Cantinho da Leitura #8 Como abordar a diversidade sexual com as crianças
Geórgia Santos
25 de junho de 2021
No oitavo episódio do podcast Cantinho da Leitura, como abordar o tema diversidade sexual com as crianças. A jornalista Geórgia Santos conversa com Flávia Cunha, jornalista, mestre em Literatura pela UFRGS, produtora editorial de livros infanto-juvenis e colunista do Vós. O Cantinho da Leitura agora tem o apoio da Cia das Letrinhas.
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A gente precisa falar sobre diversidade sexual com as crianças, justamente para que esse tema deixe de ser um tabu
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E também para que os adultos do futuro não caiam em erros recorrentes da atualidade como estereótipos de gênero ou modelos únicos de família. A nossa convidada para comentar o assunto deste episódio é Renata dos Anjos, ativista, coordenadora da ONG Mães pela Diversidade no RS e mãe da Flora, uma mulher cis lésbica.
ALERTA: ESSE TEXTO ABORDA A VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS LGBTQIA+. A INTENÇÃO É DENUNCIAR ESSE CENÁRIO INACEITÁVEL E CONTRIBUIR PARA QUE A SITUAÇÃO ATUAL SEJA MODIFICADA. PORÉM, PODE PROVOCAR GATILHOS EM QUEM JÁ PASSOU POR ESSE TIPO DE SITUAÇÃO.
QUANDO O LAR NÃO É SEGURO
O senso comum costuma nos fazer associar o conceito de lar a um ambiente seguro e confortável, um espaço onde podemos nos refugiar da vida lá fora e, no momento atual, nos protegermos do perigo da proliferação do novo coronavírus. Mas não é para todo mundo que é assim. O distanciamento social de amigos e a convivência intensa com familiares podem ser dolorosos para pessoas LGBTQIA+. Pesquisas recentes apontam aumento da violência doméstica provocada pela homofobia e transfobia no Brasil nos últimos meses. Um cenário de vulnerabilidade, infelizmente, não é novidade para essa parcela da população, oprimida pela heteronormatividade e pelo machismo. Para quem quer entender melhor essas existências, sugiro a leitura do livro Contos Transantropológicos, da escritora, professora e filósofa Atena Beauvoir.
TRANSIÇÃO DE GÊNERO
Atena denuncia em sua obra uma dura realidade, como no conto Uma verdade de mulher, no qual é exposta, de forma contundente, a repulsa paterna à transição de gênero do filho:
“Olga começou sua transição de gênero, do socialmente masculino morto para o feminino vivo, do garoto que nunca era para a garota que sempre se fazia ser a si mesma. Ela estava radiante. Já havia terminado o ensino médio e completava 18 anos naquele sábado. Resolveu, portanto, divulgar para toda família que seu nome real era Olga e que sempre sentiu em si, a garota que sempre esteve presente em seu ser. […]
E no primeiro minuto de sua presença, Olga recebe um soco da vida. Ou melhor de seu próprio pai. Ninguém imaginaria que aquele soco iria mudar o rumo inteiro da família. Olga foi levada prontamente para o hospital por um casal de primos. Sua mãe chorava em casa tentando acalmar o pai que guardava seus pertences em uma mala. Gritava que aquele traveco não era seu ?lho. Que não viveria sob o mesmo teto que um veado endemoneado que fazia-o passar vergonha na ?rma. A mãe de Olga pedia perdão, como todo o peso e a culpa da maternidade produzindo um ser defeituoso, ela se empunha a responsabilidade por tal desvio de caráter do primogênito. Não houve retorno. O soco rachou profundamente as estruturas da família. O símbolo da violência produzia um ar ressoante de guerra instaurada. A face da aniversariante também foi rachada. O soco imortalizou na alma de Olga, que sua embarcação existencial havia partido do porto.”
