Geórgia Santos

Uma tentativa vã, mas bonita, de definir Rita Lee

Geórgia Santos
22 de maio de 2023

No dia em que ela morreu, eu retirei aquele livro da laranja da estante em que separo as obras por cor – uma pequena obsessão que não combina em nada com minha falta de organização. Rita Lee, uma autobiografia (2016), é absolutamente deliciosa. Uma ode honestíssima à própria liberdade escrita por uma mulher que foi esplendorosa, cantou demais, foi louca, fez muita merda, compôs lindamente, sofreu bastante, cuidou dos seus, desafiou poderosos, amou e amou e amou.

Recentemente, ela disse que o compêndio de capa cor de laranja era uma despedida da “persona ritalee”. Mas como que para manter a transparência, ela deixou no papel Outra autobiografia. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, diz ela em trecho do livro, divulgado quando anunciou o lançamento da nova obra. Pois o lançamento foi agendado para 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, também conhecido como hoje.

Ainda não li, mas está lá, na caneta da moça, os detalhes do tratamento contra um câncer de pulmão – cujo tumor ela descobriu em 2021, durante a pandemia, e apelidou de Jair – que acabou encurtando a vida da rainha do rock brasileiro.

Eu não sei se gosto desse título ou rótulo, como queiram, de rainha do rock brasileiro, atribuído subjetivamente em manchetes e lides que anunciavam sua morte, em 08 de maio deste ano. Não que ela não mereça o posto, óbvio que merece. Ninguém mais poderia ocupar esse lugar. Mas é que me parece impreciso. Aliás, em uma entrevista à revista Rolling Stone, em novembro de 2022, ela disse que achava cafona.

Imagem: Reprodução

Por isso, decidi me embrenhar em uma empreitada hercúlea e ingrata de tentar definir Rita Lee. Busquei uma resposta a partir do que ela disse sobre si ao longo dos anos. Lógico que falhei em encontrar UMA palavra que fosse suficiente, mas também fui esperta no processo e isso rendeu uma belíssima lista. Procurei em em entrevistas, canções, nos livros e em alguns dos mais engraçados tuítes da história desse país. Sim, tuítes. Como o de primeiro de agosto de 2011:

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“Já disse e repito: não me levem a sério, sou falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.”

Que figura. Mas não ficaria bem escrever algo como: “Morre Rita Lee, uma falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta.” Então continuei.

“E eu lá sou mulher de fazer back-up? Perdi tudo, foda-se eu. Ao atualizar o Iphone eu perdi tudo. Inclusive tudo mesmo. Véia jumenta.”

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Isso também pegaria mal. Mas que é a cara dela, isso é. Alguém que em um belo dia resolveu fazer tudo o que queria fazer, libertando-se de uma vida vulgar e tendo o prazer de ser quem se é. Alguém que era Rita; Rito, o menino baiano; mutante; romântica; menina; mulher; Ritinha; neném que só sossega com beijinho; ovelha negra; baby; erva venenosa; caso sério; ciumenta; guerrilheira; ladra de botas; justiceira; caminhante noturna; ladra de anéis; Gininha; mulher macunaíma; Miss Brasil 2000; luz del fuego; Rita Lica; fruta; Madame Lee; filha; Adelaide Adams; maçã; traficante de colar de LSD; TV Lesão; folclore; irmã; cigarra; Lita Ree; pergunta; ex-AA; fofa; ex-NA; perseguida; licor; ex-presidiária; injustiçada; uma cantora sutil; feminista; feminina; louca; pau pra toda obra; cantora; compositora; instrumentista; vaca; mais macho que muito homem; rainha do próprio tanque; pagu indignada no palanque; porra louca; véia; vaidosa; paulista; paulistana; com nervos de aço; fazedora de barulho; falsa; vovó; Aníbal; corinthiana; chata; viciada em uva-passa; sharon stone; mãe; rolling stone; cabrinha; caprichosa; capricórnia; rainha; esposa; Deus; todas as mulheres do mundo; semente. Semente. Semente.

