardia, já com a assunção da queda. Essa cena, crucial para o discurso do filme, é retrato também dos limites dessa reflexão que a militância petista difundiu pensando estar fazendo autocrítica.
O golpe parlamentar encerra um acordo político nacional com o pemedebismo, que foi rompido – e o lado do PT perdeu. Os golpeados não foram os políticos.
O Processo, de Maria Augusta Ramos, Brasil, 2018. Com José Eduardo Cardozo, Gleisi Hoffmann, Vanessa Grazziotin, Lindbergh Farias, Janaína Paschoal, Dilma Rousseff, Aécio Neves, Antonio Anastasia, Eduardo Cunha.