EMPATIA E RESPEITO
No posfácio da obra, Atena explica que escreveu o livro pensando nas pessoas cisgêneras, que precisam conhecer outras realidades para, assim, desenvolverem mais empatia e respeito às diferenças:
“Não é um livro escrito para pessoas trans. Essas sabem sobre tudo o que está escrito. Não sabem no sentido do texto posto, mas do contexto exposto. Esse livro é para pessoas cis. Essas desconhecem o universo ontológico da existência inexistente. Sempre são o que são, pois nasceram assim: existências dadas. E as aceitaram. Onde quer que se diga – Eu sou trans – será entendido como uma inexistência da construção da nova existência. E as estruturas históricas sempre trarão ao nosso redor o esforço de nos fazer sentir que devemos viver o que não vive e nunca viveu em nós. Enquanto escrevo esse posfácio, lembro do início da minha transição de gênero e o quanto foi angustiante. Sangrei até esvaziar o conteúdo de uma existência. Agora gero meu próprio sangue para dar forma e força ao novo corpo existente. Só existe liberdade na existencialidade do ser.”
O livro Contos Antropológicos pode ser adquirido direto com a autora.
MÃES PELA DIVERSIDADE
Além da leitura, recomendo que vocês sigam nas redes sociais o projeto Mães pela Diversidade, um coletivo criado em São Paulo, em 2014. Assim o grupo se apresenta, em uma postagem recente:
“ […] fruto de um encontro espontâneo de mães e pais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais de todo o Brasil, preocupados com o avanço do fundamentalismo religioso, a insegurança jurídica, o preconceito e a violência contra a população LGBTQI+. Além disso, o grupo luta pelos direitos civis de seus filhos e filhas.
A princípio, funcionou como um grupo informal de encontro, mas, com o crescimento e necessidades crescentes de controle e compromissos, o grupo passou a adquirir identidade jurídica. Trata-se de um movimento político suprapartidário que tem por objetivo trabalhar em prol dos direitos civis de nossos filhos.”
Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro
Samir Oliveira
20 de novembro de 2019
Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.
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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?
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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.
O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.
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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.
Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.
A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil.
Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.
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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.
Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.
OUÇA Bendita Sois Vós #31 Crivella e Bolsonaro, sem livros e sem pesquisa
Geórgia Santos
14 de setembro de 2019
No Bendita Sois Vós desta semana, censura e atraso. Enquanto o governo federal de Jair Bolsonaro corta mais de 5mil bolsas de pesquisa de pós-graduação, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella – não sozinho – censura livros com temática LGBT sob o argumento de proteção às crianças.
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Bolsonaro e seus asseclas não gostam de livros, pesquisa ou conhecimento
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Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. A edição é da jornalista Evelin Argenta.No quadro Sobre Nós, a diretora Raquel Grabauska traz a palavra de Cassandra Rios, a escritora mais censurada do Brasil.
O filme mais lindo do mundo fala de um tempo em que beijar era feio. Bem, o era para o vigário do povoado siciliano de Giancaldo, em uma Itália no pós-Guerra. Padre Adelfio fazia com que o projecionista Alfredo cortasse todas as cenas de beijo de qualquer filme que assistisse – porque como todo bom censor, ele via, previamente, a tudo o que os outros seriam impedidos de ver. Usando a hipocrisia que provavelmente o excitava como cortina, além dos beijos, censurava seios e pernas expostas. E fazia o mesmo com tudo que considerasse impróprio. Por motivos menos aleatórios e a mais a serviço de uma agenda moralizadora da Igreja Católica.
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Mas não há censura que impeça a curiosidade de um menino. Totò, o protagonista de Cinema Paradiso (1988), ficava escondido atrás das cortinas, engalfinhado em veludo vermelho que, a mim, parecia cheirar mofo, e testemunhava todos os beijos,
todas as “indecências”,
todas as “imoralidades”
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Os olhos do guri de seis anos brilhavam. Não pela mesma safadeza do Padre Adelfio, mas pelo cinema. Era o cinema que o encantava. Tanto que ele queria levar os beijos para casa. E os seios, as pernas, os tiros, as brigas, as indecências e as imoralidades. Mas Alfredo não deixava.
Eu sei que parece uma contradição eu afirmar que o filme mais lindo do mundo esconde beijos. Eu sei. Mas no filme mais lindo do mundo, os beijos vencem no final.
