Voos Literários

Sobre direitos humanos e “cidadãos de bem”

Flávia Cunha
12 de dezembro de 2020

Há 72 anos, em 10 de dezembro de 1948, era criado um dos documentos balizadores do mundo pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em uma assembleia-geral da Organização das Nações Unidas. Na época, a maioria dos 58 países integrantes da ONU foi favorável ao texto, incluindo o Brasil.  Desde sua criação, a declaração, composta por 30 artigos, é considerada um marco no compromisso internacional para um mundo mais justo e com menos desigualdade.

DESVIRTUAMENTO CONCEITUAL

Tantas décadas depois, o que vemos no Brasil do século 21 é uma deturpação do conceito de direitos humanos. A ideia errônea vigente é de que serviriam apenas para proteger criminosos e livrá-los de punição. E, então, o que percebemos entre os chamados cidadãos de bem é uma necessidade de justiçamento contra bandidos.  Também evidencia-se um discurso bastante questionável de que direitos humanos deveriam servir apenas para “humanos direitos”.

MAS SERÁ QUE ELES ENTENDEM O QUE SÃO OS DIREITOS HUMANOS?

Para começar, não dá para saber quantos partidários desse discurso tosco realmente leram a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É bom lembrar que este é um texto amplamente acessível, inclusive na Internet, além de contar com uma bela adaptação destinada ao público infantil, com texto de Ruth Rocha e ilustrações de Otavio Roth.

Para efeitos didáticos, seguiremos o pensamento (equivocado, volto a ressaltar) de que direitos humanos deveriam ser apenas para “humanos direitos”. Como exercício de reflexão, consideraremos “humanos direitos” aqueles que não cometem crimes como assaltos e assassinatos. (Sonegar impostos, sabemos, é um crime considerado menor por cidadãos de bem, muitos deles grandes empresários cheios de pendências e problemas com a Receita Federal.)

Continuando essa linha de raciocínio, vamos imaginar aqui uma pessoa comum. Um trabalhador ou trabalhadora, de baixa renda, que se esforça para ter o suficiente por mês para pagar alimentação e um local de moradia. Será que os direitos humanos chegam mesmo a uma pessoa assim?

VEJAMOS O PRIMEIRO ITEM DO ARTIGO 23 DA DECLARAÇÃO:
Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.

Sobre a sentença acima, vale enfatizar que “condições justas e favoráveis de trabalho” são cada vez mais difíceis para a população brasileira, não somente em razão da pandemia. Há anos, vem se desenhando um cenário baseado em precarização das relações de trabalho, com salários cada vez menos justos. Afora que a livre escolha acaba se tornando uma falácia, em um panorama com grande desemprego e poucas oportunidades de novas vagas. 

Continuando nossa argumentação, destaco parte de um dos itens do artigo 27 da Declaração:
Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes […].

O ponto exposto nesse trecho do artigo 27 é o conceito de fruição da Arte. Sim, ele deveria ser fundamental na vida de todos, mas acaba sendo pouco presente na vida dos brasileiros, mesmo em tempos pré-pandêmicos. Dentre os maiores impeditivos para a Arte estar no dia a dia de muitos trabalhadores, acredito serem os mais comuns a falta de tempo e dificuldade de acesso a espaços culturais, mesmo gratuitos.

UM RESPIRO LITERÁRIO

Um exemplo literário dessa alienação do trabalho e falta de acesso à cultura e lazer pode ser encontrado no conto “Roda-Gigante”, do livro Mundos Paralelos, lançamento independente do escritor gaúcho Rodrigo Mizunski Peres. Tive o privilégio de ler esse texto antes de sua publicação, por ter sido a produtora editorial da obra. E esse conto foi o que mais me chamou a atenção dentre os 19 que integram o livro. Um exemplo claro, no meu ponto de vista, do quanto as condições de trabalho afetam a vida de “humanos direitos” e podem, de certa forma, impedir o acesso destes a direitos humanos básicos, como os que citei ao longo deste post.  

O enredo de “Roda-Gigante” narra a jornada exaustiva e repetitiva de uma operária. Conforme a leitura avança, acompanhamos o arrebatamento da personagem ao deparar-se com um parque de diversões, próximo à fábrica onde trabalha:

“Não costumava parar fosse na ida ou na volta de sua monótona rotina. Sequer passara na padaria para comprar seu pão. Mas se deteve na calçada, e ficou a mirar – já admirava – a roda-gigante. Pois nunca mesmo andara numa. Nunca fora a um parque de diversões. Nunca. Não soube precisar quanto tempo ficara ali parada, mas o suficiente para alterar sua rotina.”
Confiram um trecho do conto, na leitura cênica feita pela atriz Elisa Lucas:

DIREITOS HUMANOS

É essencial lutarmos para que os direitos humanos sejam respeitados. É a única forma de livrarmos o Brasil da barbárie e da injustiça social defendidas por uma parcela egoísta, privilegiada e torpe da nossa sociedade. Para quem ainda não leu, uma versão digital da Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser adquirida aqui.

 

 

 

PodCasts

Democracia infectada

Geórgia Santos
31 de julho de 2020
A eleição de Jair Bolsonaro infectou a democracia brasileira com um vírus antigo
O vírus do autoritarismo
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Desde 2013 testemunhamos a fragilização do regime democrático no Brasil. No começo de tudo, as manifestações, depois um derrotado que não admite o resultado das eleições, o que leva a mais manifestações e um golpe institucional. Depois a preferência por um candidato autoritário. Até que chegamos à militarização do governo, mesmo conhecendo a experiência da Ditadura. Tudo isso levou a uma constante perda de direitos, aumento da já profunda desigualdade social e um crescimento da radicalização política no país. Como se não bastasse, em 2020, o mundo é assolado por um vírus novo. O novo coronavírus, que no caso do Brasil acentua os problemas gerados pelo vírus antigo e hoje temos milhares de mortos por completa inaptidão de um governo autoritário e militarizado.

