BSV Especial Coronavírus #15 O novo levante antirracista
Geórgia Santos
29 de junho de 2020
Neste episódio mais do que especial, discutimos o novo levante antirracista que, esperamos, desperte consciências pelo mundo.
George Floyd disse que não conseguia respirar enquanto era asfixiado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos. O assassinato de mais um homem negro pela polícia despertou alguns dos maiores protestos que os norte-americanos viram em muito tempo. E o levante chegou até aqui.
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Os brasileiros saíram às ruas, sim, em meio a uma pandemia, porque precisam gritar que o racismo é inadmissível. Saíram às ruas porque aqui também jovens negros são mortos pela polícia
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Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dos mais de 6 mil registros de mortes por intervenções policiais entre 2017 e 2018, mais de 75% eram de pessoas negras. Sendo que no Brasil esse grupo represente 56% da população, segundo o IBGE. Mas essa é só uma faceta do racismo no Brasil. Afinal, como diz a autora e filósofa Djamila Ribeiro no livro Pequeno manual Antirracista, o que está em questão não é um posicionamento individual, mas um problema estrutural.
Talvez as mobilizações por aqui não tenham tido, nas ruas, o mesmo porte das manifestações do Estados Unidos, mas trouxeram a luta antirracista pra o centro do debate.
O jurista e filósofo Silvio Almeida, autor do livro Racismo Estrutural, foi entrevistado no programa Roda Viva e explicou que o racismo é parte da estrutura da nossa sociedade e não pode ser pensado de forma isolada. Isso significa que se gritamos que vidas negras importam, precisamos encarar o problema do racismo de frente. Entender que o racismo não necessita de intenção para se manifestar. E entender, que, principalmente, o silêncio torna nos torna ética e politicamente responsáveis pela manutenção do racismo.
Por isso a gente vai falar, sim, sobre racismo, sobre as nuances do racismo no Brasil e sobre, é claro, a luta antirracista. Participam os jornalistas Geórgia Santos e Airan Albino. Também há uma entrevista com o jornalista e pesquisador Wagner Machado, que fala sobre como o negro é retratado ou inviabilizado na televisão brasileira, seja no entretenimento ou no jornalismo. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
“Se os velhos manifestam os mesmos desejos, os mesmos sentimentos, as mesmas reivindicações que os jovens, eles escandalizam. […] A imagem sublimada deles mesmos que lhes é proposta é a do sábio aureolado de cabelos brancos, rico de experiência e venerável. Se dela se afastam, caem no outro extremo: a imagem que se opõe à primeira é a do velho louco que caduca e delira e de quem as crianças zombam.”
A Velhice, de Simone de Beauvoir
É raro haver tanto destaque nos noticiários a respeito dos idosos como está acontecendo nesse momento de pandemia. O motivo não é positivo. Uma das razões – a mais grave – é o fato de pessoas acima de 60 anos estarem dentro do grupo considerado de risco entre os pacientes do coronavírus. Mas o fato de supostamente o vírus ser mortal apenas para idosos e pacientes com doenças preexistentes fez com que o presidente Jair Bolsonaro e parte dos grandes empresários minimizassem a importância do isolamento social horizontal e defendessem o chamado isolamento vertical (que colocaria novamente os mais velhos na berlinda, sendo eles que deveriam ser apartados do convívio com os jovens, que teriam menos risco ao se infectar). Os fatos vem contrariando a hipótese defendida por bolsonaristas. Informações divulgadas pela imprensa apontam que a proporção de mortos com menos de 60 anos era de 11% em 27 março e subiu para 25% nos últimos dias.
IDOSOS ALVO DE MEMES
Além disso, logo que começou a recomendação de isolamento social, supostamente os idosos seriam os mais resistentes ao fato de não poderem sair de casa. O estereótipo do velho infantilizado e sem capacidade intelectual para compreender a gravidade da situação generalizou-se como regra, inclusive em memes na Internet.
Mas será que somente idosos estão entre os negacionistas? As imagens dos noticiários e redes sociais mostrando pessoas nas ruas revelam diferentes faixas etárias, incluindo jovens famílias com filhos pequenos. Parece que o grave problema de saúde pública que estamos vivendo gerou, mais uma vez, o preconceito com os mais velhos.