O conto de Cinema Paradiso aconteceu, de certa forma, no Brasil. O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, também não gosta de beijos. Ele não é o padre Adelfio, mas o bispo evangélico ficou escandalizado com o romance gráfico Vingadores, A Cruzada das Crianças, da Marvel. A obra estava disponível na Bienal do Livro e conta a história do casal Wiccano e Hulking. Dois homens. Que se beijam.
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Como eu disse, Crivella não gosta de beijos e determinou que a obra fosse retirada das prateleiras
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Em vídeo publicado no Twitter, o prefeito disse que “livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e um adesivo do lado de fora avisando o conteúdo” e que tudo fora feito para “proteger as crianças”. Assim, em 2019, bem distante de Giancaldo ou do pós-guerra, beijos foram proibidos na Bienal. Um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública (sim, isso existe) percorreu os estandes da feira para recolher exemplares “com cenas impróprias a crianças e adolescentes.” De forma aleatória. Igual ao padre Adelfio. Igual a qualquer censura.
O youtuber Felipe Neto reagiu ao obscurantismo e distribuiu, gratuitamente, mais de 10mil obras com temática LGBT durante a Bienal do Livro no Rio. Adequadamente, as publicações estavam envolvidas em plástico e um adesivo do lado de fora:
“Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.”
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Assim como em Cinema Paradiso, os beijos venceram. Mas isso não é um filme, isso não é o final. O Brasil é governado pelo Padre Adelfio.
Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho
Samir Oliveira
15 de julho de 2019
Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas.
Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.
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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.
A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.
Foto: Julian Kettermann (Divulgação)
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Tradicionalismo e discriminação
A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.
Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.
O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.
Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.
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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.
Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.
Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.
A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.
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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.
Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!
No Bendita Sois Vós desta semana, os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol falam sobre os seis meses do governo de Jair Bolsonaro. Um período bastante turbulento e de muita disputa política. Após três meses, apenas, Bolsonaro já tinha a pior avaliação entre presidentes de primeiro mandato da história do período democrático.
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Foram seis meses de muitas mudanças no primeiro escalão, decretos e mais decretos, declarações polêmicas e gafes múltiplas
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Um governo marcado pela proximidade inegável com milicianos e que tem à frente um presidente com filho senador investigado. Sem falar no desmonte da educação; o ministro Sérgio Moro sob pressão da Vazajato e com o pacote anticrime congelado; e um Congresso rebelde.
Para discutir a performance do governo nas mais diversas áreas, o podcast traz os depoimentos do cientista político Augusto de Oliveira; do especialista em segurança pública Marcos Rolim; da professora Jananína Maudonett, especialista em educação e movimentos sociais; e ainda dos jornalistas Airan Albino, ativista do movimento negro; e Samir Oliveira, ativista da causa LGBT.
No Sobre Nós, inspirados na discussão sobre a Reforma da Previdência, um dos temas mais importante do planalto, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem A Velhice de Simone de Beauvoir e O Velho e o Mar de Ernest Hemingway.
Vivemos tempos difíceis no Brasil para os sonhadores e para aqueles que desejam viver de acordo com seus próprios anseios. Em nome de uma suposta liberdade de expressão, cada vez saí mais do armário o preconceito e o ódio contra a comunidade LGBTQ+.
E é por isso que aguardo com grande expectativa o julgamento no STF de duas ações pedindo a criminalização de atos de homofobia. Há quem diga que é “mimimi” (a expressão mais usada por pessoas sem empatia). Há também aqueles que consideram que o assunto é “menor” perante as dificuldades financeiras e sociais enfrentadas pelo povo brasileiro.
Porém, para termos uma sociedade mais humana e menos violenta, é preciso, sim, que homofóbicos entendam que estão errados. Compreendam que não existe “moral e bons costumes” que justifiquem bater em um casal do mesmo sexo que esteja se beijando em público, por exemplo.
Uma pesquisa recente aponta a morte no Brasil, em 2017, de 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais por crimes motivados por homofobia. E isso é muito grave e passa pelo preconceito pelo diferente e o medo de alguém da família “virar” gay.