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Vivemos, hoje, em uma democracia infectada
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Produção: Geórgia Santos e Raquel Grabauska. Texto, apresentação e edição: Geórgia Santos. Direção artística e locução: Raquel Grabauska. Trilha Sonora: Gustavo Finkler

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #45 Violência contra as mulheres

Geórgia Santos
3 de fevereiro de 2020

É imperativo que a sociedade brasileira discuta os casos de violência contra a mulher e relacionamentos abusivos. A desinformação ficou escancarado na última semana quando Micheli Schlosser pediu autorização para beijar o namorado. O problema? Lisandro Rafael Posselt, de 28 anos, estava sendo julgado por tentativa de feminídio. Contra a própria Micheli. Em agosto do ano passado, após uma discussão, ele disparou sete vezes contra a namorada. Acertou cinco.

Ele foi condenado a sete anos de prisão pelo Tribunal do Júri em Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul. Ele estava preso mas vai ficar em liberdade, pois não possui antecedentes e a pena foi menor do que oito anos. No tribunal das redes sociais, o julgamento foi bastante rápido. O julgamento de Micheli.

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“O amor venceu”, diziam alguns
“Mulher gosta de cafajeste”; “Ela é doida”; “Essa gosta de apanhar”, diziam outros
“Não tem amor próprio”; “Quem sou eu pra criticar o amor?”
“Da próxima vez que acontecer, sim porque vai acontecer novamente, espero que ela se lembre disso e não invente de ligar pra polícia, pois a partir do momento que beijou quem tentou lhe matar ela jogou no lixo o trabalho da policia e da justiça”
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No fim, é a demonstração do quanto é difícil quebrar um ciclo de abuso e violência. Por isso, vamos ouvir a psicóloga Daniela Zanetti, que vai contar quais são os sinais de um relacionamento abusivo e quais os passos para quebrar essa corrente de violência.

O tema vem na esteira de uma reportagem produzida pelo Vós, que venceu a primeira edição do Prêmio C6 Bank de Jornalismo. Na matéria, as jornalistas Flávia Cunha e Geórgia Santos falam sobre outros tipos de violência, como a psicológica, moral e patrimonial.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol. 

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #33 Agatha Félix, 8 anos

Geórgia Santos
30 de setembro de 2019

Nesta semana, o fato que dilacerou o coração de todo o país. Agatha Félix, de oito anos, foi assassinada com um tiro de fuzil. Ela estava dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

A família garante que ela foi assassinada pelo Estado. Assim como outras testemunhas que afirmam que não houve tiroteio. A versão oficial é outra. Segundo a Polícia Civil, o projétil que matou Ágatha é de fuzil, sim, mas não poderá ser comparado a armas de PMs. Não é possível dizer o calibre da bala achada no corpo da menina. Surpresa.

Mas se não é possível determinar o calibre da bala, é bastante claro que a Agatha foi morta como consequência da política de segurança de Wilson Witzel, o governador do Rio de Janeiro. Para compreender melhor essa realidade, conversamos com a jornalista e ativista Marcela Lisboa, moradora da Penha.

O governador ficou em silêncio em princípio. Quando falou, responsabilizou o usuário de maconha. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, apressou-se em descolar o assassinato da menina do excludente de ilicitude. Já o presidente Jair Bolsonaro ficou em silêncio sobre o caso da Agatha, não disse absolutamente nada. Adoraríamos que ele tivesse ficado em silêncio também na ONU.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. A edição é da jornalista Evelin Argenta. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Reportagens Especiais

Venezuela . a distopia após duas décadas de Chavismo

Alvaro Andrade
19 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

Em Caracas, no bairro 23 de Enero, os olhos de Hugo Chávez ainda pairam sobre o povo. O grafite em preto e branco com la mirada del comandante está por todos os lados e parece manter a vigilância sobre o reduto de maior apoio ao chavismo na Venezuela. A região, a menos de um quilômetro do Palácio Miraflores, sede do regime, é estratégica, pois ali estão concentrados os colectivos, grupos paramilitares criados para operarem como milícias de segurança nos bairros e que hoje são um braço civil armado do governo. No topo de um morro, à direita da entrada para o mausoléu 4 de Febrero, onde estão os restos mortais do ex-presidente, uma capela religiosa leva seu o nome e sua fotografia está posta em um altar, cercada por velas acesas e outras imagens. “Chávez era do povo, por isso é tão amado”, diz o porteiro do quartel 4F, um simpático caraquenho vestido com a indefectível camisa vermelha do PSUV, o partido socialista que comanda a Venezuela.  

Pelo caminho, parte do legado chavista pode ser notado nos incontáveis prédios de Misión Vivienda, plano de moradia gratuita que, segundo dados oficiais, já alcançou os 2 milhões de imóveis distribuídos gratuitamente ao povo. No entanto, basta afastar-se das regiões centrais de Caracas para  perceber que o bolivarianismo ainda ficou distante de muita gente.Em Petare, maior favela da América Latina, composta por 80 bairros em diferentes morros de Caracas, a insatisfação fervilhava em meados de dezembro. Moradores bloquearam a via expressa que fica logo abaixo e foram reprimidos pela Ordem Interna, um grupo militar destinado especificamente a conter manifestações.