É realmente difícil definir Rita Lee e, talvez, o prosaico Rainha do Rock atenda melhor às necessidade da mídia tradicional que precisa comunicar ao grande público o tamanho de uma grande mulher. Mas eu não quero desistir, assim como não quero ceder à escolha editorial do G1. Decido, então, recorrer a ele.

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“O Roberto é a Rita também, a Rita é o Roberto também. Em vida ou em morte, tanto em uma circunstância quanto em outra, eu continuo sendo ela e ela continua sendo eu.”

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Roberto de Carvalho é o grande amor de Rita Lee e talvez a única pessoa com autoridade para dizer aos brasileiros quem ela é. Em uma entrevista ao Fantástico, no dia seguinte ao enterro da cantora, ele lembrou da parceira como alguém cheia de vida, de criatividade, de alegria. Ele disse que ela era iluminada.

Está dito, então. Rita é luz.

Mas, por via das dúvidas, vou ler o novo livro em busca das outras personas da rainha fragmentada.

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Imagem de capa: Reprodução / Instagram

PodCasts

Todo Dia Oito #9 Francisca, a pianista que veio do futuro

Geórgia Santos
8 de novembro de 2021

No nono episódio do podcast, Francisca, a pianista que veio do futuro. Chiquinha Gonzaga foi a primeira pianista de choro do Brasil; a primeira mulher a reger uma orquestra no país; a primeira compositora de ritmos populares; e, muito provavelmente, a primeira “moça de boa família” a se integrar à boemia. E como alguém que não pertence ao tempo em que está, tornou-se um alvo da sociedade empertigada que vivia às voltas de aparência.

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OUÇA

Uma criação do Vós

Produção: Flávia Cunha, Geórgia Santos e Raquel Grabauska

Pesquisa: Flávia Cunha

Roteiro: Flávia Cunha e Geórgia Santos

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Ao longo do episódio, você ouviu algumas das canções de Chiquinha Gonzaga, que estão em domínio público. A gravação faz parte de disco da Casa Edison gravado entre 1911 e 1912 com o Grupo Chiquinha Gonzaga.

PodCasts

Todo Dia Oito #8 Aracy, a justa que adorava batom vermelho

Geórgia Santos
8 de outubro de 2021

Todo Dia Oito. Todo dia oito, uma história, todo dia oito, uma mulher

No oitavo episódio do podcast, Aracy, a justa que adorava batom vermelho. Ela conviveu com uma das grandes injustiças enfrentadas por mulheres casadas com homens notáveis. Viver à sombra do marido. Ser a “esposa de alguém”. Aracy Guimarães Rosa é a Ara a quem é dedicada uma das maiores obras da literatura brasileira. Mas como uma certa ironia do destino, para uma mulher que tanto enfrentou injustiças, depois de viúva, ela foi reconhecida como uma Justa Entre As Nações.

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Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Locução: Raquel Grabauska, como Aracy Carvalho Guimarães Rosa

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Os áudios com a vozes de Eduardo Tess, Margarethe Levy e Bella Herson foram extraídos do documentário “Esse viver ninguém me tira”, de Caco Ciocler. Além dos livros citados ao longo do episódio e do documentário, para a pesquisa sobre a vida de Aracy foram consultados artigos de Daniel Reizinger Bonomo , Tânia Biazoli e Neuma Cavalcante, e reportagem da jornalista Eliane Brum publicada na revista Época em 2008. Além da trilha original, ouve-se trecho de Casinha Feliz, de Gilberto Gil, e o tema de abertura da minissérie da Globo, Grande Sertão: Veredas.

PodCasts

Todo Dia Oito #7 Laudelina, uma lutadora que gostava de dançar

Geórgia Santos
8 de setembro de 2021

Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher

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No sétimo episódio do podcast, Laudelina, uma lutadora que gostava de dançar. Ativista. Ex-combatente na Segunda Guerra Mundial. Presa pela ditadura militar brasileira. Organizadora de bailes e concursos de beleza negra.  Líder sindical e pioneira na luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas, Laudelina de Campos Melo fundou o primeiro sindicato da categoria.

