Samir Oliveira

Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho

Samir Oliveira
15 de julho de 2019

Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas. 

Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.

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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.

A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.

Foto: Julian Kettermann (Divulgação)

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Tradicionalismo e discriminação

A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.

Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.

O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.

Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.

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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.

Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.

Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.

A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.

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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.

Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!  

Raquel Grabauska

Como assim, meu filho não pode ter tudo?

Raquel Grabauska
17 de novembro de 2017

A gente sempre quer o melhor para os filhos. Uma boa escola, que seja bonito, inteligente, se dê bem com os amigos, que tenha uma profissão interessante, seja bem resolvido. Ih, tantos quereres.

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Daí tem a vida. E faz coisas que não são o que queremos. E a gente tem vontade de brigar. E tem vezes que a gente briga mesmo. 

Só que

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Nossos filhos vão ter suas decepções. E não serão poucas. Como nós também temos. Não precisavam ser tantas, mas elas estão aí e continuarão por aí. Tenho pensado bastante nisso. O que me fez pensar mais, foi um fato que aconteceu há alguns dias. Organizei um evento num espaço privado. O espaço é pequeno. Tínhamos um número limitado de ingressos. Os ingressos foram vendidos antecipadamente e esgotaram antes do evento.

No dia, chegou uma família sem ingressos bem na hora que ia começar. Eu disse que não teria como deixá-los entrar, pois já estávamos com a capacidade máxima. Mas como era o início e as pessoas ainda estavam chegando, eles poderiam entrar, ficar uns 15 minutos e sair depois, sem custo. Pensei em suavizar um pouco, para não deixar a família e principalmente a criança, tão frustrados.

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A mãe ficou bem chateada. Me deixou bem claro que não tinha gostado e que não teria vontade de voltar outro dia. Fiquei chateada, pois queria que entrasse, não queria deixar a criança ir embora frustada… Foram

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Um tempo depois chegaram mais duas famílias. Mesma situação. Pressão. Aí a festa já havia começado e a casa estava bem cheia. Expliquei. Não adiantou. Expliquei de novo. Nada. A mãe das crianças me disse que eram só duas crianças. Expliquei que antes dos filhos dela, já havia dito não para vários outros e que seria injusto deixaá-los entrar, já que outros também não entraram. E todos que ficaram de fora não entraram apenas porque não tinha lugar.

Expliquei que quem havia comprado seu ingresso deveria estar seguro e confortável, que deveria ter lugar para as pessoas aproveitassem o evento. Que é claro que eu queria atender o maior número de pessoas, afina, isso divulga meu trabalho, é renda, é super positivo. Mas que eu tinha responsabilidade, que precisava zelar pela segurança e pelo conforto de quem já estava.

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Ela me ouviu. Pegou seu celular e começou a tirar fotos dizendo que ia falar mal, que havia sido barrada. Isso durou em torno de 40 minutos. As crianças assistindo

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Me passaram tantas coisas pela cabeça. O que estamos ensinando para nossos filhos? Como lidar com a frustração? O que fazer se o mundo não parar porque tu quer? O que fazer se acabou o sorvete de morango e só tem o de chocolate? Ou o contrário? Ou? Ou? Problemas vamos ter sempre. O que nos faz crescer é a forma de lidar com eles.

Ontem assisti um episódio de Charlie e Lola, um desenho que adoramos. A Lola estava muito frustrada porque não conseguiu entrar no cinema para assistir o “Super gato”e a sessão estava lotada. Adivinha do que lembrei?

 

https://www.youtube.com/watch?v=rSb3Hogj_84

Raquel Grabauska

Dar o exemplo/ser o exemplo

Raquel Grabauska
25 de agosto de 2017

Dia desses aconteceu uma situação tensa. Uma mãe estava indo buscar seus dois filhos.  Para não atrapalhar o trânsito, ela resolveu colocar o carro parcialmente na calçada. Não atrapalhou o trânsito, mas atrapalhou demasiadamente uma vizinha  que passava em frente ao local nesse momento.

A vizinha sinalizou que aquilo estava errado. A mãe disse: é rapidinho, só vou pegar as crianças.Nisso, aquela pacata vizinha virou um leão e fez um super discurso: ela também tem uma filha. E quando não tem vaga, estaciona na outra quadra.

As duas discutiram acirradamente. Foram embora nervosas. As pessoas que presenciaram a cena, tomaram partido da mãe.

Ao saber da história, eu pensei: mas a vizinha tá certa. Todas as justificativas da mãe faziam sentido. Mas a vizinha estava certa.

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E se passasse um cadeirante? E se passasse alguém com um carrinho de bebê? E se todos quisessem fazer a mesma coisa? E se passasse uma vizinha que gosta de fazer as coisas bem de acordo com as regras? Eram tantos “e se”…

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Encontrei a mãe no outro dia. Perguntei o que tinha ocorrido, pois só sabia da história contada por outros. A primeira coisa que ela me disse foi: eu fiz errado. Ela me emocionou tanto com essa fala! Porque é assim mesmo. Todos temos os nossos motivos particulares. Mas fazemos parte de um todo. E se cada um conseguir respeitar um pouquinho o todo, ai, que bom seria.

Estava eu nesses pensamentos, no quanto admirei a reflexão dessa mãe, quando passou a vizinha e fomos conversar. Ela me disse: fiquei mal, não precisava ter falado com ela daquele jeito.

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Bom, daí quase fui aos prantos, mesmo. Duas pessoas passaram por uma situação de conflito, se exaltaram, se desgastaram… E pensaram a respeito. E refletiram. E conseguiram enxergar uma à outra.

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O argumento da mãe tinha sido: só vou pegar as crianças.

A vizinha respondeu: que belo exemplo tu tá dando pros teus filhos!

Isso foi no auge da briga. Passado tudo isso, digo: que belo exemplo que essas duas deram para os seus filhos. E para mim. E para todos nós.