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“Nos falta água, nos falta luz. Não há comida, nem trabalho. Prometeram um pedaço de pernil e nem isso chegou”, reclama um aposentado diante de uma oficina instalada às margens de um dos becos da favela

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Apesar da má reputação de violência e territórios controlados, Petare não se difere muito das favelas brasileiras. Casas sem reboco, vielas, escadarias, falta de saneamento e gatos de luz. Mas na capital venezuelana, a fome mata os sorrisos e todos repetem o mesmo. “Estamos  hartos!”, ou seja, cansados, exaustos, fartos de esperar. “Esse era um governo que se dizia do povo, mas já nos esqueceu faz tempo”, diz o mecânico que se desdobra para consertar um dos tradicionais veículos antigos que, assim como o país consome muito e vive cheio de problemas.

LEI DE TALIÃO

Dois retalhos de calça jeans servem como bandagem para conter a hemorragia nas pontas dos braços onde antes havia mãos; o rosto está empapado de sangue, pois os olhos e a língua também foram arrancados. Leocer Maiz, um jovem de 19 anos, foi entregue assim, com vida e consciente, no hospital da cidade de El Callao, no sul venezuelano. Ele sofreu as consequências por ter praticado uma série de roubos na região controlada pelos pranas, máfias locais que exploram ouro ilegalmente e que jamais perdem a chance de reafirmar sua autoridade.

A  mutilação de Maiz não foi um fato isolado. As máfias operam sem piedade na região conhecida como Arco Minero, a cerca de 250 quilômetros da fronteira com o Brasil. São cinco povoados às margens da rodovia Troncal-10, em uma área que parece esquecida pelo governo venezuelano.

Apesar da presença militar em postos de controle a cada 50 quilômetros, quem realmente manda na região são os garimpeiros. Las Claritas, um povoado sugestivamente conhecido como Sodoma e Gomorra, é o retrato brutal dos contrastes venezuelanos.

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Às margens das crateras e do barro da estrada que se mistura ao lixo e ao esgoto a céu aberto, se espalham vitrines de lojas com fartura digna de áreas comerciais de grandes cidades.

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“Tudo que falta na Venezuela se consegue aqui: remédios, pneus, máquinas. Também tem drogas e prostituição. Onde tem ouro, tem dinheiro, então essas coisas vêm junto”, conta Manoel González, taxista de El Callao já acostumado com a estética decadente da região. “Se não incomodar ninguém aqui, nada vai te acontecer. Mas nem pensa em filmar ou fotografar”, adverte.

O sol escaldante aquece o piso úmido e o resultado é um abafamento sufocante. Além do forte odor de esgoto, do permanente fluxo de motos barulhentas e caminhões a poucos centímetros da calçada, o semblante de quem está por ali não é nada convidativo. Bancas compram e vendem ouro à luz do dia; um grande mercado oferece de bananas a animais recém abatidos, passando por analgésicos, motosserras e muita bebida alcóolica.

Mesmo tão inóspito, o Arco Minero se converteu em uma das últimas esperanças de trabalho dos venezuelanos dentro do próprio país. Alexiis Urquia Rivas, 24 anos, tenta manter-se afastado dos problemas, mas conhece bem os riscos da região. “Aqui ainda é possível trabalhar e conseguir um pouco mais do que no resto do país. Se encontrar ouro, ganho dinheiro. Muita gente está vindo de outros estados com essa ideia, mas muitas vezes se assustam quando encontram a realidade”.

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EXPROPRIAÇÕES VIRARAM MATO

A crise se agravou desde a morte de Chávez, em 2013. O sucessor, Nicolás Maduro, que não chega à sombra do seu carisma, herdou uma crise diplomática permanente, dívida pública em alta e queda brutal no preço do petróleo, o que em parte ajuda a explicar a dimensão das dificuldades venezuelanas, além do agravamento dos bloqueios econômicos e sanções internacionais.

Enquanto Maduro implementa sucessivos planos econômicos, concede reajustes salariais para tentar conter a inflação e usa o bloqueio como justificativa para todos os males, a produção interna é praticamente nula e o país depende essencialmente de importações. A economia pouco diversificada é outro fator que agrava a situação, levando ao desabastecimento. E quando a demanda é maior que a oferta, naturalmente há  inflação.

Poucos meios de produção tomados pela revolução estão organizados e funcionando, especialmente na produção de alimentos. A maioria fica relegada ao abandono, agravando a escassez. Segundo um levantamento do Observatório de Direitos de Propriedade, 1.359 empresas foram expropriadas entre 2005 e 2017, além de mais de 5 milhões de hectares de terras, segundo a Federação Agrícola do país.

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A produção no campo minguou, as empresas alimentícias foram fechadas, o bloqueio externo se agravou e os produtos desapareceram das prateleiras.
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Desde indústrias de lácteos, passando por fábricas de cimento ou insumos agrícolas, a mão do Estado chegou a diversos setores da iniciativa privada, mas não deu sequência ao trabalho. As empresas que não foram estatizadas acabaram abandonando o país, gerando desemprego e pulverizando a classe média.

Em Valencia, multinacionais como GM, Ford, Crysler e Good Year encerraram operações por falta de matéria-prima e deixaram um rastro de mais de 10 mil desempregados na cidade, um polo industrial da região oriental. Hoje, vê-se obras inacabadas, apagões, racionamento de água e rodovias sem manutenção; as gôndolas dos supermercados já não estão tão vazias, mas os preços seguem completamente distantes do poder aquisitivo representado pelo salário mínimo. “Nosso hotel tinha ocupação média de 80%, hoje estamos em 10 a 15%”, lamenta o brasileiro Antonio, radicado há 40 anos na Venezuela. “O comunismo não deu certo. Eu, que sou empresário, já tenho dificuldade. Imagina esse povo todo na rua. As pessoas não tem o que comer, mas isso não era assim”.

