Samir Oliveira

Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital

Samir Oliveira
7 de dezembro de 2017

O governo Temer excluiu qualquer menção à palavra “gênero” da nova versão da Base Nacional Comum Curricular. O texto, debatido no Conselho Nacional de Educação, define as diretrizes pedagógicas que as escolas públicas e privadas no Brasil devem seguir em cada disciplina, durante o Ensino Fundamental.

O Conselho é formado por especialistas, profissionais qualificados para estruturar as bases curriculares das escolas. Os conselheiros aprovaram emendas importantes ao texto, incluindo noções de combate à discriminação de gênero em disciplinas como História, Geografia e Ensino Religioso. Todas elas foram ceifadas ao chegar ao gabinete do ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM).

A censura passaria despercebida e sem alarde, já que o governo se negou a fornecer uma cópia do texto à imprensa. Felizmente o conteúdo acabou vindo a público e agora a sociedade civil pode pressionar o governo a voltar atrás. Não podemos aceitar que o mesmo ministro que deu a Alexandre Frota – um estuprador confesso – o status informal de conselheiro agora queira tornar as escolas espaços medievais e desconectados da realidade.

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Discutir gênero e sexualidade nas escolas é mais do que urgente, é vital

E barrar este debate é mais do que uma reação conservadora, é uma estupidez ineficaz

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As crianças e jovens têm acesso a informações e experiências que nenhuma regulação arcaica é capaz de proibir – desde o convívio com os amigos até o contato com as tecnologias de comunicação. A escola é um espaço fundamental de socialização e deve estar orientada para acolher a diversidade.

Estudei a maior parte do Ensino Fundamental em escola pública estadual, no interior do Rio Grande do Sul. Naquela época, entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos anos 2000, não havia qualquer discussão a respeito do bullying. Era muito difícil que se passasse um dia sem que eu sofresse algum tipo de agressão – física, verbal ou psicológica – por ser gay. Naquele momento eu sequer me entendia enquanto gay, mas meu comportamento não correspondia ao que era esperado de um menino, então eu “merecia” ser caçoado.

Gosto de pensar que muita coisa mudou de lá para cá. E, de fato, mudou. Avançamos muito! O problema do bullying nas escolas hoje é levado a sério. O que não quer dizer que não tenhamos que percorrer ainda um longo caminho. A recente expulsão de uma menina trans de 13 anos de uma escola em Fortaleza revela o abismo que se coloca diante de nós. O caminho para superá-lo passa pela inclusão de gênero e sexualidade nas diretrizes curriculares. Chega a ser criminoso compactuar com este tipo de censura no país que mais mata LGBTs no mundo, onde a população trans é a mais vitimada, num ciclo de violência que se inicia com a evasão escolar e o abandono familiar.

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O Brasil perdeu uma oportunidade histórica de avançar neste tema durante o primeiro mandato do governo Dilma

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O Ministério da Educação, comandado então por Fernando Haddad, havia elaborado materiais didáticos contra a homofobia para distribuir nas escolas. A bancada fundamentalista na Câmara – que fazia parte da base de apoio do PT – ameaçou abandonar o governo caso a iniciativa seguisse adiante. Isso bastou para que nossos direitos fossem rifados e Dilma desse uma de suas declarações mais infelizes ao dizer que “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”.

Talvez, se naquele momento o governo Dilma houvesse enfrentado os reacionários, hoje a realidade em nossas escolas fosse um pouco melhor. O abismo não seria tão profundo. Agora Temer não precisa ceder às pressões fundamentalistas, pois seu governo é liderado diretamente por estes setores, que elaboram as políticas e decidem de forma autoritária o que deve ser debatido nas escolas.

A tesoura do ministro Mendonça Filho na Base Nacional Comum Curricular vem acompanhada de projetos absurdos chamados de “Escola Sem Partido” em diversas cidades e estados do país. Até mesmo no Congresso Nacional.

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São iniciativas que desejam, na verdade, colocar uma mordaça sobre a boca dos professores, como se a educação fosse um processo mecânico e neutro, despido de subjetividades

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Em São Paulo, a vereadora Sâmia Bomfim, do PSOL, está na linha de frente contra esta aberração e já conseguiu barrar sua votação uma vez. Como ela mesma disse em um discurso na Câmara dos Deputados: “A geração que ocupou as escolas no final de 2015 e no início de 2016 irá cobrar a conta” de todas as medidas regressivas que tentam colocar em curso atualmente.

Estas tentativas de censurar professores e de obstruir a discussão sobre gênero e sexualidade nas escolas não passam de uma grande cortina de fumaça para que a sociedade perca tempo – e os órgãos públicos escoem dinheiro – neste esforço inútil voltado ao atraso, enquanto o que realmente deveríamos estar debatendo é a qualidade do nosso ensino, as condições de trabalho e a remuneração dos nossos professores e a estrutura de nossas escolas.

Glow

Clitóris ou Ovário?