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Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Produção: Raquel Grabauska

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

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Os áudios com a voz da sindicalista foram extraídos do documentário “Laudelina, Suas Lutas e Conquistas”, produzido pelo Palácio dos Azulejos e o Museu da Cidade. Você também ouviu depoimentos reais de empregadas domésticas brasileiras, que relataram as dificuldades que ainda enfrentam.

PodCasts

Todo Dia Oito #5 Menininha, a primeira mãe-de-santo pop

Geórgia Santos
8 de julho de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No quinto episódio do podcast, Menininha, a primeira mãe-de-santo pop. O título não é de nossa autoria. Quem disse que Mãe Menininha do Gantois foi a primeira mãe-de-santo pop foi Gilberto Gil. Mas, apesar de ser verdade – afinal, tinha mais de 700 filhos-de-santo, entre eles o próprio Gil, Caetano, Bethânia e Vinícius de Moraes – ela era muito mais que isso. Amada em todo o Brasil, Mãe Menininha é lembrada por advogar pela tolerância e liberdade religiosas.

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QUEM FAZ

Produção: Vós; Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos; Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha; Direção Artística: Raquel Grabauska; Apresentação e edição: Geórgia Santos; Vocais: Cláudia Braga, Stefania Johnson e Geórgia Santos; Locução: Andrea Almeida e Cléber Grabauska; Trilha sonora original: Gustavo Finkler. O depoimento de mãe menininha e os tambores ouvidos ao longo do episódio foram extraídos do LP Mãe Menininha do Gantois. Disco gravado ao vivo no Gantois, em Salvador, na Bahia. Ainda ouvimos Vinícius e Toquinho com Tatamirô e Caetano, Bethania e Dona Canô com Oração de Mae Menininha, de autoria de Dorrival Caymmi

PodCasts

Todo Dia Oito #4 Luciana, a feminista do século 19

Geórgia Santos
8 de junho de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No quarto episódio do podcast, Luciana, a feminista do século 19. Achou que o feminismo tinha sido inventado no Twitter? Pois Luciana de Abreu já defendia a equidade de gênero nos idos de 1870, em Porto Alegre. O direito ao estudo e ao trabalho. Ela defendia a independência das mulheres em tribunas e na prática.

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QUEM FAZ

Produção: Vós

Pesquisa: Flávia Cunha

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Direção Artística: Raquel Grabauska

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Locução:

Raquel Grabauska como Luciana de Abreu,

Andrea Almeida como a mãe de Luciana;

Participação especial de Mirna Spritzer, Juçara Gaspar e Boina Galli

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

PodCasts

Todo Dia Oito #2 Maria, O Soldado Medeiros

Geórgia Santos
8 de abril de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No segundo episódio do podcast Todo dia Oito, Maria, O Soldado Medeiros. Em um tempo em que nem o Brasil era independente, Maria Quitéria de Jesus se fez passar por homem para poder ser livre. Para poder desafiar o pai e a sociedade, pegar em armas e entrar para a história. Ela foi a primeira mulher a ingressar no Exército Brasileiro.

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QUEM FAZ

Produção: Vós

Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos

Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha

Direção Artística: Raquel Grabauska

Apresentação e edição: Geórgia Santos

Locução:

Raquel Grabauska como Maria Graham

Angelo Primon como Dom Pedro Primeiro

Participação especial de Cléber Grabauska como José Joaquim de Lima e Silva

Trilha sonora original: Gustavo Finkler

Voos Literários

Por um feminismo sem preconceito etário

Flávia Cunha
7 de março de 2021

O preconceito etário ainda é uma realidade em pleno século 21 relacionado, principalmente, às mulheres.  A cantora Madonna, de 62 anos, é  um desses alvos, O motivo das criticas? Querer seguir com o mesmo comportamento,  associado à sensualidade, que teve desde o início de sua bem-sucedida carreira.

Mas já foi bem pior.  Vejamos esse texto do século 19:

 

“Uma jovem tem ilusões demais, é inexperiente demais e o sexo é cúmplice demais de seu amor, para que um rapaz possa sentir-se lisonjeado; ao passo que uma mulher conhece toda a extensão dos sacrifícios a serem feitos. Enquanto uma é arrastada pela curiosidade, por seduções estranhas às do amor, a outra obedece a um sentimento consciencioso. Uma cede, a outra escolhe.”