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A ESPERANÇA É O MADURO DOS OUTROS

Dificilmente faz frio na Venezuela. Naquela noite de começo de janeiro, nada no céu indicava que iria chover. Jéferson, um menino de 12 anos, percebe que vou dormir na rua após o segurança pedir para me retirar do saguão do terminal de Puerto Ordaz, que será fechado na madrugada. O garoto se aproxima e me convida a dormirmos juntos sob a marquise. Gentilmente estende um dos cobertores e pede para que eu retire os tênis. “Mais tarde vai chover, mas assim você sente a brisa fresca e dorme melhor”. Ato contínuo, ele toma a outra manta e me cobre com delicadeza. “Estás cômodo?” Quase não consigo responder e me ponho a chorar, emocionado com tamanha doçura. Ele senta ao meu lado, me dá um abraço e diz para eu não ter medo. “Aqui estamos seguros”. Logo ele adormece e eu fico acordado a tempo de ver a chuva chegar. É minha última noite na Venezuela.

Antes de dormir Jéferson me contou que fugiu de casa há 5 meses, onde morava com a avó após os pais ‘viajarem’ para outro país, que ele não sabe qual. Não vai a escola. Sua vida e sua casa são o aeroporto de Puerto Ordaz, no centro-sul. Sobrevive da boa vontade dos funcionários e dos passageiros que não conseguem fugir de tanta simpatia. “Bom dia, tudo bem? Que faça boa viagem!”, exclama ele ao amanhecer, distribuindo sorrisos com a cara ainda amassada. O dia começa, os aviões pousam e decolam e ele logo se dispersa em meio ao rebuliço do aeroporto.

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Sigo conversando com os trabalhadores locais e, sabendo que sou brasileiro, fazem uma pergunta recorrente:
E o Bolsonaro, quando chega?

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De norte a sul, sufocados pela crise, é difícil encontrar quem se oponha a algum tipo de intervenção para ‘libertar’ o país. A recente escalada diplomática já era vista com muita esperança em meados de janeiro, quando a oposição articulava com governos do exterior o isolamento do presidente reeleito, Nicolas Maduro. Assim que ele foi empossado, o presidente da Assembleia Nacional, que teve poderes cassados pela Suprema Corte, autodeclarou-se presidente interino. Juan Guaidó, um deputado outsider oriundo dos protestos de 2014, assumiu o enfrentamento aberto com Maduro e convocou as Forças Armadas a apoiá-lo no golpe, mas ficou apenas com parte do apoio popular e estrangeiro.

O FUTURO

“As coisas pioraram muito desde que tu partiu. Os preços subiram ainda mais e a polícia está mais violenta. Prenderam meu sobrinho simplesmente porque ele tinha mensagens combinando que iria ao protesto do dia 23 de janeiro”, diz Jose Zerpa, um dos amigos feitos na Venezuela ao longo dos 20 dias de reportagem. Assim como ele, outros relatam sua esperança com as manifestações de apoio da comunidade internacional.

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“Eu fui às ruas, não podemos mais conviver com Maduro e esse regime”
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Em seu discurso de posse na contestada e desacreditada reeleição, Maduro prometeu combater a corrupção e corrigir rumos, mas frente a circunstâncias tão dramáticas as palavras já não dispõem de credibilidade para aplacar os críticos, muito menos colocar comida na mesa daqueles que, por falta de opção, excesso de persistência ou um tanto de malandragem dia a dia sobrevivem na terra de Bolívar.

 

Reportagens Especiais

Venezuela . da esperança ao desespero

Alvaro Andrade
17 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

O carro começa a falhar quase no topo da colina enquanto o motorista, Hermanito Manuel, chacoalha o volante buscando as últimas gotas de gasolina do Fiesta 2006 que nos traz desde Santa Elena do Uairén, fronteira da Venezuela com o Brasil. Estamos a caminho de Ciudad Bolívar em uma travessia de 750 quilômetros entre reservas indígenas e áreas de garimpo ilegal. Após vencer o pico da subida, o carro vai no embalo até encostarmos no fim de um fila quilométrica de onde só seria possível prosseguir se conseguíssemos abastecer. São 7h15 do primeiro dia de uma jornada de mais de 2000 km por terra, atravessando a Venezuela de sul a norte por cinco estados para observar o cotidiano da crise que se transformou no novo foco de tensão da geopolítica mundial.  

Nessas primeiras horas da manhã, o clima lembra o de um Mad Max pacífico: centenas de veículos esperam por gasolina há pelo menos quatro horas no acostamento de uma rodovia em área deserta do planalto venezuelano. O posto, operado por uma comunidade indígena, já recebeu combustível, mas o reabastecimento não foi retomado porque o gerador elétrico está, supostamente, com problemas.  Apesar de uma aparente displicência por parte dos donos do estabelecimento, os motoristas riem, fazem piadas, fumam e esperam sem qualquer traço de indignação diante da dificuldade para obter gasolina no país com as maiores reservas de petróleo do planeta.

