Todo Dia Oito #5 Menininha, a primeira mãe-de-santo pop
Geórgia Santos
8 de julho de 2021
Todo dia Oito. Todo dia oito, uma história. Todo dia oito, uma mulher
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No quinto episódio do podcast, Menininha, a primeira mãe-de-santo pop. O título não é de nossa autoria. Quem disse que Mãe Menininha do Gantois foi a primeira mãe-de-santo pop foi Gilberto Gil. Mas, apesar de ser verdade – afinal, tinha mais de 700 filhos-de-santo, entre eles o próprio Gil, Caetano, Bethânia e Vinícius de Moraes – ela era muito mais que isso. Amada em todo o Brasil, Mãe Menininha é lembrada por advogar pela tolerância e liberdade religiosas.
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QUEM FAZ
Produção:Vós; Pesquisa: Flávia Cunha e Geórgia Santos; Roteiro: Geórgia Santos e Flávia Cunha; Direção Artística: Raquel Grabauska; Apresentação e edição: Geórgia Santos; Vocais: Cláudia Braga, Stefania Johnson e Geórgia Santos; Locução: Andrea Almeida e Cléber Grabauska; Trilha sonora original: Gustavo Finkler. O depoimento de mãe menininha e os tambores ouvidos ao longo do episódio foram extraídos do LP Mãe Menininha do Gantois. Disco gravado ao vivo no Gantois, em Salvador, na Bahia. Ainda ouvimos Vinícius e Toquinho com Tatamirô e Caetano, Bethania e Dona Canô com Oração de Mae Menininha, de autoria de Dorrival Caymmi
Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho
Samir Oliveira
15 de julho de 2019
Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas.
Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.
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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.
A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.
Foto: Julian Kettermann (Divulgação)
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Tradicionalismo e discriminação
A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.
Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.
O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.
Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.
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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.
Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.
Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.
A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.
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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.
Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!
Sim, é isso mesmo que você leu. Uma senadora da República atribuiu à entrevista concedida por outra senadora da República (a uma emissora mundialmente reconhecida, diga-se) o poder de violar a Lei de Segurança Nacional ao convocar “atos de hostilidade”, além de esperar que “essa convocação não seja um pedido para o exército islâmico atuar no Brasil”. Foi exatamente isso que aconteceu. Sei que é difícil acreditar, mas é verdade.
A coisa é tão insólita que chega a dar desânimo de sequer começar a contestar tamanha tolice. A própria Gleisi Hoffmann, ao defender-se da estultice, deixou claro um fato que, independente da simpatia que se nutra ou não pela petista, é notório: ela concedeu entrevistas semelhantes a emissoras de Portugal, França, Espanha e Reino Unido, entre outros países. Por que, então, é a entrevista para a rede árabe que Ana Amélia vê como “grave”? O que há nessa manifestação que não tenha ocorrido nas outras, capaz de despertar a indignação patriótica da senadora do RS?
Estamos todos autorizados a pensar que o que perturba Ana Amélia Lemos é o território onde a emissora está sediada e, em especial, o povo para o qual ela majoritariamente fala. É razoável imaginar, diante de tanto destempero e precipitação, que a integrante do PP tem mais medo de árabes do que de europeus ou seus descendentes, simplesmente porque, bem, são árabes. A menos, é claro, que a senadora deixe de lado o discurso apelativo e, com a compostura que sua posição de congressista exige, aponte de forma clara e serena onde, no fim das contas, sua colega de Casa colocou em risco a segurança nacional.
Se não é capaz de fazê-lo, então que volte ao microfones e ao Twitter, desta vez para pedir desculpas pela bobagem que falou.