TODAS AS VIDAS IMPORTAM
Simone de Beauvoir já alertava para o “silêncio” relacionado aos idosos no livroA Velhicepublicado em 1970, como se eles estivessem fora da humanidade. Cinquenta anos depois, no Brasil, podemos observar a relativização da importância das mortes dos mais velhos devido ao coronavírus, como se algumas vidas valessem menos do que outras. Simone observa uma tendência a enxergar os idosos como um refugo, principalmente quando não são mais economicamente ativos:
“Os velhos que não constituem nenhuma potência econômica não dispõem de recursos para fazer valer seus direitos: os empresários têm todo interesse em destruir a solidariedade entre trabalhadores e inativos de modo que estes não sejam defendidos por ninguém.”
A reforma da Previdência e a tendência a considerarmos os aposentados um fardo a ser carregado pelos trabalhadores é outra falácia a ser combatida no Brasil do século 21. Simone de Beauvoir já alertava para esse fato lá na década de 1970. Agora, em um 2020 transformado por uma pandemia, é necessário revisarmos os valores vigentes. E o amor, a compaixão e o respeito aos mais velhos precisam ser colocados em prática, em uma visão mais humanista que precisamos desenvolver em um momento tão difícil.
ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS DO FILME BACURAU!
Bacurau tem dado o que falar. Premiado em festivais internacionais e com um público expressivo para uma produção brasileira, o longa-metragem distópico também virou sucesso na Internet, com muitos memes e menções ao filme nas redes sociais.
Mesmo assim, enfrenta críticas de parte de seus espectadores, que não embarcaram no enredo que mistura gêneros, possibilita alegorias políticas e não tem um protagonista definido, apesar da atuação marcante de uma atriz do porte de Sônia Braga. Eu não sou crítica de cinema e nem pretendo me aventurar aqui nessa seara, mas farei algumas comparações da história com a literatura, defendendo a ideia de que o grande protagonista dessa história é o povo nordestino e, por isso, a falta de protagonismos se justifica.
Acredito que existam na trama destaques para figurantes, como o menino que responde que quem nasce em Bacurau “é gente” ou à senhorinha que reage com um impagável “Que roupa é essa, menino?” ao deparar com o retorno à cidade do anti-herói queer Lunga e suas vestimentas chamativas. Os moradores de Bacurau são orgulhosos de sua origem, mas percebem o preconceito de forasteiros. Esses personagens inclusive tentam se mostrar superiores, em diálogos marcados por xenofobia com os atiradores norte-americanos.
Dentro desse contexto de análise da figura dos residentes do sertão nordestino no universo ficcional literário, recorro primeiramente àVidas Secas, de Graciliano Ramos. Esse talvez seja o arquétipo que justificaria a escolha de Bacurau para o safári humano promovido pelos americanos. Imaginando que encontrariam homens fracos e conformados com seu destino, como o Fabiano do clássico de Graciliano:
Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas. as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: — “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.” Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza.”
Mas acredito que os moradores de Bacurau estejam mais para os nordestinos descritos por Euclides da Cunha, em Os Sertões, na famosa citação: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. O autor não deixa, porém, de demonstrar seu preconceito, ao fazer comentários depreciativos:
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente.”
Ao avançar na narrativa, Euclides da Cunha revela sua percepção de que, em situações de conflito como a que está narrando, a Guerra de Canudos, o nordestino demonstra uma força extraordinária:
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”
É esse despertar de forças criado pela resistência e união dos habitantes da cidade diante dos inimigos estrangeiros que considero o grande mérito de Bacurau. E, apesar de um de seus diretores, Mendonça Filho, declarar que não existe uma mensagem por trás do filme, fica difícil não vibrar com a mobilização perante uma situação de crise. Os moradores da pequena cidade resistem bravamente, assim como os poucos sobreviventes da Guerra de Canudos (uma criança, um velho e dois adultos). No filme, ainda sobra a catarse perante a classe política brasileira, na vingança contra o patético prefeito Tony Jr., desdenhado pelos moradores desde o começo do enredo.