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“Neste país só temos o direito de esperar”, ironiza um motorista na roda de conversa

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DA BONANÇA AO CAOS

As filas, em qualquer lugar e para qualquer coisa, são o retrato de um povo à espera da revolução prometida, mas que se tornou uma miragem. No período em que esteve no poder, Hugo Chávez aprovou e submeteu a referendo uma série de mudanças profundas nas leis do país, como a possibilidade de reeleição indefinida, a extensão do mandato presidencial para seis anos, o fim do latifúndio, a redução da jornada de trabalho de 8 para 6 horas semanais e abriu caminho para as expropriações de ‘empresas improdutivas’. Surfando na abundância do petróleo, responsável por 95% das exportações e com cotação superior a U$$ 100 o barril, o chavismo teve sua fase de ouro, desfrutou de amplo apoio popular e logrou cumprir parte das suas promessas, especialmente aos mais pobres, com a distribuição de moradias e ampliação do ensino. Mas também perseguiu opositores, aparelhou o Estado e, em nome da defesa da soberania e autodeterminação, descambou para o autoritarismo.

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Os dias atuais em nada lembram os vigorosos sonhos manifestados na posse de Chávez , em 2 de fevereiro de 1999

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Qualquer atividade cotidiana exige paciência e planejamento, pois certamente será necessário esperar. Em Caracas, filas pelo transporte público somam mais de 200 pessoas ao fim do dia; em Ciudad Bolívar, quase 100 se escondem do sol sob uma marquise diante de uma agência bancária que permite saques de 1000 bolívares (U$$ 1,50); em Valencia, há fila para comprar o CLAP, o kit de comida subsidiada vendida pelo governo para tentar aplacar a fome; em Puerto Ordaz, fila para comprar pão na padaria que conseguiu farinha.

Nos últimos  cinco anos o PIB venezuelano teve uma queda de 37%; segundo a FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, 3,7 milhões de venezuelanos estavam desnutridos em 2018; 87% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo estudo de uma universidade local; o governo sofre com isolamento internacional e, dentro de casa, está imerso em crise política e institucional permanente. Nicolás Maduro, o sucessor,  carrega nos braços pelo menos 125 mortos em repressão de protestos e graves acusações de prisões ilegais, tortura e violação de direitos humanos por entidades como a ONU e a Human Rights Watch

Com uma economia colapsada e inflação estimada pelo FMI em absurdos 1.000.000.000%, a Venezuela ainda é considerada o país mais violento da América Latina, com 81,4 mortes para cada 100 mil habitantes. Escassez, infra-estrutura deficiente, apagões, falta de dinheiro em espécie, corrupção e uma crise política incessante impulsionam a maior diáspora de que se tem notícia no novo continente. Os números oficiais apontam quase três milhões de imigrantes, mas quem vive na Venezuela garante que o número é pelo menos o dobro – ou mais de 10% dos seus 31 milhões de habitantes. Para muitos, chegar ao Brasil significa a chance de recomeçar. 

 

SEQUELAS DE CARACAS

Sentado como pode sobre um colchão, ainda de cueca ao lado de uma garrafa pet cheia de urina, Jesús Ibarra emite com dificuldade as palavras entrecortadas por longas pausas, até que seu pai entende que ele deseja vestir-se para conceder a entrevista. O estudante de engenharia de 21 anos ficou 45 dias entre a vida e a morte após cair desacordado no poluído rio Guaire, em Caracas, vítima de uma bomba de gás lacrimogêneo disparada pela polícia, que partiu seu crânio. Ele e o pai imigraram de Caracas de ônibus até chegarem ao Brasil e, em Roraima, ao abrigo Rondon II, montado pela ONU em parceria com o governo brasileiro para mitigar os efeitos da crise imigratória de 2018.

Já sentado, Jesús lembra pouca coisa sobre os acontecimentos que acabaram por render cinco cirurgias, enormes cicatrizes na cabeça e sequelas na fala e no raciocínio que levará para o resto da vida. “Éramos apenas jovens estudantes cansados daquela situação. Alguns amigos não tiveram a mesma sorte porque o regime começou a atirar para matar”, conta. Os protestos de 2017 deixaram um rastro de mais de 120 mortos no país. Ainda sem perspectiva, aguarda pacientemente sua vez de partir para algum canto do Brasil. “Quero recomeçar minha vida”.

À ESPERA DA LISTA

Faltam poucos dias para a partida dos ônibus que fazem a interiorização dos imigrantes venezuelanos para nove estados brasileiros. No abrigo Rondon II, um dos quatro montados pelas Forças Armadas do Brasil na capital de Roraima, há muita expectativa. Assim que a lista com os nomes dos 771 passageiros é afixada em uma das janelas, logo se instala um misto de euforia e decepção entre os selecionados e aqueles que vão precisar aguardar um pouco mais para seguir viagem. O abrigo é um dos seis montados em diferentes pontos da cidade, totalizando 10 mil imigrantes cadastrados segundo balanço divulgado em dezembro.

“Vou para a Paraíba, não sei onde fica, mas qualquer lugar será melhor do que onde viemos”, diz uma das imigrantes enquanto chora e abraça os familiares ao identificar o nome entre os selecionados.  A partida deste contingente ajuda não apenas a eles próprios, mas também outros compatriotas que ainda aguardam nas ruas de Boa Vista a chance de acessar um dos centros de atenção. Apesar do esforço das autoridades brasileiras, o local é um oásis que não dá conta de suprir toda a demanda. Até passar pela triagem, receber documentação e entrar na fila de espera, famílias inteiras, com crianças e idosos, precisam se sujeitar a dormir debaixo de marquises ou em locais improvisados.

LAS OITCHENTERAS

Em outras áreas de Boa Vista a sobrevivência como imigrante impõe condições de vida ainda mais duras. As ruas de chão batido e terra vermelha dos arredores do terminal Caimbé, na zona oeste da capital, são a passarela para meninas e mulheres que tentam caprichar no sorriso e na simpatia – mesmo de barriga vazia.