O jogo que Ana Amélia Lemos joga é tentador, em especial porque é simples. Ao destilar intolerância e emprestar voz aos fantasmas mais distorcidos criados pelo ódio político, agrada a parcela mais embrutecida dos militantes de seu partido e do espectro direitista gaúcho como um todo. Além, é claro, de garantir manchetes (e comentários em colunas políticas, pois não) no momento em que a eleição se aproxima e todo holofote vale ouro. Em um cenário extremado, escolha seu extremo favorito e garanta alguns eleitores tão xucros quanto fiéis.
Tentador sim, e possivelmente eficiente. Mas arriscado também. Afinal de contas, o córner reacionário está cada vez mais lotado, e a tendência será sempre favorável a quem chegar primeiro. Verdade que a repulsa primal ao PT já elegeu muita gente no Rio Grande do Sul – ajudou, por exemplo, a eleger Lasier Martins, outro que anda flertando com o atraso e resolveu brincar de censor da arte degenerada recentemente. Mas sempre pode chegar o momento em que o eleitor se cansa do tiroteio e aposta em alguém que se venda como conciliador – algo, aliás, que a história política recente do RS também demonstra bem.
Isso aqui não é notícia! – ou, protestos na Argentina e nosso amor por fake news
Igor Natusch
20 de dezembro de 2017
Já comentei por aqui em tempos idos como a produção e disseminação de fake news é uma indústria, que nos oferece argumentos convenientes em troca do nosso engajamento e, é claro, de dinheiro. É um círculo vicioso extremamente nocivo para a discussão política e para toda a sociedade – e tivemos mais uma prova nos últimos dias, quando muita gente jurou de pés juntos que argentinos estavam gritando “isso aqui não é o Brasil!” durante os protestos contra a reforma previdenciária em curso naquele país.
Multidões identificadas com o pensamento progressista e contrário às medidas que vêm sendo adotadas por Michel Temer no Brasil acabaram disseminando a suposta informação. Eu mesmo, confesso, recém chegado de viagem e um tanto desligado do noticiário, cheguei a acreditar, durante algum tempo, que pudesse ser algo verdadeiro. Uma notícia que, como denunciado por usuários do Twitter e depois demonstrado pelo site E-farsas, não tem qualquer base identificável na realidade.
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Não existem registros em vídeo, relatos nos jornais locais, menções ao grito entre usuários argentinos de redes sociais, nada. Absolutamente nada
Se gritaram, não foi possível, pelo menos por enquanto, provar – e se não é possível provar, noticiar para quê?
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O primeiro a noticiar a suposta bomba por aqui foi o site Brasil 247 – não vou dar link porque né, trata-se de uma não-notícia e não merece ser disseminada. Mesmo não sendo um espaço “clássico” de fake news, o portal está (com todo o respeito) notoriamente distante de ser um veículo comprometido com apuração exaustiva ou com a credibilidade das informações que divulga. De onde terá tirado dados que corroborem o que divulga? Não se sabe, e pelo jeito não se saberá em momento algum.
Mesmo sendo altamente enviesado em sua cobertura, e mesmo sem apresentar qualquer evidência daquilo que afirmava em sua matéria, o Brasil 247 conseguiu atingir o coração e a imaginação de milhares de pessoas. Jogando não apenas com a insatisfação diante de reformas sem debate com a sociedade e que mudam (ou mudarão) drasticamente a vida da maioria da população, mas também com o sentimento de desamparo causado pela ausência de protestos nas principais cidades brasileiras. E tendo a publicação compartilhada, obtendo acessos, conquistando espaços de debate. Com uma informação que, repetindo, de informação mesmo não tem quase coisa alguma. Com uma matéria que, no mínimo, foi publicada antes de assar adequadamente no forno – se é que não foi para a mesa do leitor completamente crua, mesmo.
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Isso funciona, é claro, porque ninguém – absolutamente ninguém – está imune à tentação do viés de confirmação
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O questionamento incansável às falsas notícias do lado de lá não é o mesmo quando a manchete encaixa com nossos discursos, quando diz algo que nos é interessante que seja realidade. Não estavam compartilhando por aí que Bono Vox, o vocalista do U2 engajado com causas sociais, viria ao Brasil participar da mobilização de apoio a Lula no julgamento no TRF-4 – algo que a própria “fonte”, senador Roberto Requião, já deixou claro que era uma afirmação hipotética e não um anúncio? Requião mencionou o nome do músico, e isso basta. Que venham as manchetes e os memes!