Definitivamente, o sertanejo é um forte em Bacurau.
Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho
Samir Oliveira
15 de julho de 2019
Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas.
Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.
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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.
A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.
Foto: Julian Kettermann (Divulgação)
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Tradicionalismo e discriminação
A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.
Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.
O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.
Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.
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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.
Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.
Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.
A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.
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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.
Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!
Valéria Custódio é uma jovem cantora e compositora de Mogi das Cruzes (SP) que tive a felicidade de conhecer durante minha atuação na área de produção cultural. A Valéria veio a Porto Alegre para um show e eu a acompanhei em uma entrevista. O curto percurso de ida e volta até a FM Cultura e alguns minutos nos bastidores da rádio antes de ela entrar no ar foram suficientes para eu admirá-la como ser humano. Depois, a ouvi cantando. A voz impressiona. E a precisão ao tocar violão demonstrou, para mim, que ali estava uma artista completa.
E quando eu soube que o nome do EP da cantora, que será lançado em julho de 2019, se chamaria Púrpura em homenagem ao livro da escritora norte-americana Alice Walker, decidi convidá-la para escrever sobre essa inspiração que sai da literatura e vai para a música.
Com vocês, Valéria Custódio:
Quando abri o livro, já havia assistido ao filme A Cor Púrpura. E não foi um livro fácil de ler, embora a escrita seja bem dinâmica.
Como já conhecia o enredo, sabia que a história era muito emocionante e verdadeira. E talvez, pelo fato de ser uma mulher escrevendo, o livro me tocou ainda mais. Agora observando melhor e revisitando as ideias que tive, vejo como essa história foi um divisor de águas gigantesco na minha vida.
Primeiro pela questão racial, é claro. Me ajudou a não ter uma atitude tão impulsiva nas discussões sobre preconceito, mas mais pensada. Fui realmente querer saber quais eram as minhas origens e das minhas irmãs. Porque a história do livro fala desse amor infinito entre duas irmãs e isso me tocou muito, pois também sou apaixonada pelos meus irmãos.
A Cor Púrpura eu ousaria dizer que me deu novos olhos e me amadureceu como artista, pois conheci um universo artístico muito maior depois dessa história, além de ter me amadurecido como ser humano, como mulher.
É um livro para a vida toda e com a inspiração que veio dele, eu apresento as minhas canções para o público de uma forma muito honesta e verdadeira, pois eu fui tocada por uma história escrita pela Alice Walker, uma mulher negra, da forma mais verdadeira possível.
O meu trabalho pode nem chegar nela, mas de todo o meu coração eu agradeço pela belíssima obra que ela escreveu.”
Valéria Custódio lançou, na semana passada, o single Pra Você que faz parte do EP Púrpura. Confiram aqui, realmente vale a pena.
Para quem ainda não leu o livro A Cor Púrpura, a obra mostra a sofrida vida de Celie, uma mulher negra, pobre e quase analfabeta no Sul dos Estados Unidos, na primeira metade do século XX. O relato é feito a partir de cartas escritas pela personagem, que sofre abusos sexuais desde a infância. O enredo é tristemente atual, ao abordar temas como racismo, preconceito, desigualdade de gênero e diferenças sociais. O premiado filme de Steven Spielberg foi lançado em 1986.
Quando saiu a notícia na Folha de São Paulo de que o deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, havia desistido de assumir o terceiro mandato e decidido por um auto-exílio em local ignorado no Exterior, meu coração se encheu de tristeza. Minha reação foi de alteridade. Tentar me colocar no lugar de um parlamentar de esquerda, assumidamente gay, que enfrentava há anos hostilidade e ameaças pesadas. Entre meus amigos, multiplicavam-se os comentários de apoio, perplexidade e compaixão.
Mas aí comecei a ver as reações de quem não concorda com Jean. “Não vai fazer falta”. “Já vai tarde.” O escárnio vinha com justificativas ideológicas ou com críticas – sem embasamento – à sua atuação como deputado. Mas sabemos que, em grande parte das vezes, o que existe mesmo é homofobia. Jean afronta os conservadores apenas por existir, como em geral ocorre com a população LGBT no Brasil. Não ser heterossexual parece ser uma ofensa aos cidadãos de bem, que não se constrangem em sair por aí destilando veneno e ódio supostamente em defesa da família, dos bons costumes e da deturpação de preceitos religiosos.