O trecho acima é do clássico A Mulher de Trinta de 30 Anos, de Honoré Balzac, escrito entre 1829 e 1842.  Nesta época, não era comum haver heroínas românticas com a idade mencionada no título da obra. Sendo assim, o escritor francês prestou uma homenagem ao elogiar a “maturidade” feminina. Ao longo dos tempos, seu nome ficou associado ao termo balzaquiana, para referir-se a mulheres com mais de três décadas de vida.

Visão datada

Se no século 19 Balzac foi considerado lisonjeiro por valorizar a beleza e qualidades das mulheres após ultrapassarem a casa dos 20 anos, nos dias atuais os argumentos do autor soam descabidos. Primeiro, por fazer comparações diminuindo as jovens para enaltecer as maduras. Também é curioso que o rapaz mencionado no texto como muito jovem tem ele mesmo… 30 anos! A partir disso, podemos perceber que a passagem do tempo é avaliada de forma diferente, de acordo com o gênero.

Velhice como defeito

Evidente que nos dias atuais o conceito de velhice mudou, até porque a expectativa de vida é maior. Porém, muitas mulheres jovens, e em desconstrução para temas como luta antirracista e a causa LGBTQUIA+, ainda falham no que diz respeito ao preconceito etário. Não é incomum ouvirmos entre grupos femininos com faixa etária entre 20 e 30 anos comentários depreciativos sobre os próprios corpos e comportamentos, associando-os a uma suposta velhice precoce.

Feminismo x Velhice

Além disso, há uma lacuna na luta feminista nos direitos das mulheres idosas e um silenciamento sobre a liberdade dos corpos na maturidade. Dentre as causas para esse mau comportamento feminino e feminista, estaria a de que jovens  acabam cedendo aos padrões sociais. O discurso da indústria da beleza associa juventude aos ideais de perfeição e consequente empoderamento corpóreo, relegando as mulheres mais velhas às sombras. Saiba mais a respeito dessa visão aqui.

Sabedoria que distancia da luta

No artigo Feminismo e Velhice, a professora de Antropologia Guita Grin Debert apresenta um argumento diferente. A especialista destaca que, ao longo dos últimos anos, houve uma mudança na percepção da velhice, buscando associá-la a fatores positivos. Sendo assim, poderia haver um entendimento entre as feministas de que as mulheres mais velhas deveriam ser sábias e, portanto, mais dóceis:

“A raiva e a fúria necessárias à luta ficam barradas quando o distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade próprias da sabedoria passam a ser uma característica da boa velhice, porque se impede aos velhos galvanizarem essas emoções e sentimentos na luta por mudanças sociais.”

Para saber mais sobre envelhecimento, sugiro a leitura do livro A Reinvenção da Velhice, da antropóloga Guita Grin Debert.

Reforçando a visão da antropóloga, considero que a raiva em mulheres mais velhas é julgada como uma atitude ranzinza. Já mulheres mais jovens seriam consideradas rebeldes, libertárias. Dessa forma, ainda é necessário que haja a conscientização das feministas para bandeiras associadas à maturidade e envelhecimento. A necessidade aumenta em um país como o Brasil, onde reformas como a da Previdência nos indicam um futuro muito preocupante para todos, incluindo as mulheres.

Avós da Razão

Além disso, em um feminismo realmente libertador e inclusivo, é preciso lutar pelo fim do preconceito etário. O ageismo, como também é chamado, é completamente descabido nos dias atuais. As Avós da Razão, youtubers idosas que alcançaram grande sucesso e visibilidade, respondem, neste vídeo, sobre o questionamento de uma fã sobre se aos 40 anos já pode considerar-se velha.