Muito difícil ver boas perspectivas em um cenário onde a não-notícia só precisa ser agradável para ser tratada como verdade – ainda mais em um lugar como o Brasil, onde a importância da imprensa como salvaguarda democrática nunca chegou a se consolidar de fato. Estamos reféns de nós mesmos, de nossa vontade de ter proeminência em um debate transformado em gritaria de malucos, onde o principal valor é apenas determinar quem grita mais alto. Se a ignorância nos serve, assinamos contrato na hora, sem ler as letrinhas miúdas – e esse é o cenário de sonhos para quem, sem nenhum fato a seu favor, seguirá inventando pseudo-fatos para virar o jogo político na direção desejada. Uma falta de escrúpulos que não tem restrições ideológicas, como se vê.
Prendam a respiração, que 2018 vai ser um negócio daqueles.
As fake news apenas dizem o que você quer ouvir – e lucram bastante com isso
Igor Natusch
11 de outubro de 2017
A completa degradação do debate político no Brasil tem muitas camadas, como uma cebola que apodrece de fora para dentro e não o contrário. Uma delas, com certeza, é o descrédito dos atuais veículos de imprensa.
Semana passada comentei sobre o editorial do Estadão defendendo Michel Temer como talvez uma mãe amorosa não defendesse um filho, e tivemos recentemente casos de crítica que beiram o absurdo, como um protesto chamando a Rede Globo de esquerdista – algo que, convenhamos, só alguém completamente desligado dos últimos 30 ou 40 anos de noticiário pode considerar minimamente crível. Por outro lado, sites de “notícias” que publicam qualquer besteira como se fosse um fato “ignorado” pela mídia hegemônica proliferam como mato, direcionados a leitores de todos os espectros políticos – que, é claro, vão até eles de forma ávida, em busca da “verdade” que o jornalão e a emissora de tevê estão escondendo da população.
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As duas situações se alimentam da mesma tendência (uma das tantas que já existiam meio que desde sempre, mas que as redes sociais aparentemente ajudaram a multiplicar): a de enxergar a notícia como confirmação de ideias já existentes, ao invés de el
emento para a formação de opinião
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O jornal de grande circulação mente e/ou é desprezível apenas quando noticia algo do meu desagrado – afinal, se a notícia é prejudicial ao “outro lado”, lá vou eu compartilhá-la sem nenhum constrangimento. E tanto faz a credibilidade do “veículo” que sigo e/ou reproduzo, desde que a manchete reflita a suposta convicção que já carrego dentro de mim. Ou será possível acreditar que ninguém jamais percebe que está difundindo informações falsas ou, pelo menos, pouquíssimo confiáveis? Percebem sim, e muitas vezes – mas seguem dando likes e RTs, seguem postando em seus perfis, seguem compartilhando com os contatos do Whatsapp. Não importa se é real: o importante é que diga a coisa que desejamos ler ou ouvir.
O que nos leva à curiosíssima notícia, produzida pela Vice, dando conta de que o site JornaLivre (que é, basicamente, um espaço pseudo-jornalístico onde o MBL vende suas ideias e ataca seus desafetos) usa um script que lucra criptomoedas às custas dos leitores, usando o processador de máquinas alheias para tal. Todos os que visitavam o domínio acabavam sendo vampirizados, seja pelo MBL ou por pessoas nas sombras que sequestraram o site para tal fim. É um caso ilustrativo, pois leva às raias da caricatura algo que, para quem parar um pouco para pensar, já seria bem claro: esses sites não mentem e distorcem por prazer ou idealismo, mas para obtenção de poder – político, sim, mas acima de tudo econômico.