As “oitchenteras”, como ficaram conhecidas em função do valor médio dos programas, não escolhem hora para trabalhar. Mesmo sob o abafamento constante da região tropical, montam em saltos altos e tentam manter a maquiagem no rosto na sua busca por clientes, mesmo à luz do dia. “Não vou te dizer meu nome porque minha família não sabe que somos putas”, diz uma das garotas, que sequer tem 18 anos. Ao lado da irmã, é econômica nas palavras.

Perguntada sobre as manchas roxas que leva na altura do pescoço, responde tentando demonstrar coragem. “Marcas da vida. Aqui é muito perigoso, mas é a forma que temos de sobreviver.” Em poucos minutos circulando pela área, é possível contar mais de 20 mulheres espalhadas pelas esquinas, sentadas debaixo de árvores e conversando com motoristas em carros de vidros escuros.

Alvaro Andrade
Mulheres trabalham a luz do dia em Roraima.

O bairro, que já não tem as melhores condições de infraestrutura, sofreu o impacto que acompanhou a prostituição. Com a abertura de casas noturnas e bares, o tráfico de drogas e a violência vieram juntos. “Não vejo a hora de sair daqui. Tínhamos um bairro humilde, mas de respeito. Agora tenho medo de sair de casa”, diz Jussara Rodrigues, aposentada de 72 anos que é uma das tantas moradoras da região que colocou a residência à venda. 

Enquanto isso, na Venezuela, a crise política não dá sinais de arrefecimento. A escalada diplomática atingiu níveis ainda mais elevados quando Nicolás Maduro tomou posse para um novo mandato de seis anos – após eleições contestadas por observadores estrangeiros e a oposição. Tanto que Juan Guaidó, um outsider eleito presidente da Assembleia Nacional, autodeclarou-se presidente interino com apoio explícito dos EUA. Ele foi prontamente reconhecido por países latino-americanos e europeus, mas reacendeu a tensão geopolítica internacional ao opor China e Rússia aos interesses de Washington no petróleo caribenho. Maduro ainda resiste graças ao poder político e econômico que concedeu aos militares, com distribuição de cargos e vistas grossas à corrupção. Com lealdade comprada e bem paga, não há sinais de que a caserna se alie a oposição e aos yanakees, aprofundando a crise para níveis inimagináveis. 

Acesse aqui a segunda reportagem da série. Venezuela . a distopia após duas décadas de chavismo

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #13 Quem são os ministros de Bolsonaro? 

Geórgia Santos
14 de dezembro de 2018

O governo de Jair Bolsonaro já está desenhado. O presidente eleito pretendia ter 15 ministérios, deve ficar com 22 – mas o Ministério do Trabalho foi extinto.Entre os ministros, sete militares, o mesmo número de militares que ocuparam ministérios no governo do General Costa e Silva. Mas quem são os ministros de Bolsonaro? E o que essas escolhas representam em termos de tendência?

Os jornalistas Geórgia Santos, Tércio Saccol e Igor Natusch discutem os nomes do novo governo e entrevistam o sociólogo Fernando Cotanda, coordenador do curso de Pós-Graduação em Relações do Trabalho da UFRGS. Ele fala sobre a extinção do Ministério do Trabalho. Evelin Argenta conversa com Carlo Rittl, secretário -executivo do Observatório do Clima, sobre a indicação controversa para o Ministério do Meio Ambiente. Ele falou ao Vós diretamente da COP24, na Polônia.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem “A Fuga”, de Clarice Lispector, como uma provocação a algumas das ideias ventiladas no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Voos Literários

O melhor e o pior da Copa e suas inspirações literárias

Flávia Cunha
17 de julho de 2018

Canarinho Pistola – Virou meme, ganhou destaque nos noticiários e o resultado desastroso do Brasil em campo em nada abalou o amor dos internautas ao mascote do Brasil.

Livro pistola em homenagem ao CanarinhoA Raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo. Obra, ganhadora do prêmio Jabuti de 2015, é originalmente destinada ao público infantojuvenil. Mas pessoas de todas as idades precisam saber como lidar com esse sentimento tão intenso. Pra completar, a obra aborda o assunto com humor (tudo a ver com o Canarinho) e ilustrações bem bonitas.

Mick Jagger e seu pé frio – A má fama como torcedor ronda o vocalista dos Rolling Stones desde a Copa de 2014. Mas depois da Inglaterra ser eliminada com a sua presença no estádio na Rússia, a Internet não perdoou. Seu filho brasileiro bem que tentou defendê-lo, mas se tem algo que não adianta é tentar lutar contra esse tipo de brincadeira virtual. E, vamos combinar que nesse caso, é algo que não parece maldoso.

Livro em homenagem a Mick Jagger – Um roqueiro com tanto tempo de atividade já ganhou várias biografias, assim como os Stones. Mick a vida louca e o gênio selvagem de Jagger, do jornalista norte-americano Christopher Andersen, é uma obra que agradará quem gosta de saber detalhes pessoais de seus ídolos.

Neymar, Cristiano Ronaldo e o limite da vaidade – Tem quem defenda o menino Neymar e sua preocupação excessiva com a autoimagem, usando como justificativa o fato de Cristiano Ronaldo ser igual (ou ainda mais narcisista). O problema em questão é que, mesmo com salário astronômico e dois cabeleireiros o acompanhando durante a Copa, Neymar não obteve o resultado esperado em campo.  

Sugestão de leitura sobre a vaidade – O clássico O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde. O enredo mostra o protagonista em situações que o levam a ser cada vez mais arrogante e egocêntrico. Mas não espere um livro moralista, porque, afinal, trata-se de Oscar Wilde, um gênio rebelde das Artes.