Um livro muito sensível sobre o assunto é Um Milhão de Finais Felizes, de Vitor Martins. Apesar do gênero ser young-adult (para jovens adultos), a história de Jonas, o pós-adolescente que enfrenta o preconceito da família religiosa e encontra o amparo dos amigos, vai agradar a todos que tiverem alteridade e gostarem de um enredo que mescla momentos tristes com doses de humor.
Nos agradecimentos, o autor dirige-se diretamente aos leitores, no trecho que reproduzo a seguir, na esperança de que cada vez mais pessoas desenvolvam o entendimento sobre quem é diferente:
Eu espero que, de alguma forma, a história de Jonas tenha sido especial para você. Principalmente se você se identificou com a jornada do garoto que, infelizmente, não recebe amor e aceitação dentro da sua própria casa. Se você está passando por isso espero que Um milhão de finais felizes tenha te ajudado a acreditar que, em breve, vai ficar tudo bem. Dias ruins, infelizmente, vão existir, mas você não está sozinho. Nós somos uma família.
E se você nunca passou por nada parecido, mas quer ajudar, busque casas de acolhimento LGBTQ+ no seu estado e doe como puder. Doe dinheiro, tempo ou compartilhe informações nas redes sociais. O Brasil é um país cruel demais com quem nasceu diferente, mas, juntos, nós temos muita força.
E os finais felizes que a gente tanto quer são apenas o começo.”
O primeiro livro de Vitor Martins, Quinze Dias, também trata sobre aceitação e sexualidade. Um assunto que pode ser incômodo para os mais conservadores, mas que o autor aborda com leveza e lirismo.
Esse texto é uma homenagem à Parada Livre de Porto Alegre (RS), realizada no dia 18 de novembro, sem apoio do poder público e com forte teor político.
Foto de capa: Dani Montano
Fotos da Parada Livre POA: Dani Montano e Instagram do evento
Um sentimento muito forte de medo tomou conta de boa parte da população LGBT após a vitória de Jair Bolsonaro. Não é para menos. Os ódios mobilizados pelo presidente eleito fizeram desaguar o esgoto da internet. Não foram poucos os comentários celebrando a abertura de uma temporada de caça a homossexuais, pregando a morte de bichas ou até mesmo a criação de grupos de extermínio.
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Eu estou com medo. Meus amigos estão com medo. Especialmente aqueles que, assim como eu, integram a sopa de letras da comunidade LGBT
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As horas seguintes ao resultado das urnas foram de pavor. Os foguetes nas ruas pareciam comemorar o nosso fim. Em muitos lugares se ouviu barulho de tiros. Abriram a Caixa de Pandora e agora as manifestações de ódio correm soltas à luz do dia.
É impossível não ficar com medo. Mais do que impossível, é imprudente. O medo é um instinto natural de preservação. Não temos que lutar contra o medo. Temos que lutar apesar do medo. Ainda estamos elaborando o luto de uma eleição devastadora, em que o autoritarismo toma de assalto a democracia pela porta da frente, sem derrubar um prego.
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Precisamos entender como foi que chegamos até aqui. Este é o primeiro passo.
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Em seguida precisamos construir redes de acolhimento e espaços seguros para reuniões, encontros e diálogos. A organização da resistência passa também pela organização de cada um de nós, seja em partidos, em entidades da sociedade civil, em associações, em coletivos movidos por causas específicas. Cada espaço conta. Cada pessoa conta.
Ninguém pode ficar para trás. Este é o segundo passo. O terceiro passo é a nossa ação nas ruas. É lá que se dará o enfrentamento mais duro à política de Bolsonaro. É nas ruas que combateremos o ódio. E a comunidade LGBT tem seus próprios métodos para isso, sendo as paradas do orgulho a principal demonstração de força, de amor, de combatividade e de resistência diante daqueles que desejam a nossa volta ao armário.
O Rio Grande do Sul vai ter uma agenda intensa de paradas LGBTs neste final de 2018. A principal delas sem dúvida é a 22ª Parada Livre de Porto Alegre, que ocorre no dia 18 de novembro, na Redenção. Tradicionalmente o evento leva pelo menos 30 mil pessoas todos os anos para as ruas. O lema desta edição não poderia ser mais crucial: Resistir para não morrer.