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Permita-me repetir: esse pessoal está se lixando para o que você acredita ou não
Eles querem se aproveitar de você para se dar bem
E para ganhar grana. Muita grana
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Como todas as coisas, a ignorância também é um negócio. E alimentar essa ignorância com uma ração diária de pseudo-fatos tornou-se um nicho bastante lucrativo. Para quem usa Google Ads e lucra horrores com acessos, para quem usa acessos para acumular bitcoins – e para quem, desvinculado de escrúpulos, vai usar e muito esse recurso para tentar se dar bem em 2018. O MBL, por exemplo, faz altas articulações com olhos voltados à eleição presidencial do ano que vem – e o JornaLivre, umbilicalmente ligado ao MBL, tem uma função um tanto óbvia nesse panorama.
O mais curioso é que esse pessoal traz, no próprio caráter de seu conteúdo, o antídoto para a perda de leitores. Afinal, as mais de 12 milhões de pessoas difundindo notícias falsas estão bem satisfeitas com o conteúdo que repassam, e vai devolver o rótulo de “fake news” a qualquer veículo que fale outra coisa, seja ele sério ou não. Os que criticam o JornaLivre são desonestos, estão contaminados pelo esquerdismo, e são eles que produz material falso para atacar quem revela a verdade pelo outro lado – é isso que o JornaLivre possivelmente diria diante de uma acusação, e é o que a multidão de pessoas que compartilha seu conteúdo vai aceitar, em questão de segundos, como a explicação mais aceitável.
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Como todas as coisas, a ignorância também é um acordo. E só encontrando um mecanismo que encoraje as pessoas a romper esse acordo em nome de um conhecimento mais pleno será possível a nós – os que acreditam no jornalismo e os que acreditam na política – combater essa tendência cada vez mais assustadora
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Imagem: Reprodução da página inicial do JornaLivre, mostrando a presença do script mineirador de criptomoedas. Publicado originalmente pelo site da Vice.
Nada de leite mau para os caretas (um ensaio sobre intolerância)
Geórgia Santos
4 de setembro de 2017
Meu amado marido me deu um disco da Gal. O Profana tem na primeira faixa uma das minhas músicas favoritas de todos os tempos: Vaca Profana, de Caetano Veloso. Ouvi a canção. Ouvi de novo. E de novo e de novo. Eu amo tudo a respeito desse som e do que ele diz. Comecei a pensar no porquê quando a letra respondeu à minha pergunta. Sim.
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Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
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Sim. É isso. Mas vai além. Eu gosto do tom de berro e desabafo tão atuais. Em tempos de ódio e intolerância, é difícil ser amoroso e tolerante, eu confesso. E essa canção me dá a licença poética que eu preciso.
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Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
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Sim. Derrama o leite mau na cara dos caretas. Conforme vou ouvindo a música que consegue ser baiana e global ao mesmo tempo, mais eu cedo ao caminho fácil da intolerância. A canção vai me abrindo as portas da intransigência e eu não quero ser legal com os caretas. Quero que eles provem do próprio veneno.
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Vaca de divinas tetas
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los “puretas”
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Sim. Quero que eles provem do leite mau. Mas será que quero, mesmo? Será que intolerância combate intolerância? Tenho a impressão que só funciona na matemática essa história de que “negativo” com “negativo” dá “positivo”. Conforme a música vai evoluindo, Gal canta sem ressentimentos e vai acalmando minha sanha.
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Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí
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Sim. Caretas de Sampa e Porto Alegre, sem mágoas, estamos aí. Tá, talvez não tão sem mágoas assim, mas acho que não vou desistir de me livrar delas. Não desistirei de me livrar das mágoas nem da intolerância. E conforme a agulha vai correndo o vinil, mais me convenço de que precisamos de muito amor e paciência pra resistir a essa batalha barulhenta.