Pessoalmente, considerei o pior comentário o de que as ameaças relatadas por Jean “deviam ser mentira”, mesmo após a execução da vereadora Marielle Franco, do mesmo partido, em 2018 (Marielle, presente!). Me parece que nada disso importa para quem tem o coração endurecido pelo preconceito.
Recorro ao próprio Jean Wyllys, no livro Tempo Bom, Tempo Ruim, de 2014, para tentar entender as causas desse cenário devastador que enfrentamos atualmente.
No capítulo Oriente-se, Rapaz, o agora ex-deputado relata o momento em que abriu o jogo sobre sua sexualidade com a mãe, aos 15 anos, e a reação dela, de ter medo de que o futuro do filho não fosse feliz:
Ela não estava totalmente enganada: num país preconceituoso como o nosso, há uma dificuldade maior para os homossexuais alcançarem a felicidade; todavia, parece-me mais difícil viver na vergonha, fechado no armário. À medida que nos assumimos gays, colocamos em questão a heteronormatividade vigente. Passamos da vergonha para o orgulho, ainda que não definitivamente: há quem se encontre no início desse processo, há quem esteja mais avançado, mas a verdade é que essa passagem nunca se dá por completo. Expliquei à minha mãe que eu era um homem honrado e que ainda lhe daria muito orgulho, independentemente de minha orientação sexual. Depois dessa conversa, a confiança que ela me tinha aumentou, a ponto de transferir para mim a responsabilidade que deveria ser de meu pai — a função de ‘homem da família’.”
Cabe destacar que Jean Wyllys, oriundo de uma família pobre, estudou e chegou ao nível da pós-graduação, conquista alcançada por uma parcela ínfima da população brasileira. Se fosse heterossexual, certamente seria um exemplo de vencedor para a tradicional família brasileira. Mas como foge da norma vigente, é visto como uma ameaça e, por isso, enfrenta tantas críticas nas redes sociais.
Reproduzo na íntegra o capítulo Cultural Digital do Ódio, por considerar que esclarece muito o que acontece atualmente com o próprio autor do livro:
É chocante imaginar que por trás de sites, blogs, perfis de redes sociais e comentários que disseminam o ódio, a intolerância e o desrespeito, pode haver homens e mulheres que se apresentam como ‘gente de bem’ no espaço público, mas que escondem seus esqueletos no armário. Entretanto, o espaço virtual é feito por pessoas; é de se esperar que elas levem para lá também o que têm de pior. Sim, pois racismo e homofobia são manifestações daquilo que alguns homens e mulheres têm de pior: a vontade de negar a humanidade do outro, o desejo de exterminar o diferente. É preciso estar atento aos conteúdos veiculados na internet, porque o que parece uma brincadeira inócua pode ser a base ideológica para um ato criminoso, como tantos que temos visto por aí.
A afirmação, por parte dos homofóbicos, de que a ofensa aos LGBT corresponde ao exercício de sua liberdade de expressão, garantida como um direito, é uma falácia das mais perigosas que há. Viver em sociedade significa abrir mão daquela parte da liberdade individual que ameaça o bem-estar coletivo, ou, dito de maneira simples, há um limite para a liberdade individual e para a liberdade de expressão, que é a preservação do social e da convivência livre entre pessoas diferentes. Ofender uma pessoa por conta de sua orientação sexual ou gênero é ofender a dignidade da pessoa humana, cuja preservação está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhecida pelo Brasil. Claro que, individualmente e num espaço reservado, uma pessoa pode alimentar seus ódios, se assim desejar; porém, ela não pode expressá-los publicamente, ou, se quiser fazê-lo, terá de pagar um preço por isso.”