Imagens Site oficial Madonna/Reprodução

Voos Literários

Mafalda, ícone feminista

Flávia Cunha
3 de outubro de 2020

Questionadora, crítica e interessada por política. Assim é a pequena Mafalda, criação do genial cartunista argentino Quino. Certamente, ela pode ser considerada uma personagem com comportamento feminista, ao subverter o papel tipicamente atribuído ao sexo feminino. Um exemplo disso é o fato dela pouco se interessa por distrações tradicionalmente associadas a meninas, como brincar de boneca. Também não pensa em no futuro casar ou ser dona de casa.  Ela é o oposto de Susanita, a amiga da mesma idade que tem uma postura mais conservadora e fútil.

FEMINISMO NOS ANOS 1960/70

Se observarmos apenas a temática de questionamento do papel da mulher na sociedade, a criação de Quino já chama a atenção. O mérito é ainda maior por todas essas discussões terem começado em 1964, em tirinhas publicadas em jornais argentinos. Em 1966, um golpe de Estado deu início a uma ditadura militar na Argentina, que durou até 1973, mesmo ano em que Quino decide encerrar as publicações de histórias inéditas. Sendo assim, é bastante corajoso que o cartunista tenha abordado, por meio da menina feminista, temas como democracia, liberdade e desigualdade social em pleno período de ditadura. Talvez para abrandar eventuais censuras, o autor fazia uso do humor e trazia à tona outros assuntos, como o amor de parte dos personagens pelos Beatles e o ódio mortal de Mafalda por sopa.


MAFALDA E OS DIREITOS HUMANOS

Mesmo sendo raros os materiais inéditos da personagem após 1973, ela permanece um sucesso mundial, com as obras já tendo sido traduzidas para mais de 30 idiomas. Um raro exemplo de conteúdo produzido depois disso são desenhos que acompanharam uma campanha da ONU de divulgação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1976. O material é bastante difícil de ser encontrado na íntegra e localizei apenas algumas imagens esparsas em pesquisas na Internet., como essa.

NOVO LIVRO COM ABORDAGEM FEMINISTA

Ao longo dos anos, diversas coletâneas foram lançadas, inclusive no Brasil, onde os livros da personagem foram publicados pela primeira vez em 1982. Em breve, será lançada por aqui uma obra contendo somente tirinhas com conteúdo feminista. Em espanhol, a publicação dessa obra ocorreu no ano passado. O livro Mafalda: Feminino Singular, será lançado em dezembro de 2020, pela editora Martins e Fontes. Sem dúvida, uma boa notícia para os fãs de Quino e de sua criação mais famosa.

Esse texto é uma singela homenagem ao cartunista Quino, falecido nessa semana. Em 2017, a coluna Voos Literários também mencionou outros aspectos a respeito da personagem Mafalda.

Imagem: Contracapa livro Mafalda: Femenino Singular/Editora Lúmen

Voos Literários

#coronavírus – Feminismo Para Quê? (ou a luta de classes em meio à pandemia)

Flávia Cunha
27 de março de 2020

No início de março, decidi abordar a importância do feminismo a partir de algumas leituras. O principal motivo era o fato deste ser o mês em que a luta das mulheres ganha mais visibilidade. Ao contrário de anos anteriores, esse 2020 caracteriza-se por uma pandemia de proporções assustadoras. Como não podia deixar de ser, o teor dos textos da série “Feminismo Para Quê”, que começaram leves, falando sobre divisão de tarefas domésticas, passaram pelo questionamento de quem mandou matar Marielle Franco, acabaram também tratando sobre o avanço do coronavírus no Brasil e seus desdobramentos sociopolíticos. No texto anterior, falei um pouco sobre a sororidade e desigualdade social em meio à quarentena imposta para evitar a disseminação do coronavírus no Brasil.

Enquanto escrevo o último post desta série sobre feminismo, ouço um buzinaço provocado por uma carreata que passa pelo meu bairro em Porto Alegre (RS), pedindo que empresas de serviços não-essenciais sejam reabertas para evitar prejuízos econômicos, ignorando orientações da Organização Mundial da Saúde. É nesse cenário vergonhoso onde o dinheiro vale mais do que vidas, que proponho pensarmos sobre a luta de classes e a sua relação com o feminismo.