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Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
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No final das contas, nós, não caretas, também somos cheios de falhas e inconsistências. Temos nossos vícios e cometemos nossas injustiças. Ainda não aprendemos a tolerar o diferente, mesmo que nos cubramos de razão em nome do bom senso e, vejam só, da tolerância. Também sabemos ser hipócritas. Também nos deixamos cegar. A gente também sabe ser careta.
Esse espaço deveria falar de inovação, tecnologias, audiovisual e internet. E eu tinha um texto pronto para postar ontem relacionando os grandes telões verticais ao lado do palco no Lollapalooza e a coluna que escrevi no dia 13 de fevereiro falando dessa tendência. Mas ontem o metrô explodiu na Rússia, e achei que já estava na hora de falar sobre um assunto que vem martelando na minha cabeça há algum tempo. Hoje, o ataque químico na Síria me fez ter certeza de que preciso falar de algo mais relevante; que não interessa se as telas estão de pé, se os corpos estão deitados no chão.
“Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido”
Há alguns meses, participei de um encontro de 20 anos da formatura da minha turma do Colégio Israelita Brasileiro de Porto Alegre. Saí de lá tomado por frustrações e questionamentos. Lembrei do meu avô, que, há quase um século, saiu de uma de nossas sinagogas dizendo que jamais colocaria os pés lá de novo, porque aquilo se tratava de negócios e não de religião. Me identifiquei com ele na difícil posição de ter orgulho das origens e, ao mesmo tempo não me identificar com a comunidade na qual deveria estar inserido. E não só por observar essa aspiração quase maçônica de funcionamento.
Cegueira unilateral
Antes que você se pergunte qual a relação da minha crise de identidade com os atentados, eu explico: está no ódio, na intolerância, na falta de senso de justiça e na cegueira unilateral. É absolutamente inadmissível que a segunda geração depois dos guetos e do holocausto se posicione de forma confortável do lado fora do muro. É revoltante ver um médico judeu pedir uma estátua ao invés de condenação para outro médico, soldado do exército israelense, que atirou contra a cabeça de um palestino ferido e rendido.
“O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras”
É desencorajador ver estes, que são descendentes como eu, louvarem o muro de Gaza, o muro de Trump ou qualquer outra forma concreta ou abstrata de segregação. Ao contrário do que ouvi das mesmas pessoas da minha turma, não é dever moral de todo judeu defender o Estado de Israel. O dever de todo judeu dessa e de todas as próximas gerações é questionar; é destruir os muros e romper as barreiras. É enxergar a questão territorial como tal, e não como uma disputa religiosa, porque não é.
Não nos regozijemos, vaidosos, com os milhões de russos, milhares de etíopes e judeus de outras nacionalidades acolhidos por Israel. Um povo tantas vezes expatriado tem que ter a humanidade de olhar para os outros e não apenas para si; perceber que também está negando pátria a seres humanos.
Não sejamos arrogantes de achar que o fato de ter os Estados Unidos como padrinho e financiador desde o surgimento, faz com que Israel seja sempre e indubitavelmente o lado certo. Este é o lado que interessa a eles até o momento. Como assim já foram Saddam Hussein e até mesmo o Estado Islâmico. Questionemos. Sempre.
“A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido”
Eu tenho muito orgulho de onde venho mas, para mim, e certamente pro meu avô, judaísmo não é um pacote ideológico, político ou territorial. De fato, não considero nem mesmo o aspecto religioso do judaísmo o principal. O que deveria nos unir são os mais de cinco mil anos de uma cultura de superação, aceitação, integração e diálogo. A bagagem que carregamos deve nos fazer aprender e crescer, e não ser desculpa para replicar qualquer malefício que tenhamos sofrido. A história está feita, mas o futuro é nossa responsabilidade. Por isso, repito: eu tenho muito orgulho de onde venho; mas não gosto do caminho que estão seguindo. Afinal, não existe lado certo em um muro.