Espero que Jean Wyllys tenha forças para seguir adiante, mesmo com tantas ameaças a sua vida e a de sua família. “Se fere qualquer existência, serei resistência”, diz uma frase propagada nas redes sociais. É uma comprovação de que a Internet pode ser usada para disseminar amor e nos proteger do ódio. Certamente, não estou sozinha na luta por uma sociedade com menos violência e discriminação, o que me conforta nesses dias difíceis para quem defende os direitos humanos e a igualdade.
Por que as críticas a Pabllo Vittar são tão duras?
Samir Oliveira
4 de janeiro de 2018
Foto: Mídia Ninja
É bem possível que nenhum artista contemporâneo seja tão criticado no Brasil como Pabllo Vittar. Suas apresentações são minuciosamente analisadas. Qualquer deslize vocal torna-se imperdoável. O prazer em desqualificar seu trabalho revela a compulsão obsessiva de seus haters. A caixa de comentários – sempre ela – em qualquer post sobre a artista nas redes sociais e em portais de notícia comprova o que estou dizendo.
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Estou há algum tempo tentando entender esse fenômeno. Não encontrei respostas definitivas, mas tenho algumas hipóteses.
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Primeiramente, busquei no próprio sucesso de Pabllo Vittar a explicação para as críticas. Afinal parece natural que qualquer artista com uma grande base de fãs tenha, também, uma grande base de haters. Mas isso não é totalmente verdade. Caetano Veloso, Chico Buarque, Paul McCartney… Tento pensar em outros artistas com projeção multitudinária e não me recordo de ver nenhum deles gerar uma forte carga negativa de comentários em publicações a seu respeito.
Descartada esta hipótese, passo a focar na técnica vocal de Pabllo Vittar. Não entendo absolutamente nada de música e canto, tecnicamente falando. É claro que consigo identificar quando alguém desafina, quando algo está errado ou um pouco estranho. Mas é só. E Pabllo nunca me soou desconfortável de ouvir. Qual grande artista nunca desafinou, nunca falhou ao tentar atingir determinada nota ou alcançar um tom? Surpreendentemente, todos os haters de Pabllo Vittar tornaram-se críticos musicais de uma hora para outra, especialistas na mais fina análise de técnicas vocais.
https://youtu.be/EmxPMJ7UZ88
O mais recente campo de batalha neste sentido foi provocado por Ed Motta. Com mais de 400 mil seguidores no Facebook e um público cativo, o cantor postou um vídeo de Pabllo interpretando o clássico I Have Nothing, da Whitney Houston, no programa Altas Horas. Ed Motta não economizou elogios: “Eu chorei de verdade vendo porque não imaginava essa musicalidade, timbre lindo nas notas graves e quando atingiu as notas altas foi com propriedade. Depois conferi pelo YouTube que faz tempo que o talento dela é verdadeiro e genuíno”.
O comentário de Ed Motta enfureceu seus fãs, que se viram realmente perplexos e incapazes de entender como o ídolo poderia gostar de Pabllo Vittar. Cumpriram a própria expectativa do cantor, que, mesmo sem conhecer profundamente o trabalho da drag queen, já havia percebido que ela é alvo de críticas desproporcionais: “Muita gente denominada/inventada pelo mercado como ‘artista’ com grandes vendagens, premiações simuladas, não tem um terço da capacidade vocal de Pablo Vittar. Pablo faz um sucesso imenso, mas tem um exército de ódio yang que se incomoda profundamente com o que isso representa na sociedade obediente e engessada”.
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Só me restou uma última hipótese: a do preconceito. Relutei em aceitá-la, de tão óbvia e simples que aparenta ser. Mas é a única explicação plausível
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Veja bem, não estou aqui dizendo que quem não gosta de Pabllo Vittar é preconceituoso e homofóbico. Estou dizendo que preconceituoso e homofóbico é quem se orgulha de não gostar de Pabllo Vittar. Quem gosta de odiar seu trabalho, quem se incomoda com sua projeção e sente uma necessidade incontrolável de demonstrar a todo mundo o quão desconfortável se sente com a existência da artista.
O pior é quando utilizam outros ícones da arte LGBT para camuflar o preconceito. Como se gostar de Renato Russo, Freddie Mercury e Cazuza isentasse qualquer um de ser homofóbico. É o velho e bom “não tenho nada contra, inclusive tenho amigos que são”.