Antes disso, considero importante pontuar que como as mulheres são diferentes entre si, existem muitos feminismos. Para fundamentar os aspectos teóricos desse texto, usei como  base o livro Feminismo e Consciência de Classe no Brasil, de Mirla Cisne. A autora comenta sobre três correntes do feminismo: feminismo radical, socialista e liberal:

“A oposição politicamente mais frontal, […] ‘recai sobre as feministas liberais, de um lado, e feministas radicais e socialistas, de outro’. O feminismo liberal consiste nos movimentos voltados à promoção dos valores individuais, buscam reduzir as desigualdades entre homens e mulheres por meio das políticas de ação positiva, e, por isso, podemos falar de um “feminismo reformista”. […] O feminismo socialista ou tendência da luta de classe, como se denomina na França, afirma que ‘a verdadeira liberação das mulheres só poderá advir de um contexto de transformação global’, enquanto as feministas radicais ‘sublinham que as lutas são conduzidas, antes de tudo, contra o sistema patriarcal e as formas diretas e indiretas do poder falocrático’.

Pois é a partir da visão do feminismo socialista que considero interessante pensarmos no que vivenciamos atualmente no Brasil. Enquanto parte dos empresários se organiza em ações solidárias, o governo federal, principalmente nas figuras do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes, alia-se ao empresariado que defende um discurso que minimiza a gravidade do Covid-19. De acordo com essa visão, “algumas” mortes são o preço a se pegar para manter a economia aquecida.

Para evitar uma recessão, a ideia é de que empresas voltem a operar normalmente, ignorando que lotar o transporte público para que os funcionários retomem seus trabalhos fará com que a proliferação do coronavírus possa atingir grandes proporções. Para não agravar a crise, os trabalhadores que hoje encontram-se em quarentena devem expor-se ao risco, sem ter certeza se estão ou não contaminados, já que os poucos testes gratuitos disponíveis no país atualmente são reservados para quem apresentar sintomas graves ou trabalhar em áreas como da saúde. Enquanto isso, os grandes empresários seguirão resguardados e, caso tenham dúvidas sobre estarem infectados, poderão tranquilamente ir em um hospital particular e pagar por todo o atendimento. Isso é a luta de classes, por mais que insistam em dizer que o termo está obsoleto ou é apenas uma invenção comunista. 

Nesse sentido, destaco um trecho do livro  Feminismo e Consciência de Classe no Brasil com o depoimento de uma integrante da Marcha Mundial das Mulheres que aponta as estreitas ligações entre o feminismo e o combate à pobreza e à desigualdade social:

“É importante lutar não só pela igualdade entre homens e mulheres, mas igualdade entre as pessoas e os povos […] há que ter igualdade entre homens e mulheres, mas há também que acabar com a pobreza, com a miséria… é muito imbricado essa coisa da luta de classe com o feminismo.”

Como sabemos, a pobreza e a miséria existem no Brasil muito antes do surgimento da pandemia. Mas o abismo existente entre os milionários e os favelados escancara-se ainda mais em meio a um gravíssimo problema de saúde pública. Caberia ao governo federal cuidar de todos os brasileiros, independente de gênero, renda, raça, orientação sexual ou idade. Na segunda-feira (30), o Senado votará um projeto com a concessão de uma renda básica de no mínimo R$ 600,00 para desempregados, trabalhadores informais e microempreendedores durante o período de enfrentamento do coronavírus no Brasil. Para mulheres chefes de família, o valor sobe para R$ 1.200. A iniciativa é louvável e espero que seja aprovada pelos senadores. Porém, pelo governo federal o benefício não ultrapassaria R$ 200,00, um valor muito abaixo do aceitável para uma família sustentar-se. 

Precisamos seguir na luta feminista, que inclui nesse momento o direito de ficar em quarentena, para não sermos contaminados por uma doença que já matou milhares de pessoas no mundo. Assim, também evitaremos  colapso nos atendimentos feitos através do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Se puder, fique em casa!

Imagem: Marcha Mundial das Mulheres/ Reprodução: Facebook (

Imagem meramente ilustrativa, agora o momento é de ficar em casa e não de ir para as ruas.)