Protesto feminista em plena Copa – Em uma competição masculina, uma manifestação feita por mulheres chamou a atenção. O grupo Pussy Riot invadiu o campo na final da competição para protestar contra o governo russo e a falta de liberdade no país.

Manifestação tem a ver com literatura – O ato foi organizado em homenagem a Dmitri Prigov, poeta dissidente da União Soviética, que morreu há 11 anos justamente nessa data (15 de julho). O escritor retratava em seus textos o “Policial”, uma representação da ditadura do Estado soviético.

A França vencedora e a necessária reflexão sobre xenofobia e racismo – O bicampeonato da seleção francesa na Copa suscitou debates que vão muito além das análises desportivas. A vitória deveu-se à atuação de um time formado em grande parte por imigrantes ou descendentes de africanos. O que chama mais atenção é o fato de a maioria dos franceses ser abertamente contra à presença de pessoas de outras nacionalidades em seu país, seja em campo ou fora dele. O comportamento preconceituoso está infelizmente presente em diversos países europeus, nos Estados Unidos e também no Brasil.

Duas obras para saber mais sobre o assunto e poder debater em alto nível com preconceituosos  de plantão:

Direitos Humanos e Hospitalidade – A proteção internacional para apátridas e refugiados, de Gustavo Oliveira de Lima Pereira

A obra analisa, a partir do viés do Direito Internacional, a questão dos direitos humanos e discute, com profundidade, conceitos como cidadania, soberania, democracia e tolerância. Um assunto pertinente em um mundo com cerca de 47 milhões de refugiados e outros 12 milhões de pessoas sem cidadania.

Direitos Humanos e Xenofobia: Violência internacional no contexto dos imigrantes e refugiados, organização de Cristiane Feldmann Dutra e Gustavo de Lima Pereira

Uma coletânea de artigos para entender e poder questionar a inutilidade das atuais as políticas migratórias restritivas. Medidas que dificultam a permanência regular de imigrantes em um determinado país mas não restringem a entrada dessas pessoas, criando, assim, um negócio lucrativo e ilegal, para os coiotes e agentes corruptos dos governos. Uma obra de resistência feita por quem realmente entende do assunto.

Livros sobre xenofobia e direitos humanos sugeridos pela socióloga e doutoranda  em Sociologia Aline Passuelo de Oliveira, especialista em sociologia das migrações, deslocamentos populacionais forçados, refugiados, conflitos armados e os impactos nas populações locais.

Samir Oliveira

O candidato anti-LGBT perdeu na Costa Rica, mas suas ideias cresceram

Samir Oliveira
5 de abril de 2018
Foto: Fabricio Alvarado | Arquivo Pessoal

A Costa Rica acaba de sair do segundo turno de suas eleições presidenciais com um resultado que, por um lado, representa um alívio a todos os defensores dos direitos humanos, mas por outro acende um sinal vermelho de alerta permanente.

O candidato reacionário e anti-LGBT Fabricio Alvarado foi derrotado, mas suas ideias ganharam peso.

No pleito do dia 1 de abril o cantor evangélico e apresentador de TV Fabricio Alvarado ficou com 39,2% dos votos, sendo derrotado pelo jornalista e escritor Carlos Alvarado, que obteve 60,8% de apoio popular. A virada surpreendeu o país, invertendo o resultado do primeiro turno e contrariando a previsão das pesquisas de opinião, que demonstravam um cenário extremamente polarizado.

A Costa Rica é reconhecida como a democracia mais sólida da América Central. Talvez seja mais conhecida ainda por ser um dos poucos países do mundo sem Forças Armadas. Mas estas eleições trouxeram à tona outra faceta do país: o conservadorismo brutal de sua sociedade em temas como sexualidade e direitos humanos.

Estas duas questões transformaram-se no eixo do debate eleitoral. Apenas um mês antes do primeiro turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que a Costa Rica legalizasse o casamento civil igualitário. A decisão posicionou o assunto no centro de todas as campanhas. Enquanto o governista Carlos Alvarado, de centro-esquerda, celebrou a sentença, o oposicionista de direita afirmou que um eventual governo seu não respeitaria o julgamento e ainda retiraria o país deste importante organismo multilateral.

Fabricio Alvarado mobilizou os piores sentimentos do país com sua candidatura. Sob o pretexto de defender uma suposta “família natural”, foi totalmente contrário a qualquer concessão de direitos à população LGBT. Garantiu que sua primeira medida no governo seria a revogação de um decreto que protege servidores federais e usuários dos serviços públicos contra a discriminação.

Os pronunciamentos do presidenciável da direita beiraram as raias do crime ao defender a chamada “cura gay”, uma invenção reacionária do fanatismo neopentecostal.

“Estou de acordo em que as pessoas que queiram sair da homossexualidade devam ter um espaço onde sejam atendidas e restauradas”, declarou. Isso mesmo, o termo exato que ele utilizou foi este: restauração.

Fabricio Alvarado é uma espécie de Marco Feliciano costarriquenho. Ele chegou a dizer que a homossexualidade é uma invenção do Diabo. E o pior é que muita gente foi seduzida por sua retórica preconceituosa. “Quando o inimigo (o Diabo) consegue confundir sexualmente uma pessoa e desviar sua identidade sexual, o que está fazendo é destruir sua identidade em Deus”, declarou.