Discussões a respeito da qualidade técnica e artística de produções e agentes culturais são sempre perigosas. Primeiro, porque são extremamente subjetivas. Segundo, porque podem facilmente cair na vala comum do elitismo, que se expressa em todas as ideologias. Enquanto os conservadores de direita opõem uma certa noção elevada de cultura ao que se costuma classificar inferiormente como “cultura popular”, uma esquerda mais ortodoxa não cansa de responsabilizar as superestruturas da indústria cultural pela massificação de produções com suposta baixa qualidade. Um debate deste tipo está condenado a terminar pior do que quando começou.
O que importa é que uma drag queen de fora do circuito Rio-São Paulo, de origem humilde e vinda dos grotões do Brasil, esteja atingindo projeção internacional em sua carreira. No país que mais mata LGBTs no mundo, não é pouca coisa.
Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital
Samir Oliveira
7 de dezembro de 2017
O governo Temer excluiu qualquer menção à palavra “gênero” da nova versão da Base Nacional Comum Curricular. O texto, debatido no Conselho Nacional de Educação, define as diretrizes pedagógicas que as escolas públicas e privadas no Brasil devem seguir em cada disciplina, durante o Ensino Fundamental.
O Conselho é formado por especialistas, profissionais qualificados para estruturar as bases curriculares das escolas. Os conselheiros aprovaram emendas importantes ao texto, incluindo noções de combate à discriminação de gênero em disciplinas como História, Geografia e Ensino Religioso. Todas elas foram ceifadas ao chegar ao gabinete do ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM).
A censura passaria despercebida e sem alarde, já que o governo se negou a fornecer uma cópia do texto à imprensa. Felizmente o conteúdo acabou vindo a público e agora a sociedade civil pode pressionar o governo a voltar atrás. Não podemos aceitar que o mesmo ministro que deu a Alexandre Frota – um estuprador confesso – o status informal de conselheiro agora queira tornar as escolas espaços medievais e desconectados da realidade.
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Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital
E barrar este debate é mais do que uma reação conservadora, é uma estupidez ineficaz
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As crianças e jovens têm acesso a informações e experiências que nenhuma regulação arcaica é capaz de proibir – desde o convívio com os amigos até o contato com as tecnologias de comunicação. A escola é um espaço fundamental de socialização e deve estar orientada para acolher a diversidade.
Estudei a maior parte do Ensino Fundamental em escola pública estadual, no interior do Rio Grande do Sul. Naquela época, entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos anos 2000, não havia qualquer discussão a respeito do bullying. Era muito difícil que se passasse um dia sem que eu sofresse algum tipo de agressão – física, verbal ou psicológica – por ser gay. Naquele momento eu sequer me entendia enquanto gay, mas meu comportamento não correspondia ao que era esperado de um menino, então eu “merecia” ser caçoado.
Gosto de pensar que muita coisa mudou de lá para cá. E, de fato, mudou. Avançamos muito! O problema do bullying nas escolas hoje é levado a sério. O que não quer dizer que não tenhamos que percorrer ainda um longo caminho. A recente expulsão de uma menina trans de 13 anos de uma escola em Fortaleza revela o abismo que se coloca diante de nós.O caminho para superá-lo passa pela inclusão de gênero e sexualidade nas diretrizes curriculares. Chega a ser criminoso compactuar com este tipo de censura no país que mais mata LGBTs no mundo, onde a população trans é a mais vitimada, num ciclo de violência que se inicia com a evasão escolar e o abandono familiar.
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O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de avançar neste tema durante o primeiro mandato do governo Dilma
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O Ministério da Educação, comandado então por Fernando Haddad, havia elaborado materiais didáticos contra a homofobia para distribuir nas escolas. A bancada fundamentalista na Câmara – que fazia parte da base de apoio do PT – ameaçou abandonar o governo caso a iniciativa seguisse adiante. Isso bastou para que nossos direitos fossem rifados e Dilma desse uma de suas declarações mais infelizes ao dizer que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”.