Fernanda Ferrão
22 de junho de 2017
Clipe música Lalá da cantora Karol Conka Clipe música Lalá da cantora Karol Conka

Se quiser, clique e leia ouvindo: Karol Conka – Lalá

Sabe o boquete? Sabe, né? Já parou para pensar que não existe uma palavra equivalente para sexo oral em mulheres? A Karol Conka pensou. A rapper paranaense de 30 anos é uma das mulheres símbolo do que chamamos de terceira onda do feminismo. O último lacre foi lançado na primeira semana de junho: a música Lalá. O termo foi criado pela própria Karol.

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Sexo oral feminino é ‘lalá’

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É claro que o clipe foi lançado acompanhado de “””””””polêmica”””””””. Afinal, tem muita gente para dar pitaco em todo e qualquer assunto relacionado ao feminino. A equipe que criou o vídeo lindo que acompanha a música é composta apenas por mulheres. O vídeo tem quase dois milhões e meio de visualizações.

Camila Cornelsen e Vera Egito dividiram a direção. Camila teve sua conta extinta e foi bloqueada do Instagram depois de postar 01 minuto do vídeo em seu perfil. Vera, em conversa com a Dani Arrais, do Don’t Touch My Moleskine, disse:

“Na celebrada música brasileira – poderia dizer de todo o mundo também – o sujeito do desejo é masculino e o objeto desse desejo é feminino tradicionalmente. Mas agora a moça bonita que vem, não passa. Ela fica e fala do que está afim. Deixa claro também quais são suas vontades, preferências, e toma o eu lírico do tesão pra si. Karol é essa mulher inteligente, de personalidade, independente e corajosa. Ela é linda também. Provavelmente o rosto mais simétrico que eu já filmei, impressionante. Linda em qualquer enquadramento. Mas já é tempo do atributo da beleza não ser mais o principal ao se falar de uma mulher. Especialmente uma mente criativa como Karol Conká. Foi de uma honra e de uma felicidade enormes realizar esse trabalho para ela. Especialmente ao lado da Camila Cornelsen, minha mana fotógrafa inspiração e apoio pro meu trabalho e pra minha vida. ‘Direitos de prazer iguais’, clama Karol. É isso aí. Celebremos esses novos tempos. Não tem retrocesso. Desse lugar de fala a gente não sai mais.”. Punto y basta.

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Nos dias seguintes ao lançamento, Karol postou frames e imagens do clipe sempre lembrando o quanto tem sido atacada apenas por falar de um assunto que incomoda aqueles que estão acostumados a dominarem todos os cenários: os homens.

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Eu poderia falar muitas outras coisas sobre este assunto, falar das conversas que tenho com amigas, sempre cheias de relatos de homens que não conhecem o corpo feminino e de como o pudor imposto pela sociedade faz com que essas mulheres que reclamam dos homens muitas vezes nem saibam instruí-los. Porém, deixo aqui apenas a íntegra da letra escrita por Conka. Te juro que vais entender do que estamos falando! #melambelá

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Lalá – Karol Conka

Lá lá lá

Moleque mimado bolado que agora chora
Só porque eu mandei ajoelhar
Fazer um lalá por várias horas

Ele disse por aí que era o tal
Pega geral e apavora
Seduzi pra conferir
E percebi que era da boca pra fora

Dá pra perceber que existem vários
Falam demais, fingem que faz
Chega a ser hilário
Mal sabe a diferença de um clitóris pra um ovário
Dedilham ao contrário
Egoístas criando um orgasmo imaginário

Pouco importa pra ele se você também tá satisfeita
Esses caras ainda não aprenderam que 10 minutos é desfeita
Nem a bomba que toma não aguenta o molejo da lomba
Se desmonta, tem medo e no final só me desaponta

Já fico arrependida
Seca, desacreditada e fria
Desse jeito desanima
Quero ser bem atendida

O que me anima é a habilidade na lambida
Malícia, muita saliva enquanto eu queimo uma sativa

Lá lá lá, me lambe lá
Lá lá lá, me lambe, me lambe, me dê uma lambida lá

É inacreditável, eles ficam sem ação
Quando a gente sabe o que quer e já mete a pressão
Tem que saber fazer se não gera contradição
Direitos de prazer iguais, mais compreensão

Isso daqui não tá de enfeite
Dá um jeito, se ajeite
Sem ser fake, então vai se deite
Se eu quero, respeite

O clima deixa de ser quente, confundiu minha mente
Falam de mais, quando chega na hora a ação não é equivalente
Nem vem, sou apenas mais uma com experiência e sabe quem tem
Vejo vários convencidos achando que no final mandou bem

Minhas amigas concordam também
Vocês podem ir mais além
Sem dedicação espantam um harém

Curvem-se, encostem os lábios na flor
Quebra esse tabu, isso não é nenhum favor

O que me anima é a habilidade na lambida
Malícia, muita saliva
Enquanto eu queimo uma sativa

Lá lá lá
Lá lá lá, me lambe lá
Lá lá lá, me lambe, me lambe
Me dê uma lambida lá
Lá lá lá
Lá lá lá, me lambe lá
Lá lá lá, me lambe, me lambe
Me dê uma lambida lá

Samir Oliveira

Especular sobre a sexualidade alheia é uma forma de violência

Samir Oliveira
2 de março de 2017
Foto: Ludovic Bertron/Flickr

No movimento LGBT muito se debate sobre a necessidade de termos orgulho de ser quem somos. De sairmos da vergonha, da reclusão, do espaço convencionalmente chamado de “armário” para o orgulho. É um processo difícil e extremamente subjetivo. Cada pessoa sabe a forma de conduzi-lo de acordo com sua realidade, com sua situação afetiva e familiar.