Felizmente o jogo virou no segundo turno e Carlos Alvarado viu sua votação aumentar de 21,7% para 60,8%. O candidato do governista Partido Ação Cidadã (PAC) representa a continuidade de um projeto de centro-esquerda desgastado e envolvido em denúncias de corrupção. Não faço aqui uma defesa de sua plataforma, que não empolga e definitivamente não representa qualquer novidade. Mas é preciso dizer que sua vitória foi uma vitória contra a homofobia e o preconceito. A derrota de Fabricio Alvarado simbolizou um levante da Costa Rica contra o crescimento da intolerância, tanto é que o índice de eleitores que compareceram às urnas aumentou do primeiro para o segundo turno.

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Mas o alerta que faço no título não é em vão

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Apesar de ter sido derrotado, Fabricio Alvarado garantiu uma sólida base social no país. Entrou na eleição como o único deputado de um partido pequeno, o Partido da Restauração Nacional (PRN), e saiu do pleito como o líder da segunda maior bancada no Congresso, com 14 parlamentares -à frente inclusive da bancada governista, que elegeu 10 deputados.

A vitória da homofobia e do preconceito no primeiro turno acendeu o sinal de alerta e a sociedade costarriquenha soube reagir à altura. Mas o crescimento estrondoso do PRN demonstra que o fundamentalismo religioso está a poucos passos do poder. E eles não vão desistir, por isso nós devemos seguir resistindo.

Samir Oliveira

Eu poderia ter sido uma vítima da “cura gay”

Samir Oliveira
21 de setembro de 2017

O ano era 2003. Eu ainda não conhecia o termo “cura gay”. Acho que ninguém conhecia. Não era um assunto tratado pela mídia ou com trânsito na esfera política

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Eu tinha apenas 15 anos quando fui arrastado à força para fora do armário. Não pude optar por permanecer dentro dele até me sentir fortalecido o bastante para sair. De cara, fui levado a um médico. Não a um psiquiatra, mas a um neurologista. Sim, gente: um neurologista. É evidente que o plano traçado para mim era o de alguma espécie de “cura”. Lembro até hoje das palavras daquele médico, com um livro da OMS em mãos: “Desde os anos 1990 a homossexualidade não é considerada uma doença”.

Nunca mais vi esse médico. Não lembro seu nome. Mas, nos últimos dias, tenho lembrado constantemente de suas palavras e do que elas significaram para mim naquele momento. Minha vontade é de ligar para ele e agradecer: “Você não sabe, mas me salvou”.

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Imaginem se eu caísse nas mãos de um charlatão? Ou se existisse em 2003 uma liminar judicial abrindo brechas para supostas terapias de “reversão sexual”?

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Tenho pensado muito nisso na última semana. Não apenas no que aconteceu ou poderia ter acontecido comigo. Mas no que pode estar acontecendo neste momento com um menino gay ou uma menina lésbica de 15 anos. Será que eles terão a sorte de ouvir de um profissional da saúde que “homossexualidade não é doença”? Ou será que irão ouvir que a Justiça agora autoriza a “cura gay”?

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O Samir de 2003 pensaria que estamos vivendo em uma distopia

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A aclamada série “The Handmaid’s Tale” nos alerta que os sinais do retrocesso sempre estiveram presentes, mas que nunca demos importância. Fico me perguntando se em 2003 os sinais de que algum tipo de “cura gay” seria possível em 2017 pairavam no ar. Realmente não sei, estava preocupado demais em sobreviver ao inferno naquela época para notar.

Hoje eu sei. Sei que a ação que resultou no precedente para a “cura gay” foi aberta por uma psicóloga lotada no gabinete de um deputado federal evangélico do DEM. Rozangela Alves Justino trabalha com Sóstenes Cavalcante, que além de parlamentar é pastor da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia – ele mesmo.

O deputado Sóstenes, chefe da psicóloga-missionária que reivindica a “cura gay” na Justiça, diz em seu próprio site pessoal falar diretamente com Deus: “Comigo Deus tem tratos específicos de tempos em tempos para cumprir determinadas missões”.

Hoje eu sei que a seita de Silas Malafaia investe na abertura de centros de reabilitação para dependentes químicos. O que o impediria de inaugurar centros de reabilitação para homossexuais? Se tais tratamentos passarem a ser considerados legais, nada.

O perfil @nadanovonofront no Twitter faz um alerta interessante. Estes centros de reabilitação que pipocam em todo o país possuem convênios com os governos. Ou seja, recebem recursos públicos para tratar de dependentes químicos – já que não há vagas para todos na rede hospitalar ou nos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).

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Imaginem o mercado lucrativo que a “cura gay” pode representar para os rentistas da fé. Nada mais pragmático para setores que aprenderam a ganhar dinheiro a partir do sofrimento

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Um relatório do Conselho Federal de Psicologia aponta as condições degradantes em que os pacientes são tratados nestes centros. O órgão avaliou 68 comunidades terapêuticas em 25 estados e constatou violações graves: “Interceptação e violação de correspondência, violência física, castigos, tortura, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência prévia de exames clínicos como teste de HIV, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências encontradas em todos os lugares visitados”, disse Cláudio Garcia Capitão, que representava o CFP no Conselho Nacional de Saúde em 2015, quando apresentou o estudo.

Aqueles que desejam a “cura gay” já perderam diversas vezes no Congresso. Não conseguiram fazer avançar seus projetos, mesmo em um Congresso absolutamente conservador como o nosso – o que revela o nível de regressão medieval da medida. Por isso apelam à Justiça, onde em algum momento acabariam encontrando um juiz conservador que lhes desse razão.

Eu acredito que podemos mudar essa história. A disputa segue na Justiça e no Congresso, mas a saída não virá das instituições. Virá da nossa organização coletiva e da força da nossa luta. Só assim poderemos deixar de viver neste presente distópico.