Talvez, se naquele momento o governo Dilma houvesse enfrentado os reacionários, hoje a realidade em nossas escolas fosse um pouco melhor. O abismo não seria tão profundo. Agora Temer não precisa ceder às pressões fundamentalistas, pois seu governo é liderado diretamente por estes setores, que elaboram as políticas e decidem de forma autoritária o que deve ser debatido nas escolas.
A tesoura do ministro Mendonça Filho na Base Nacional Comum Curricular vem acompanhada de projetos absurdos chamados de “Escola Sem Partido” em diversas cidades e estados do país. Até mesmo no Congresso Nacional.
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São iniciativas que desejam, na verdade, colocar uma mordaça sobre a boca dos professores, como se a educação fosse um processo mecânico e neutro, despido de subjetividades
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Em São Paulo, a vereadora Sâmia Bomfim, do PSOL, está na linha de frente contra esta aberração e já conseguiu barrar sua votação uma vez. Como ela mesma disse em um discurso na Câmara dos Deputados: “A geração que ocupou as escolas no final de 2015 e no início de 2016 irá cobrar a conta” de todas as medidas regressivas que tentam colocar em curso atualmente.
Estas tentativas de censurar professores e de obstruir a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas não passam de uma grande cortina de fumaça para que a sociedade perca tempo – e os órgãos públicos escoem dinheiro – neste esforço inútil voltado ao atraso, enquanto o que realmente deveríamos estar debatendo é a qualidade do nosso ensino, as condições de trabalho e a remuneração dos nossos professores e a estrutura de nossas escolas.
Dia 20 de novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra. A data foi escolhida em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), principal referência negra na história do Brasil. Todos nós sabemos disso, do porquê ser feriado em algumas cidades. Entretanto, uma coisa não pode passar batido nessas orações: referência.
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Zumbi é, sim, o primeiro nome em que pensamos quando falamos de negritude no país, mas ele não é um bastião, o único
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Temos muitas referências negras na nossa história e, propositalmente, não sabemos de sua existência. Em conversas com amigos – negros e brancos de diferentes classes sociais – fiquei assustado ao saber do desconhecimento de nomes como Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994). Esses dois foram líderes contemporâneos que tiveram impacto na cultura e política negra brasileira no último século, mas por que não os conhecemos? Ou pior: por que não vamos atrás de suas histórias?
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Porque o racismo age de muitas formas e invisibilizar o negro é uma delas
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Sou de Porto Alegre, nascido e criado, e só em 2015 passei a conhecer eventos de identidade e resistência do povo negro da cidade. Porto Alegre é uma cidade com uma segregação absurda. Todos nós, moradores da Capital, sabemos disso. No momento em que falamos os nomes dos bairros Moinhos de Vento e Restinga, conseguimos enxergar a cor dos moradores. Conseguimos fazer as associações de branco e negro; rico e pobre; central e periférico; bom e ruim; organizado e bagunçado; limpo e sujo. E fazemos isso sem esforço nenhum, “é natural.”
O Dia Nacional da Consciência Negra é um dia para que se reflita em cima de questões como essa, a da invisibilidade. Ele serve para que o debate do racismo seja levado ao maior número de pessoas possível, brancas e/ou negras. Ele serve para pensarmos em formas de mudar essas associações de bom e ruim, no momento em que falamos sobre pessoas brancas e pessoas negras. Ele serve para que as referências negras não sejam esquecidas, mas, sim, estudadas e respeitadas.
E esse momento de reflexão sobre a invisibilidade pode começar em Porto Alegre, uma das cidades mais ricas em cultura e história negra do Brasil. Na cidade que abrigou uma das maiores referências negras do país: Oliveira Silveira (1941-2009). Na cidade em que se iniciou o movimento e o projeto para que o 20 de novembro fosse escolhido como o dia da nossa consciência negra.
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*Na foto, Oliveira Silveira, poeta, militante do Movimento Negro e um dos líderes da campanha pelo reconhecimento do Dia Nacional da Consciência Negra (Divulgação)
O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, traz consigo uma série de debates a respeito do racismo no Brasil. A população LGBT negra está entre a mais vulnerável em nossa comunidade. Para refletir sobre essas questões, convidei o jornalista e militante do coletivo Juntos, Fernando de Oliveira Lúcio, a escrever um texto para a coluna Igualmente. Fernando foi coordenador do Projeto Purpurina, em São Paulo, e foi homenageado, em 2016, pela Associação da Parada LGBT de São Paulo, por seu documentário “Princesas Impossíveis”, sobre as vidas de travestis e transexuais.