Teremos pelo menos mais oito paradas até o final do ano. A maioria delas já possui data definida: Cachoeirinha (04/11), Sapucaia (11/11), Santa Maria (18/11), Porto Alegre (18/11), Caxias do Sul (25/11), Esteio (02/12), Pelotas e Rio Grande. A comunidade LGBT tem estado, junto com as mulheres, na linha de frente da resistência. Para nós, é uma questão de sobrevivência. Cada uma destas paradas deve ser um grito potente contra o projeto autoritário e intolerante de Bolsonaro. Estamos apenas começando. Onde querem armário, demonstraremos orgulho!
É isso mesmo, vocês não estão lendo errado. Hoje, nesta coluna, eu quero agradecer a todos os intolerantes de plantão, especialmente ao candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro, do PSL. Graças a ele a Companhia das Letras vai reeditar um livro que há anos estava esgotado no Brasil. Trata-se de Aparelho sexual e cia. O ataque que o candidato recebeu é inaceitável, porque coloca a disputa política no nível mais primitivo de enfrentamento. Bolsonaro e seus apoiadores estão aprendendo da pior maneira possível que adotar a violência como forma de fazer política é uma via de mão dupla. Este episódio, que rebaixa ainda mais a política brasileira – quando pensamos que isso não seria possível -, não muda a forma como o candidato do PSL vê o mundo, o que diz ou pensa. Pelo contrário: mesmo após ter sito vítima de violência, Bolsonaro segue incentivando o ódio, posando para fotos no leito do hospital fazendo referência a armamentos e tiros.
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Bolsonaro é um mentiroso contumaz
Mente sem sentir
Mente sem corar
Mente em rede nacional a quem quiser ouvir
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E o desespero de um Brasil em pedaços leva muita a gente a lhe dar ouvidos. Uma mentira recente foi dita em entrevista ao Jornal Nacional, quando apresentou o livro Aparelho sexual e cia como parte do suposto “kit gay” que seria distribuído nas escolas durante o governo de Dilma Rousseff. Esta mentira tem tantos lados que não sei nem por onde começar a desmentí-la.
O fato é que a menção ao livro resgatou sua popularidade, colocou a autora nos holofotes e fez com que a Companhia das Letras decidisse reeditá-lo. Por isso eu digo: obrigado, Bolsonaro. Desta vez, suas mentiras ao menos tiveram alguma utilidade.
O livro foi escrito pela francesa Helene Bruller e lançado em 2007 no Brasil. É uma obra publicada em mais de dez idiomas e com mais de 1,5 milhão de exemplares vendidos no mundo inteiro. A própria autora já declarou, em entrevista à Folha de São Paulo, que o pequeno Jair teria adorado o livro em sua juventude. Mas o jovem Jair não leu este livro. E o adulto Bolsonaro deu um tiro no próprio pé ao espalhar mentiras a respeito da obra.
O Ministério da Educação vem reafirmando, desde 2013, que nunca colocou este livro nas escolas. Aliás, o projeto de combate à homofobia nunca esteve voltado a crianças de seis anos de idade, como mente Bolsonaro. E, lamentavelmente, não saiu do papel porque Dilma Rousseff cedeu às pressões da bancada fundamentalista no Congresso. Em uma declaração profundamente infeliz, a presidente disse, à época, que não cabe ao governo fazer “propaganda de opção sexual”.
Enquanto a velha esquerda se acanha e a nova direita avança, seguimos sem uma política nacional de combate à LGBTfobia nas escolas. Seguimos sendo o país que mais mata LGBTs no mundo. Seguimos expulsando jovens trans das salas de aula e empurrando essa população para as esquinas da noite. Seguimos apostando em muros ao invés de erguer pontes. Menos mal que, agora, os pais verdadeiramente preocupados com a educação sexual de seus filhos poderão comprar Aparelho sexual e cia na livraria mais próxima. Algo me diz que será um campeão de vendas. Um recado silencioso e potente de um Brasil que ainda resiste, apesar de tudo.