“A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais”

Mas muitas pessoas não têm essa escolha. Acabam sendo expostas. Acabam sendo alvo de especulações, até mesmo de acusações. A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais. Há um fenômeno igualmente perverso que atinge escalas ainda maiores: a exposição de LGBTs famosos. Personalidades que, por qualquer que seja o motivo, optaram por não fazer uma transição pública do armário para o orgulho. E tudo bem, ninguém é obrigado a isso, ainda mais quando se é uma pessoa pública. Sabemos que a atenção da mídia e a reação das pessoas nem sempre acontece da maneira mais agradável.

Muita gente pode argumentar que pessoas públicas têm poder de influência e, portanto, enquanto LGBTs, deveriam utilizá-lo para lutar contra o preconceito. É verdade, concordo com isso. Mas não podemos empurrar ninguém para essa situação. Precisamos respeitar o tempo e a disposição de cada um. Estrutura emocional e fortalecimento afetivo não brotam do dia para a noite.

Privacidade

Isso não quer dizer que estas pessoas sejam mal resolvidas, infelizes e vivam uma vida de mentira. O ator Leonardo Vieira, exposto em uma foto beijando outro homem, nunca escondeu sua homossexualidade de seus amigos, de sua família e das pessoas que compõem seu círculo social. Ainda assim, o preconceito caiu sobre suas costas de forma brutal quando sites de fofocas transformaram seu gesto de carinho em um escândalo.

No mundo da ficção, vimos na série Sense8 o personagem do ator Lito, um galã mexicano de filmes de ação, ser confrontado com este dilema, com a decisão de “sair do armário” publicamente – ainda que em sua vida pessoal nunca tenha se escondido para a família e os amigos. Esta trajetória não foi fácil para Lito, a própria indústria cinematográfica que o cerca foi contra a decisão. Mas após muita reflexão o personagem demonstrou que estava disposto a enfrentar o preconceito. Claro que o mundo da ficção por vezes mascara a crueza da realidade, mas Lito, assim como muita gente na mesma situação, só conseguiu transitar para o orgulho porque estava fortalecido em seu círculo afetivo e familiar.

A polêmica envolvendo Daniel

Recentemente uma nova falsa polêmica atingiu as redes sociais e revelou como a lógica da exposição forçada pode ser cruel e se retroalimenta inclusive dentro da própria população LGBT. Em pleno Carnaval, a foto de um homem jovem e bonito sem camisa no perfil do cantor Daniel no Twitter gerou as mais diversas especulações a respeito de sua sexualidade. Piadas e insinuações sobre o episódio pipocaram por todos os lados, quando na verdade tudo não passava de um equívoco cometido por quem gerencia as redes sociais de Daniel e do cantor Delluka Vieira, o homem que aparecia na foto do tuíte. O mesmo tuíte havia sido postado nas duas contas, em um evidente erro de social media.

Em 2014, Daniel lançou sua autobiografia em um livro chamado “Minha estrada”. Nele, o cantor comenta que no início de sua carreira eram fartos os boatos sobre sua sexualidade. “Quando comecei a ficar conhecido, a imprensa queria saber com quem eu estava namorando. Como sempre fui muito caseiro, se algum jornalista perguntava se eu estava solteiro, eu dizia que sim, mesmo se estivesse namorando. Por conta disso, começaram a espalhar por aí que eu era gay. Nunca tive nenhum tipo de preconceito contra os homossexuais, mas, em determinados momentos, essa história ganhou uma dimensão que começou a me incomodar. Inventaram um monte de histórias, algumas circulavam com força na internet”, disse.

As especulações ganharam força após Daniel aceitar fazer parte de uma campanha publicitária para uma marca de cuecas, com fotos suas em peças íntimas circulando por cartazes e outdoors. São exemplos de como a cultura da exposição forçada – seja ela sobre pessoas famosas ou não – é uma expressão da homofobia que precisamos combater. É também um ato de violência que atinge inclusive pessoas que não são LGBTs. Ninguém tem o direito de tirar uma pessoa à força do armário, sem que ela esteja fortalecida afetivamente para lidar com tudo que isso representa. Sair do armário é um ato de empoderamento, mas só se você quiser e estiver pronto ou pronta para isso.

Foto: Ludovic Bertron/Flickr