Samir Oliveira
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Por Fernando de Oliveira Lúcio
A Semana da Consciência Negra se aproxima em um momento bastante oportuno, com discussões acerca de raça e discriminação pautando os veículos midiáticos. Enquanto militante negro e gay, que reivindica a luta do povo trabalhador com a mesma intensidade do combate a todo tipo de preconceito, enxergo agora um momento de importante reflexão para a chamada “esquerda identitária”. Quais serão nossos rumos daqui para frente?
Há pouco mais de uma semana, a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois vem inflamando ânimos com sua reivindicação por um salário maior que os atuais 33 mil reais. Em sua defesa, define-se como uma “escrava”, oprimida por uma sociedade racista e machista. Não contente com a controvérsia anterior, Luislinda voltou a se comparar ao povo desfavorecido há dois dias, quando declarou ser uma mulher “preta, pobre e periférica”.
São inegáveis os avanços no debate sobre opressão nas últimas décadas. Nossa sociedade já não tolera que âncoras jornalísticos desdenhem das “coisas de preto” sem uma reação negativa em massa, forçando a emissora a suspendê-lo. Tampouco aceitamos que se tente patologizar a homossexualidade ou restringir o direito da mulher ao aborto legal sem ampla mobilização.
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Em um cenário como este, resta uma questão essencial:
Quem está do nosso lado?
Quem merece nossa defesa?
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Luislinda é um personalidade admirável. Primeira juíza negra do país, teve papel importante na defesa da legislação antirracismo. Com muita luta, conquistou seu lugar no alto escalão da política nacional … e escolheu seu lado. Filiada ao PSDB, um dos maiores baluartes do neoliberalismo no país, a autoproclamada representante das classes desfavorecidas acha por bem usar um discurso de combate ao racismo para ampliar seus privilégios. E o faz no exato momento em que auxilia um governo golpista a retirar os parcos direitos conquistados pelos trabalhadores. Há que se lembrar a cor da pele da maioria dos afetados por essas políticas nefastas: negra.
O uso de comparações exdrúxulas, alimentadas por motivações pessoais ou interesses políticos, não é um fenômeno novo. Em 2016, ao sofrer uma condução coercitiva ilegal, o ex-presidente Lula e vários de seus apoiadores apressaram-se a comparar seu mártir ao povo negro vitimado pela arbitrariedade pessoal. Lula, sem dúvida provindo da classe trabalhadora, hoje responde a processo judicial em liberdade, assessorado por advogados pagos a peso de ouro. É necessário apontar as irregularidades no processo a ele dirigido, porém qual o cabimento de compará-lo aos moradores das favelas, as mesmas favelas “pacificadas” em 2010 por ordem dele, a fim de abrir espaço para a realização da Copa do Mundo? E, sobretudo, qual a cor da pele da maioria dos afetados por essa política de segurança truculenta? Negra.
Mundo afora, a política encontra-se em um processo de reorganização. Mulheres, LGBTs, negros colhem os frutos de décadas de luta e vêem suas pautas debatidas e apoiadas por amplos setores da sociedade, talvez como nunca antes na história da Civilização Ocidental. Ao mesmo tempo, o descontentamento com o neoliberalismo, abraçado inclusive por grande parte dos antigos lutadores sociais, tem criado forte descontentamento entre aqueles que vêm sendo deixados para trás. Quem, como eu, acredita em outro modelo de sociedade, em que todos tenham seus direitos sociais e políticos reconhecidos, em que ninguém seja discriminado em função de raça, gênero ou sexualidade, não deve titubear ao tomar sempre o lado do povo trabalhador.
Defender representantes do neoliberalismo, cúmplices da exploração sofrida pela maioria dos negros, LGBTs e mulheres? Não em meu nome. Não em nosso nome!